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sábado, novembro 07, 2009

4ª MOSTRA DE CINEMA BRASILEIRO

4.ª Mostra de Cinema Brasileiro

A decorrer, entre 5 e 8 de Novembro, no Cinema São Jorge, em Lisboa, a 4.ª Mostra de Cinema Brasileiro, organizada pela Fundação Luso-Brasileira, apresenta 12 filmes contemporâneos, não exibidos no circuito comercial: Entre eles, dois dias dedicados a homenagens, uma ao realizador Domingos de Oliveira, outra ao actor Matheus Nachtergaele.
Hoje, 6 de Novembro, foram projectados três filmes, enquadrados na Cinematografia Brasileira Contemporânea: “Romance”, “Santiago” e “Chega de Saudade”. À última da hora, não foi exibido “Meu Nome não é Johnny”. Uma falha que só foi anunciada às 23, 30, quando a sessão devia ter começado às 23, com uma lotação esgotada à espera no hall e que foi devolvida à rua, porque a cópia não terá sido revista a tempo de se ter remediado a falha. Enfim, alguma falta de profissionalismo, numa iniciativa que até agora mostrou muito bons filmes, e que atraiu muito público nas suas sessões da noite.
Romance
Realização: Guel Arraes (Brasil, 2008), com Wagner Moura, Letícia Sabatella, Andréa Beltrão, Marco Nanini, Vladimir Brichta, José Wilker, Bruno Garcia, Edmilson Barros, Tonico Pereira, etc. (105 min)
“Romance”, baseado no “Romance de Tristão e Isolda”, é uma complexa história de amor que reflecte igualmente sobre a paixão e a criação artística, neste caso o teatro e a televisão. Um encenador e actor de teatro, Pedro (Wagner Moura) apaixona-se por Ana (Letícia Sabatella), actriz com quem contracena na peça “Tristão e Isolda”. Enquanto no palco os assaltam dilemas da história que deu origem à ideia do amor romântico, nos bastidores, o casal esbarra nos obstáculos do amor actual, muito mais condimentado com paixão, ciúme, rotina, trabalho, arte e indústria... É possível um amor feliz? Do teatro e de um falhanço sobre o seu próprio amor, passa-se para a televisão e uma segunda oportunidade: Ana propõe a Pedro que a dirija num especial de fim de ano para a TV. A história escolhida é precisamente “Tristão e Isolda”, agora adaptada ao Nordeste brasileiro.
Filme inteligente e delicado, por vezes aqui e ali um pouquinho artificial na sua construção demasiado intelectual, sobretudo ao discutir o amor “no interior do amor” e as relações entre a arte e o comércio, tem todavia óptimos actores, e acompanha-se com agrado na sua construção e na ironia com que aborda o mundo da televisão, carregado de compromissos (é conveniente saber-se que Guel Arraes é um apreciado autor de mini-séries de tv, como “O Auto da Compadecida”, que passa igualmente nesta mostra).
Santiago
Realização: João Moreira Salles (Brasil, 2007)
Documentário (80 min) “Santiago” é um documentário sobre um filme inacabado. Santiago, uma personagem inesquecível, um homem de vasta cultura e memória prodigiosa, era mordomo em casa de um diplomata, pai do realizador João Moreira Salles que ali viveu a meninice, e cujas recordações o levaram, há uns anos atrás, a tentar dirigir um filme que não conseguiu terminar na altura. Anos depois, retoma o filme em busca das razões que o fizeram falhar. “Santiago” é um filme sobre memória, identidade e a própria natureza do documentário. Uma jóia cinematográfica, arrisco-me a considerá-lo uma obra-prima que não desmerece a cada nova visão e leitura (sobre o mesmo já escrevi aqui , quando o descobri no Brasil, em 2008).

Chega de Saudade
Realização: Laís Bodanzky (Brasil, 2008), com Leonardo Villar, Tônia Carrero, Cássia Kiss, Betty Faria, Stepan Nercessian, Maria Flor, Paulo Vilhena, Elza Soares, Marku Ribas, Conceição Senna, Marcos Cesana, Clarisse Abujamra, Luiz Serra, Miriam Mehler, Marly Marley, etc. (92 min)
“Chega de Saudade” é nome de clube de dança, na noite de São Paulo. Nessa sala de baile, frequentada predominantemente pela terceira idade, acompanhamos amor e ciúmes, dramas e alegrias, aventuras e desventuras de cinco núcleos de personagens que frequentam habitualmente aquela sala. Tudo começa quando a sala abre, pelas cinco da tarde, o pano corre quando a sala fecha por volta da meia-noite. Tudo se passa em meia dúzia de horas, crescendo a intensidade dramática (e erótica) à medida que as horas decorrem, os chopes e o whisky desaparecem, e os olhares se vão cruzando com um furioso desejo que mistura impotência e impetuosidade incontida. E repetidas frustrações. E alegrias breves, “uma hora de cama vale bem uma vida sem nada”. A condição humana concentrada num laboratório de análise, prefigurado numa sala de baile, como já o havia feito Ettore Scola, em “O Baile”, mas com outras intenções, ou Sydney Pollack, em “Os Cavalos Também se Abatem”, mas num outro contexto, ou “O Baile dos Bombeiros”, de Milos Forman, mas por detrás da “cortina”.
Esta é a segunda longa-metragem de Laís Bodanzky (que, em 2000, dirigira “Bicho de Sete Cabeças”), e trata-se de um verdadeiro sucesso, com um naipe de actores a roçar o genial (Leonardo Villar, intimista, Tônia Carrero, sublime, Cássia Kiss, magistral, Betty Faria, tocante, Clarice Abujamra, fulgurante, Stepan Nercessian, sem mácula, Maria Flor, de uma candura a rondar a perversidade, entre outros).
Laís Bodanzky cria uma envolvência emocional notável, com planos de conjunto e outros, aproximados, cerrados sobre rostos ou pormenores, com movimentos de câmara insidiosos e reveladores, com olhares trocados e pensamentos expressos pelo rosto ou o gesto. Emocionante e belo. Com um daqueles “puzzles” admiráveis de Robert Altman, mas com o sabor da música brasileira a envolver o pacote. Elza Soares e Marku Ribas são os cantores de serviço, de uma banda sonora para não esquecer. Notável a fotografia de mestre Walter Carvalho.
Sobre a terceira idade, o desespero e a recusa de ser “enterrado à espera da morte”, só vindo do Brasil nos poderia chegar um filme tão cheio de optimismo, no meio da solidão e da decrepitude. Mas com um calor humano que ultrapassa qualquer barreira de angústia existencial.

terça-feira, setembro 30, 2008

MACHADO DE ASSIS NO CINEMA


(...) O que mais me espanta, hoje em dia, na escrita de Machado de Assis, sobretudo a partir de “Memórias Póstumas”, é a multiplicidade de registos que o colocam como um ainda romântico nalguns aspectos, um realista em plena maturidade, mas igualmente um modernista “avant-la-letre”, um surrealista, um concretista, um vanguardista, enfim, também um homem que alguns cuidam ser um irremediável moralista conservador, mas que eu sinto mais um militante de valores morais caídos em desuso, ou um critico da condição humana que não é tão elogiável na sua totalidade como seria de desejar, corrompida pela eterna hipocrisia, pela omnipresente corrupção, pelo viciante carreirismo, pela falta de verdade e de hombridade. Para Machado de Assis a Humanidade é, sempre o foi para trás, e não parece mudar muito no futuro, uma realidade que merece não muita credibilidade, pouca simpatia e muita desconfiança quanto aos seus propósitos mais íntimos. Céptico, pessimista, escritor de uma sibilina ironia, extremamente subtil, mas ferozmente observadora, Machado de Assis capta aí muita da simpatia do público do século XXI. Igualmente descrente e pessimista quanto ao futuro da espécie.
Mas, atenção, a existência é uma contradição insistente: lendo Machado de Assis percebe-se que, para lá do seu ingénito pessimismo e cepticismo, há uma devoradora vontade de viver, um gosto pelos prazeres da vida que é visível em qualquer das suas páginas. Podemos estar muito incrédulos em relação ao Homem, mas lendo Machado de Assis não podemos deixar de glorificar a sua arte, afinal resultado de um “humano”. Lendo as suas descrições, não deixaremos de nos seduzir pelo olhar “obliquo e dissimulado” de Capitu, pelas ruas do Rio de Janeiro, entre as quais a de Matacavalos, pelas jantaradas, pelos bailes, pelas travessias das noites e dos dias tropicais, pelo urbanismo de metrópole, pela densidades das personagens que se não esquecem. Afinal por esta Humanidade frágil que, não sendo perfeita, longe disso, não deixa de ser sedutoramente apetecível. Ler Machado de Assis é ler alguém que nos dá ganas de viver, mas muita vontade de lutar contra o que está mal, e tentar modificar, pouco que seja, o que estiver ao nosso alcance. (...)

(Toda a comunicação ao Encontro Internacional sobre Machado de Assis, pode ser lido aqui: TEXTOS e Cia)

segunda-feira, julho 07, 2008

NO BRASIL, III


TROPA DE ELITE
Há uma nova geração de cineastas no Brasil que traz um olhar novo sobre a realidade do seu país. Nem todos alinham pelo mesmo diapasão, mas pode dizer-se que alguns não temem enveredar pelas favelas e focar os desgraçados que ali vivem, os gangs que controlam os movimentos, os polícias que ganham com o esquema montado, os governos que tentam passar incólumes entre os pingos da chuva, ou as balas dos tiroteios, dando-nos o outro lado do Brasil que o turista vê. Ainda há dias escrevi sobre a Cinelândia, os cinemas e os cafés, a confeitaria Colombo, e obviamente não reportei as colinas que descem pesadamente sobre a cidade, essas favelas de pesadelo que lá do cima parecem controlar os movimentos de quem se passeia no Centro ou na Avenida Atlântica. Não há um Brasil, há vários. Há também o das favelas, do crime organizado, da droga controlada e difundida, da polícia que coopera, que protege mediante um tanto, que vende armas ao assaltante, do coronel que recebe por baixo da mesa o “mensalão” recolhido pelo subalterno, do burguês que consome droga, sem imaginar quantas crianças é preciso morrerem para o diletante chutar uns momentos de paraíso artificial. Há esse Brasil, que passou em várias obras, como “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, ou a recente “Tropa de Elite”, de José Padilha. Não conheço o documentário “Ônibus 174” (que dizem ser sensacional!) com que o cineasta se estreou no cinema de longa-metragem. Vi agora no Brasil “Tropa de Elite” que provocou várias ondas de choque de diverso significado, antes e depois da sua estreia. Antes, porque precedendo a sua estreia nas salas do Brasil de dois meses, o filme vendeu DVD pirata “p’ra caramba” em todas as ruas das cidades brasileiras, rendendo bons reais aos “camelôs” que os anunciavam clandestinamente (mas pouco, há todos os DVDs de momento à venda nas ruas do Rio ou de São Paulo). Dizem que mais de 3 ou 4 milhões de brasileiros viram o filme antes da estreia oficial nos cinemas (e na estreia ainda se conseguiu colocar entre os filmes brasileiros mais vistos de sempre no Brasil). É obra. Espíritos mal intencionados insinuaram mesmo e puseram a correr o boato de que este lançamento clandestino do filme fora manobra de marketing da própria produtora, mas a verdade é que acabou por saber-se, no tribunal, que foram funcionários sem escrúpulos de uma empresa de legendagem (que preparava cópias da obra, legendadas em inglês) quem pirateou o filme e inundou de reproduções o mercado. A polémica estoirou mesmo antes do filme estrear até porque a polícia se sentiu “insultada” e resolveu interpor providência cautelar, tentando impedir a sua exibição. Uma juíza da 1ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de seu nome Flávia de Almeida Viveiros de Castro, negou porém o pedido dos autores, destacando: “Não existem críticas às instituições. As críticas feitas são ao sistema”. As produtoras e distribuidoras Zazen Produções e Paramount Pictures do Brasil puderam portanto exibir o filme, passando por cima da denúncia de que este “violava a honra, a dignidade e até mesmo a integridade física dos integrantes do BOPE”.
Aproxima-nos do âmago de uma das questões: o BOPE (por extenso: Batalhão de Operações Policiais Especiais). Diz quem viu (não consegui ainda ver, nem em DVD) que, em 1999, os cineastas João Moreira Salles e Kátia Lund rodaram um documentário, “Notícias de uma Guerra Particular” (vendido clandestinamente, com o título – inventado! - “Tropa de Elite, nº 2”, ao que me contam também, o que não deixa de ser pirataria a dobrar!) onde um capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, confessava estar “cansado” da batalha diária que travava contra o tráfico, já que nenhum resultado efectivo parecia estar sendo alcançado e os governantes não demonstravam o menor interesse em fazer algo que pudesse representar uma solução eventual para a criminalidade.” Saiu entretanto uma obra, "Elite da Tropa", escrita por André Batista, Luiz Eduardo Soares e o mesmo capitão Rodrigo Pimentel (julgo que agora é ex-capitão) que denunciava muito do que se passava no interior daquela força policial. Oito anos depois da entrevista concedida a João Moreira Salles e Kátia Lund, Rodrigo Pimentel assina, ao lado de Bráulio Mantovani (argumentista de “Cidade de Deus”) e de José Padilha, o argumento de “Tropa de Elite”, que, inicialmente o realizador queria transformar num documentário. Pensou, porém, que não viveria muitos dias depois da estreia do documentário com as acusações que o mesmo encerraria, visando factos e personalidades reais, e resolveu ter um pouco de amor à (sua) vida e à dos seus mais próximos colaboradores, optando por construir uma ficção. Que não será menos contundente.
“Tropa de Elite” situa-se no ano de 1997, algum tempo antes da anunciada visita do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro. Sempre que alguma personalidade importante visita a cidade, a segurança é duplicada. Com o Papa, foi um pouco diferente. Nenhum político quer ser acusado de ver o Sumo Pontífice alvejado no seu país. Logo, a segurança é triplicada. Com meses de antecedência preparam-se os “festejos.” Prendem-se os “suspeitos do costume”, invadem-se os morros e vasculham-se as favelas, intimida-se meio mundo, tortura-se, mata-se ou deixa-se ali à mão de semear os denunciantes que pactuaram, para o gang do lado se encarregar deles. Agora mesmo, nesses dias ainda de início de Junho de 2008, uns militares em acção numa favela do Rio entregaram, como vingança, três rapazolas “dealers” a um grupo rival de traficantes que os torturou durante horas, cortou pernas e braços, e depois despejou nos caixotes do lixo. Percebe-se, pois, de que tipo são as relações entre os fora da lei e os agentes da autoridade.
Mas voltemos ao filme. Este tem como protagonista o Capitão Nascimento, um dos comandantes do Batalhão de Operações Especiais, a quem foi atribuída a missão de garantir a segurança do Papa. Nascimento está cansado das suas tarefas, stressado com o ritmo e a violência do dia a dia, farto do desgaste físico e psicológico, toma drageias para sobreviver, e a sua ambição máxima é ver nascer o filho que se anuncia. Tem de arranjar um substituto para o seu cargo se quer uma trégua, está empenhado em várias frentes, uma delas são as aulas de recruta que ministra aos novos aspirantes. Para se pertencer ao BOPE tem de se possuir uma têmpera invulgar, passar por provas de tortura, de humilhação, de resistência, de esforço desmedido. É o que fazem Matias e Neto, os outros dois protagonistas desta obra. Assiste-se ao seu comportamento nas aulas, ao seu trabalho nas ruas, e, no caso de Matias, ainda ao seu estudo na Universidade de Direito, onde procura tirar um curso, passando ignorado junto dos colegas quanto à sua actividade policial. Descobre como alguns alunos, vindos das boas famílias do Rio Sul, consomem droga e entra na negociata, penetra no morro atrás de uma namorada que trabalha numa ONG, dá de cara com o chefe do gang, e é um dia descoberto, quando uma fotografia sua, em acção, é colocada na primeira página de um jornal. Quando quer enviar uns óculos a um miúdo da favela, provoca uma tragédia, que ira desencadear outra tragédia, que irá desembocar numa espiral de fogo e dor.
Que nos diz a obra? Que os traficantes matam e morrem, que os policias morrem e matam, que ambos negoceiam entre si, que os poderes sabem e pactuam, que a corrupção passa do mais alto nível ao mais baixo, que quem não pactua no morro ou no quartel é linchado, o agente da autoridade é enviado ao morro pelos superiores hierárquicos para ser abatido, o puto delator é libertado para ser abatido, o polícia que passa na hora errada é abatido, neste universo de uma brutalidade asfixiante não há quase rapazes bons. Quase, porque fica o exemplo de Neto e Matias, de Nascimento e de alguns mais que, apesar de não figurarem entre os protagonistas, o filme deixa a esperança de, quiçá, existirem. Há quem acuse a obra de criar heróis, falsos heróis, porque ainda há polícias honestos. Querem então proclamar que “todos os agentes de segurança”, todos os “representantes do Poder instituído” são bandidos corruptos? Se for esse o vosso desejo, o melhor é desistir já. Mas há mais acusações. Que os processos de mafiosos das favelas e policiais de giro são idênticos. Todos torturam e matam. Pois, essa é uma das acusações do filme, parece-me, com uma ressalva. “Tropa de Elite” não é ingénua ao ponto de propor a história do pobrezinho desgraçadinho desde criança, e do polícia mauzinho desde o banco da escola, e do burguesinho de esquerda, intelectual consumidor de haxixe, que é a voz da consciência desta maldita sociedade destruída pelo dinheiro. Em “Tropa de Elite” há maus para todos os gostos. Nada é límpido e o “homem novo” está muito longe de existir. Há uns puros que se vão adaptando à realidade, como é o caso de Matias. Aliás, nesse aspecto, “Tropa de Elite” é mesmo o trajecto de uma iniciação, de uma aprendizagem, com aulas teóricas e práticas a toda a hora que, no quartel e cá fora, na vida quotidiana, em lugar de encaminharem para a honra e a dignidade, se encarregam de deformar o que de melhor existe dentro do homem. Essa viagem que acompanha o rosto de Matias, desde a sua promissora e entusiástica entrada no “corpo” da polícia até ao entrosamento final na “filosofia” do mesmo, é um dos elementos brilhantes desta obra. O plano final de “Tropa de Elite” é elucidativo desse percurso. É esclarecedor da forma como se destroem homens, como se fabricam “matadores”, como se limpa da face da terra a ternura, o amor, a bondade. Padilha oferece o retrato do polícia, e do seu ponto de vista (por exemplo, um deles pergunta: “Acha que vou subir o morro e arriscar minha vida por 500 reais - cerca de 200 euros - por mês?”). Não me parece justo que sejam só os marginais a serem “compreendidos”. “Compreender” os polícias, mesmo quando eles também se assemelham a marginais, é um bom ponto de partida para se tentar alterar, um pouco que seja, este estado de coisas, que é um “estado de sítio”, sem grandes esperanças de se ver modificado.
O filme é ainda muito bom pela sua textura estética e a sua factura técnica. A fotografia, de um colorido denso e garrido, saturado, é algo obsessiva, claustrofóbica. A montagem é excelente, com um ritmo nervoso, inquieto, a câmara oscilando, mudando de enquadramento, viajando pelo espaço, procurando o centro da acção, o rosto, o olhar, o fugitivo, a bala perdida ou achada. A narrativa inicia-se num determinado ponto da história, recua ao passado, e retoma a marcha depois de explicado o que ficou para trás. É uma forma brilhante de agarrar o espectador, sem todavia tornar falsa ou rebuscada a descrição. Muito bons são os actores, na sua totalidade, desde o mais batido em representação (bom exemplo, Wagner Moura, um dos mais completos actores brasileiros da actualidade) ao neófito (André Ramiro, que interpreta Matias, era bilheteiro de cinema do shopping “Fashion Mall”, no Rio de Janeiro). A violência do clima geral alimenta-se muito destas convulsões de caracteres em fúria, em tortura psicológica, em stress continuado. Por falar em stress continuado, as sequências do treino da tropa de elite são do melhor que o cinema mundial nos deu até hoje, e já nos deram muitos exemplos de casos semelhantes (sobretudo os cineastas americanos). Terminando, refira-se a escrita do guião que é igualmente excelentemente trabalhada, os diálogos são rigorosos e eficazes, o monólogo do capitão Nascimento muito bem doseado e colocado nos espaços e tempos certos.
De resto, Padilha e a sua equipa, filmando nas favelas, e introduzindo-se em espaços, no mínimo “difíceis”, demonstraram grande coragem. Como curiosidade, conte-se que, em Novembro de 2006, ainda em rodagem em cenários naturais, alguns traficantes do morro Chapéu Mangueira, na Zona Sul do Rio, onde as filmagens eram feitas, sequestraram parte da equipa que trabalhava no filme e roubaram as armas utilizadas nas filmagens. 59 eram réplicas, mas 31 eram verdadeiras, adaptadas para balas de efeitos especiais. As filmagens foram suspensas durante cerca de duas semanas. Quer dizer: neste país, sobretudo nesta “cidade maravilhosa” (que o é mesmo!) ninguém deixa de pagar tributo a este sistema que se quer inexpugnável. Qualquer estranho que aí penetre, e que não seja traficante ou polícia, é olhado como suspeito ou vítima preferencial. O que um turista de passagem, olhando o morro cá de baixo, de Copacabana, não descobre. Mas intui.

TROPA DE ELITE
Título original: Tropa de Elite
Realização: José Padilha (Brasil, 2007); Argumento: Bráulio Mantovani, José Padilha, Rodrigo Pimentel, segundo "Elite da Tropa", obra de André Batista, Rodrigo Pimentel, Luiz Eduardo Soares; Produção: Bia Castro, Eduardo Costantini, James D'Arcy, José Padilha, Marcos Prado, Eliana Soárez, Genna Terranova; Música: Pedro Bromfman; Fotografia (cor): Lula Carvalho; Montagem: Daniel Rezende; Design de produção: Tulé Peak; Decoração: Odair Zani; Guarda-roupa: Claudia Kopke; Maquilhagem: Martin Macias, Ignácio Posadas, Sandro Valério; Direcção de produção: Robert Bella, Maria Clara Ferreira, Lili Nogueira, Edu Pacheco, Fernando Zagallo; Assistentes de Realização: Laura Flaksman, Laura C. Grant, Daniel Lentini, Clara Linhart, Malu Miranda, Phil Neilson, Pedro Peregrino, Rafael Salgado; Departamento de arte: Cristina Cirne, Dejair dos Santos, Thiago Marques; Som: Alessandro Laroca, Eduardo Virmond Lima, Leandro Lima, Fernando Lobo; Efeitos especiais: Marc Banich, Mauricio Couto Bevilaqua, Mike Edmonson, Sergio Farjalla Jr., Bruno Van Zeebroeck; Companhias de produção: Zazen Produções, Posto 9, Feijão Filmes, The Weinstein Company, Estúdios Mega, Quanta Centro de Produções Cinematográficas, Universal Pictures do Brasil, Costantini Films.
Intérpretes: Wagner Moura (Capitão Nascimento), Caio Junqueira (Neto), André Ramiro (André Matias), Maria Ribeiro (Rosane), Fernanda Machado (Maria), Fernanda de Freitas (Roberta), Paulo Vilela (Edu), Milhem Cortaz (Capitão Fábio), Marcelo Valle (Capitão Oliveira), Fábio Lago (Claudio Mendes de Lima 'Baiano'), Luiz Gonzaga de Almeida, Bruno Delia (Capitão Azevedo), Marcelo Escorel (Coronel Otávio), André Felipe (Rodrigues), Thelmo Fernandes (Sargento Alves), Emerson Gomes (Xaveco), Paulo Hamilton (Soldado Paulo), Bernardo Jablonsky, Daniel Lentini, Thiago Mendonça, Alexandre Mofatti, Erick Oliveira Otto Jr., André Santinho, Patrick Santos, Ricardo Sodré, Thogun, etc.
Duração: 115 minutos; Classificação etária: M/18 anos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Locais de Filmagem: Rio de Janeiro, Brasil; Data de estreia: 10 de Julho de 2008 (Portugal).

sábado, junho 28, 2008

NO BRASIL, I


SANTIAGO, de João Moreira Salles

Na última noite do festival de Goiás, durante o jantar no “Da Vinci”, perguntei a Jean Claude Bernardet, um dos mais lendários críticos e realizadores brasileiros, e a Lizandro Nogueira, consultor do FICA, quais os filmes brasileiros, recentemente estreados, que valia a pena ver, nos dias que iria passar no Rio. Ambos concordaram em dois títulos: “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho, e “Santiago”, de João Moreira Salles.
Quando cheguei ao Rio e consultei o roteiro dos cinemas, só estava em exibição “Santiago”, que me apressei a ir ver. Por um capricho da sorte, estava em exibição no auditório da Instituto Moreira Salles, na Gávea. Só à saída da exibição do filme percebi quanto importante era este facto.
Para compreender o filme é preciso enquadrá-lo. Por exemplo: João Moreira Salles é irmão de Walter Salles, Jr. (autor de “Central do Brasil”, por exemplo), Pedro Moreira Salles (actual presidente do Unibanco), e ainda de Fernando Moreira Salles, o mais velho do grupo (editor e ultimamente também cineasta - tem para estreia nos ecrãs do Brasil uma nova longa metragem). Todos são filhos de Walther Moreira Salles, importante empresário, banqueiro e diplomata brasileiro, que foi ministro da Fazenda do Brasil, no governo João Goulart e fundou em 1975 um dos maiores conglomerados financeiros, que passou a chamar-se Unibanco. Mas foi sobretudo como embaixador que se notabilizou, duas vezes em Washington, na década de 1950, onde ganhou a admiração do presidente Juscelino Kubitschek, tendo sido um dos negociadores da dívida externa brasileira, em três ocasiões, nos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. Falecido em 2001, tinha antes criado o Instituto Moreira Salles, uma entidade de assistência à cultura do país. Vivia na casa da Gávea, onde hoje está instalado o Instituto com o seu nome. Foi nessa casa apalaçada que viveram Fernando, Pedro, Walter e João, todos servidos por um mordomo argentino de nome Santiago Badariotti Merlo, homem de uma vivência riquíssima, um verdadeiro aristocrata pelos gostos, pela cultura, pela ambição de estilo de vida, pela sensibilidade.
Durante mais de 50 anos foi escrevendo 30.000 páginas de biografias das grandes famílias aristocratas, desde a Antiguidade Clássica até à actualidade. Páginas que coleccionava religiosamente num armário, agrupadas por temas e devidamente atadas por delicadas fitas. Olhava-as e dizia com um misto de comoção e algum fascínio, “Todos mortos!”
Santiago, mordomo, vivia mergulhado num mundo de sonho, por entre reis e imperadores, opulência e elegância, ia à ópera e ouvia música clássica (vestia smoking em casa para tocar Beethoven ao piano), frequentava exposições, conhecia a melhor literatura, cantava e tocava castanholas nas noites mais calmas do adormecido casarão e tinha o cinema como obsessão e Fred Astaire como figura máxima. Não é de estranhar que João Moreira Salles, e demais ninhada do senhor embaixador, tivesse uma admiração indisfarçável pelo mordomo que os viu crescer. Por isso se compreende também que João, sobretudo ele, o mais documentarista, se tenha lembrado de Santiago, em 1992, para sobre ele fazer um filme. Entrevistou-o, já não na Gávea, mas no pequeno apartamento para onde se mudara quando reformado e, durante cinco dias, recolheu nove horas de depoimento, que deixou adormecer em latas, até que descobriu o que fazer com ele. Muitos anos depois. As entrevistas tinham sido conduzidas por uma amiga, o fotógrafo tinha sido um mestre brasileiro, Walter Carvalho, e a voz off era a do irmão Fernando. Santiago estava perto de completar 80 anos, era frágil e dócil, deixando-se levar pelo antigo patrão (e actual realizador: como são parecidas certas funções!) que lhe perguntava o que queria e o orientava na forma de responder, de colocar a cabeça, de estender as mãos, de desenhar gestos no espaço. Num plano de conjunto, sempre rodeado dos seus objectos, na cozinha, na sala, sentado, em pé, quase sempre de corpo inteiro, a uma distância significativa da câmara, esta junto ao chão a relembrar Ozu, nunca a proximidade do grande plano, do rosto, mas quase sempre o plano de conjunto, Santiago fazendo parte de um cenário, um corpo inteiro, a recuperação de uma memória de menino. João Salles julgava estar a fazer um filme sobre Santiago, seu mordomo, mas estava a fazer um filme sobre ele, João, e a sua relação com Santiago, o mordomo. Só percebeu isso muitos anos depois e então abriu as caixas e regressou ao filme, acabando-o segundo um novo projecto. “Até hoje, foi o único filme que comecei e não terminei”, disse João Salles. Com o apoio dos montadores Eduardo Escorel (um dos mais criativos do Brasil) e Lívia Serpa reorganizou o material, e apresentou-nos uma obra-prima do moderno documentarismo.
Um filme sobre o fascínio de um mordomo pela aristocracia, um filme sobre o deslumbramento de um aristocrata pelo seu mordomo. Um filme de apaziguamento social, de demonstração de como se podem conciliar as classes? Afinal nada disso. João Moreira Salles dá-se conta de que filma o mordomo à distância, que o trata como seu empregado, e isso a câmara regista e disso fala o filme de forma muito discreta, secreta, insidiosa. Tão discreta que o realizador só dá por ela treze anos depois, e resolve tornar visível o invisível, tornar significativo o (aparentemente) insignificante. É o próprio realizador quem o confirma: “Não tinha a noção de que, na verdade, não fiz um filme sobre Santiago, mas sobre a minha relação com ele. Não havia ali uma relação de documentarista e de documentado. Havia uma relação de patrão e mordomo, de, em última instância, chefe e criado. (…) Nas entrevistas, não queria ouvir o que Santiago tinha a me dizer. Queria que ele dissesse o que eu queria ouvir, que ele se parecesse com o Santiago da minha infância, com o meu Santiago. Daí as ordens, os planos repetidos. Essa relação de patrão e empregado é também uma alegoria do que acontece em todo filme, entre o documentarista e o seu objecto. É preciso ter consciência disso, mesmo quando se filma o presidente, a palavra final sempre será de quem está com a câmara na mão.”
O filme transforma-se assim num ensaio sobre a relação de forças, entre chefe e criado, ao mesmo tempo que o é igualmente entre cineasta e intérprete. João Moreira Salles “encena” o seu intérprete, explica-lhe o que pode e não pode fazer (vai ao ponto de Santiago, obviamente homossexual, ir confessar a sua “maldição” e de o realizador, por interposta voz, negar-lhe a palavra, “Isso não Santiago, agora não, isso não interessa!”). Se o realizador não expusesse a metodologia, o filme seria eticamente reprovável. Expondo-a, torna-o um documento sobre a ética do olhar e do filmar.
Mas há muito mais a celebrar neste belíssimo filme, de uma austeridade rigorosa, rodado num preto e branco macerado, interrompido por uma ou outra sequência a cores que o transfiguram. Imagens de felicidade, em família, João, irmãos, pai e mãe na piscina da casa, “home vídeo” dos anos 50, mais adiante uma sequência de um bailado de Fred Astaire e Cyd Charisse, em "A Roda da Fortuna", onde um passeio em Central Park evolui tão naturalmente para a dança como se de um passe de magia se tratasse. Momentos de felicidade e plenitude, de um passado que é somente recordação, mas que o cineasta trata com uma mestria perfeita.
Assim evoluiu o filme, por entre registos sincopados, intercalados por “negros”, durante os quais se ouvem unicamente vozes off, marcado por avanços e retrocessos, por repetições, numa toada que nunca abandona a interrogação, colocando continuamente questões ao espectador e aos próprios responsáveis pelas filmagens. Ao próprio cinema. Um filme que avança, questionando-se, que se distancia do que foca, mesmo quando, como nas imagens iniciais, a câmara se vai aproximando de fotografias de Santiago, iniciando um “outro filme”, que logo se suspende para principiar um outro, que afinal é o mesmo, questionando-se a si mesmo. "Reflexão sobre o material bruto", afirma o cineasta, mas também reflexão sobre o acto de filmar, o acto de montar, o acto de mostrar ou ocultar, o acto de ver o tempo passar (“Se 13 anos se passam, você tem de incorporar a passagem do tempo. Na verdade, o que deu liga para o filme foram os 13 anos que ele ficou parado. Estranho seria se eu fizesse o mesmo filme que queria realizar em 1992. O que mudou no tempo? Mudei eu.”).
Há durante o filme uma outra frase que explica algo do processo criativo desta obra que mostra o outro lado da criação, em cinema, o que fica não dito, não visto, num filme tradicional. ), É uma citação de Werner Herzog: "O mais bonito é o que acontece depois do plano terminar". Quer dizer, o mais bonito é o não visto, o não mostrado, o não ouvido. João Moreira Salles procura ultrapassar o obstáculo, e mostrar algo do que é uso cortar antes do público ter acesso à obra. As hesitações, as repetições, a insatisfação, a insegurança (ficou bem?), o silêncio, os gestos imperfeitos.
Ao sair da sala de projecção, descobrimos que estamos no interior da casa onde tudo se passou, e a magia é completa, o circulo fecha-se, ouve-se Santiago passar e Beethoven ao longe, olham-se as exposições abertas ao público (“A Bahia de Jorge Amado”, magnifica) e sentem-se os fantasmas nos corredores, as castanholas e os gestos, a “maldição” a sobrevoar os espaços, a chegada dos embaixadores, as grandes noites de recepção, e, à beira da piscina, as gargalhadas dos miúdos, o sorriso da mãe, os braços fortes do pai… a memória de Fred Astaire dando a mão a Cyd Charice e ambos a voarem, planando sobre Central Park. Naquele tempo, tudo era perfeito, até ao dia que o Paraíso se perdeu, porque o homem começou a pensar.