quarta-feira, março 31, 2010

ALICE NO PAÍS DE HARRY POTTER?

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ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Não seria de todo expectável, nem se compreende muito bem, mas aceita-se. Todo o criador, mesmo o maior, pode ter os seus momentos de desinspiração. Tim Burton é um dos cineastas contemporâneos que mais aprecio, mas este seu “Alice in Wonderland” deixa-me realmente estupefacto, pois sempre pensei que o universo de Lewis Carrol se poderia ajustar muito bem ao seu. E a aproximação poderia dar-se precisamente pelo lado em que mais parece falhar esta sua adaptação: se o “País das Maravilhas” do escritor inglês é um local totalmente surreal, onde a lógica existe mas se submete a uma outra construção, se o “non sense” é completo, se a ausência de “moral” só existe nas cogitações de uma condessa que é obviamente parodiada como representante de um convencionalismo racional totalmente desfasado deste mundo de fantasia onde tudo é possível e nada implica uma moral “normal”, se esta é a proposta de Lewis Carrol, a de Tim Burton parece desviar-se 180 graus, organizando o universo de Alice segundo convenções narrativas e morais, de todo em todo dessincronizadas com o projecto original.
Sabe-se que Tim Burton é um autor de uma imaginação plástica e de um requintado gosto fantástico. Não surpreende por isso que este filme mantenha uma altíssima qualidade plástica, com ambientes soberbamente criados, personagens vistosas e imaginativas. Há figuras que ficarão certamente no imaginário cinematográfico deste início do século XXI, como a Rainha Vermelha ou o Chapeleiro Louco (duas soberbas presenças de Helena Bonham Carter e Johnny Depp). Há paisagens que não esqueceremos mais. Há situações de todo em todo merecedoras do talento de um homem que nos deu anteriormente, entre outros, “Eduardo, Mãos de Tesoura”, “Ed Wood”, “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”, “O Grande Peixe” ou “Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street”. Acontece que o resultado final não só deixa um amargo de boca, como vai ainda mais longe, justificando uma sensação de desilusão e falhanço. Numa palavra: Tim Burton errou o alvo, transformou a genial e subversiva inspiração de Lewis Carol num convencional filme de aventuras fantásticas que em muito se assemelha a mais um episódio da serie “Harry Potter” (não que eu despreze “Harry Porter” que, por vezes, é divertido, mas a verdade é que Lewis Carrol e J. K. Rowling estão em patamares distintos da História da Literatura).
A ideia de Tim Burton não foi adaptar fielmente os dois volumes de Lewis Carrol, "Alice's Adventures in Wonderland" e "Through the Looking Glass". O cineasta partiu do princípio que todos nós conhecíamos as aventuras de Alice e as personagens que com ela se cruzaram para a imaginar, quinze anos depois, a voltar aos mesmos locais. Em circunstâncias diferentes, mas partindo de um idêntico estado de espírito. No romance de Lewis Carrol, Alice, uma rapariguinha de dez anos, “começava a aborrecer-se imenso de estar sentada à beira-rio com a irmã, sem nada para fazer”. “Foi então que, de repente, um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa passou a correr ao pé dela.” E o Coelho dizia: “Credo! Credo! Vou chegar atrasadíssimo!” Alice estava, portanto, aborrecidíssima com a monotonia da sua vida, quando o Coelho a desvia para um outro universo, onde se precipita vorazmente. Agora, no filme de Tim Burton (cujo argumento traz a assinatura de Linda Woolverton), Alice, quinze anos mais velha, e ainda no final de século XIX, continua a não conviver bem com as convenções do quotidiano e não acha graça mesmo nenhuma a um casamento que lhe preparam com um insonso aristocrata que pede a sua mão perante uma expectante e entusiasta plateia de “peraltas e sécias”. E passa outra vez o Coelho Branco, e Alice volta a cair na auto-armadilha do seu sonho de fuga à realidade. (Diga-se que a Alice de Tim Burton, Mia Wasikowska, não nos parece ter sido muito bem escolhida, pois, apesar do seu persistente ar espantado, não oferece outras garantias de inquietação interior e de gosto pelo reino da fantasia). Depois lá vão aparecendo gatos e lagartas, animais e plantas de vários portes, e todos eles bem falantes, os gémeos Tweedledee e Tweedledum, lá surge o Chapeleiro Louco, lá vem o elogio “da loucura que habita em todos nós” e de que não nos devemos libertar, sob pena de cairmos na mais comezinha realidade sem fascínio ou sedução. Entramos, então, no castelo da Rainha Vermelha, que não pode ser contrariada e manda cortar a cabeça a todos quantos, mesmo hipoteticamente, a desafiam. E esta mudança da Rainha de Copas original pela Rainha de Vermelho introduz o desvario. Ambas existem nos livros de Lewis, a primeira em “Alice in Wonderland”, a segunda em “Alice Through the Looking Glass”. A questão não está aí. A questão está no que desbloqueia a situação: espadas mágicas que recordam Excalibur, dragões e pássaros que remetem para Harry Porter, lutas fratricidas entre as irmãs Rainha de Vermelho e Rainha de Branco pela posse da coroa, tudo isto desvirtua o espírito da obra de onde parte, sem lhe acrescentar nada de substancialmente novo ou original. Muito pelo contrário: se o ambiente é plasticamente de encher o olho, as situações ficam pelo trivial e a moral da luta entre o Bem e o Mal aproxima-se muito das moralidades da Condessa que desapareceu mas parece ter-se imiscuído no pensamento de Tim Burton.
Mas atentemos ainda num outro aspecto da deriva do realizador: os ambientes. O mundo da fantasia de Alice é, no filme, pesado e asfixiante. A queda de Alice não a transporta a um mundo de liberdade total onde tudo é possível, mas a uma atmosfera pesada e densa, de cores trágicas, que mais se assemelha a um pesadelo que a um sonho libertário. Por isso lhe chama “underland”. No que se vai socorrer do primitivo título destas aventuras de Lewis Carrol: “Alice in the Underland”. Esta opção corresponde a sombrias sombras dos nossos dias? É possível que esse tenha sido o propósito, mas que altera por completo a ideia libertária de Lewis Carrol. Em Tim Burton nem o reino dos sonhos nos salva do pesadelo e entre a realidade e a fantasia não há grande diferença.
Também a utilização das 3D não traz nada de novo, a não ser uma muito bem conseguida sticada no jogo de cróquete (uma versão muito pessoal do criquete, com flamingos em vez de tacos e ouriços-cacheiros a fazerem a vez de bolas).
Escrita em 1865 por um cónego de nome Charles Lutwidge Dodgson, que adoptou o pseudónimo de Lewis Carroll, “Alice's Adventures in Wonderland” ou mais simplesmente “Alice in Wonderland”, é uma das obras chaves da literatura de “nonsense", muito apreciada por surrealistas e vanguardistas.
“Alice” no cinema
“Alice, the March Hare, and the Mad Hatter at the "Mad Tea-Party" foi a primeira adaptação ao cinema que se conhece, dirigida por Cecil Hepworth, em 1903. Seguiram-se outras versões ainda mudas: “Alice's Adventures in Wonderland”, de Edwin Stanton Porter (1910), “Alice in Wonderland”, de W. W. Young (1915). Já na época do filme sonoro, as versões sucederam-se: “Alice in Wonderland”, de Bud Pollard (1931) ou “Alice in Wonderland”, de 1933, realização de Norman Z. McLeod, com um grande elenco, Gary Cooper, W.C. Fields, Louise Fazenda, Edward Everett Horton, Cary Grant e Charlotte Henry, como Alice.
Depois surgiram várias versões em animação, como “Alice in Wonderland (1949), de Lou Bunin (misturando imagem real e animação), e a mais conhecida “Alice in Wonderland” (1951), dos estúdios Walt Disney. Os franceses deram o seu contributo com uma versão de “Alice of Wonderland in Paris” (1966) e Hanna-Barbera voltaram ao tema em “Alice in Wonderland (What’s a Nice Kid Like You Doing in a Place Like This?)” (igualmente em 1966).
Versões para televisão também abundam, como a de 1966, da BBC, dirigida por Jonathan Miller. Em 1972, surge “Alice's Adventures in Wonderland”, uma adaptação do musical a cinema levada a cabo por William Sterling. Em 1976, há uma versão pornográfica, com realização de Bud Townsend, e interpretações de Terri Hall, Bree Anthony, e Kristine DeBell.
“Alicja” (1982), co-produção belga-polaca, dirigida por Jacek Bromski e Jerzy Gruza, é uma fantasia musical, e “Alisa v Strane Chudes”, de 1981, com realização de Yefrem Pruzhanskiy, é a contribuição soviética para esta filmografia. “Alice at the Palace” assinala o registo de “Alice in Concert”, com Elizabeth Swados, de 1981. Em 1983 existe uma nova versão do musical da Broadway e, no mesmo ano, surge a série de animação para televisão dos estúdios japoneses, “Fushigi no Kuni no Alice”.
Novas contribuições para televisão, em 1985 e em 1986, esta última uma mini-série, dirigida por Barry Letts, para a BBC. “Alice in Wonderland, de 1988, é uma produção australiana, da Burbank Films Australia, em animação. Ainda em 1988, aparece uma adaptação de Jan Švankmajer, em “live-action/stop motion”, de teor surrealista, com o título original “Něco z Alenky”. Os estúdios Disney regressaram à figura entre 1991 e 1995, numa série de TV, e em 1999, dá-se nota de nova versão para televisão, desta feita para a NBC, com realização de Nick Willing, e um grande elenco, que incluía Ben Kingsley, Martin Short, Whoopi Goldberg, Peter Ustinov, Christopher Lloyd, Gene Wilder e Miranda Richardson. Tina Majorino era Alice. Em 2008, “Abby in Wonderland” foi um “Sesame Street Special”, lançado directamente em DVD. E chega-se a Tim Burton.

ALICE NO PAIS DAS MARAVILHAS
Título original: Alice in Wonderland
Realização: Tim Burton (EUA, 2010); Argumento: Linda Woolverton, segundo obras de Lewis Carroll ("Alice's Adventures in Wonderland" e "Through the Looking Glass"); Produção: Joe Roth, Jennifer Todd, Suzanne Todd, Linda Woolverton, Richard D. Zanuck, Katterli Frauenfelder, Derek Frey, Chris Lebenzon, Peter M. Tobyansen; Música: Danny Elfman; Fotografia (cor): Dariusz Wolski; Montagem: Chris Lebenzon; Casting: Susie Figgis; Design de produção: Robert Stromberg; Direcção artística: Tim Browning, Todd Cherniawsky, Stefan Dechant, Andrew L. Jones, Mike Stassi, Christina Ann Wilson; Decoração: Karen O'Hara, Peter Young; Guarda-roupa: Colleen Atwood; Maquilhagem: Terry Baliel, Paul Gooch, Bill Myer, Julia Vernon; Direcção de produção: Tommy Harper, Jessie Thiele, Tiffany Wu; Assistentes de realização: Katterli Frauenfelder, Sarah Hood, Emma Horton, Brandon Lambdin; Departamento de arte: Billy Hunter, Tammy S. Lee, Jeff Markwith, Richard F. Mays, David Moreau, Anne Porter; Som :Steve Boeddeker; Efeitos especiais: Michael Lantieri; Efeitos visuais: Greg M. Boettcher, Kristy Lynn Fortier, Jeanny Lee, Michael C. Miller, Sean Phillips, Ken Ralston, Steve Riera, Tim Sassoon, Brian D. Scott, Beth Tyszkiewicz, Carey Villegas, Bjorn Zipprich; Companhias de Produção: Walt Disney Pictures, Roth Films, Zanuck Company, Team Todd; Intérpretes: Mia Wasikowska (Alice), Johnny Depp (Chapeleiro Louco), Helena Bonham Carter (Rainha Vermelha), Anne Hathaway (Rainha Branca), Crispin Glover (Stayne), Matt Lucas (Tweedledee / Tweedledum), Stephen Fry (voz) (Gato Cheshire), Michael Sheen (voz) (Coelho branco), Alan Rickman (voz) (Lagarta Azul), Barbara Windsor (voz) (Dormouse), Timothy Spall (voz) (Bayard), Paul Whitehouse (voz), Marton Csokas (voz), Tim Pigott-Smith, John Surman, Peter Mattinson, Lindsay Duncan, Geraldine James, Leo Bill, Frances de la Tour, Jemma Powell, John Hopkins, Eleanor Gecks, Eleanor Tomlinson, Rebecca Crookshank, Michael Gough, Imelda Staunton, Christopher Lee, Mairi Ella Challen, Holly Hawkins, Lucy Davenport, Joel Swetow, Jessica Oyelowo, Ethan Cohn, Richard Alonzo, etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/12 (Qualidade); Data de Estreia em Portugal: 4 de Março de 2010.

O PORTUGUÊS QUE SE FALA HOJE

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segunda-feira, março 29, 2010

PRESIDENTE HOMENAGEIA TEATRO PORTUGUÊS

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PRESIDENTE DA REPÚBLICA
homenageou o Teatro e os seus profissionais
Na passada sexta-feira, véspera do Dia Mundial do Teatro, o Senhor Presidente da República, Professor Doutor Cavaco Silva, homenageou o Teatro e os seus profissionais, condecorando várias personalidades ligadas à arte dramática, numa cerimónia realizada no Museu dos Coches, especialmente engalanado para a ocasião, que foi simples mas muito bonita, o discurso do Presidente curto, mas emocionado e certo. Foi muito bom ver o Presidente desta nossa República que faz 100 anos não esquecer o Teatro e aqueles que o criam. Talvez umas duzentas (ou trezentas) personalidades estiveram presentes e, de pé, foram saudando aqueles que ali personificavam uma das mais prestigiadas e generosas formas de arte.
Foram condecoradas pelo Presidente da República os actores Ruy de Carvalho (Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada), António Feio, Beatriz Batarda e Manuela Maria, e o encenador Joaquim Benite (Comendadores da Ordem do Infante D. Henrique), a D. Maria Custódia Gião, “ponto” com 40 anos de serviço (Oficial da Ordem do Mérito) e a Companhia de Teatro Seiva Trupe (Membro Honorário da Ordem do Mérito).
Após a cerimónia de agraciamento, e no ano das Comemorações do I Centenário da República, foi apresentado um espectáculo a partir da obra teatral “Sabina Freire”, da autoria do algarvio Manuel Teixeira Gomes, Presidente da República Portuguesa entre 1923 e 1925. O espectáculo foi criado pela Companhia de Teatro de Braga, em co-produção com A Escola da Noite - Grupo de Teatro de Coimbra. A peça é bastante interessante, o espectáculo longe disso. Dele falarei em separado, para não misturar alhos e bugalhos.

SABINA FREIRE

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SABINA FREIRE
Manuel Teixeira Gomes, que foi Presidente da República de Portugal entre 6 de Outubro de 1923 e 11 de Dezembro de 1925, nasceu a 27 de Maio de 1860, em Vila Nova de Portimão. Passou a sua meninice num meio burguês e rico, “numa casa espaçosa e cheia de conforto, sol e flores”. Filho de José Libânio Gomes, comerciante de figos secos, e de Maria da Glória Teixeira Gomes, foi educado pelos pais até entrar no Colégio de São Luís Gonzaga, em Portimão. Aos 10 anos é enviado para o Seminário de Coimbra, frequentando depois a Universidade, onde estuda Medicina. Abandona a universidade, viajando para Lisboa, onde irá dar livre curso às suas inclinações artísticas e a uma vida de certa boémia, entrando no círculo de Fialho de Almeida e João de Deus e conhecendo diversos vultos da cultura literária da época, como Marcelino Mesquita, Gomes Leal e António Nobre.
O pai continuou a apoiá-lo financeiramente, permitindo que Manuel Teixeira Gomes prossiga uma carreira ligada às artes, na literatura, na pintura ou na escultura, acabando por se dedicar à literatura, tornando-se todavia amigo de grandes mestres, como Columbano Bordalo Pinheiro ou Marques de Oliveira. Depois passa ao Porto, onde conhece Sampaio Bruno, tendo colaborado em revistas e jornais, entre eles "O Primeiro de Janeiro" e "Folha Nova" (e “A Luta”, em Lisboa).
Viaja por quase toda a Europa, norte de África e Próximo Oriente, quase sempre em representação comercial da família, para negociar os produtos agrícolas produzidos pelas propriedades do pai (frutos secos, nomeadamente amêndoa e figo). "Fiz-me negociante, ganhei bastante dinheiro e durante quase vinte anos viajei, passando em Portugal poucos meses." (escreve em "Miscelânea"). Após a implantação da República, é nomeado ministro plenipotenciário de Portugal em Inglaterra. Em 11 de Outubro de 1911 apresenta as suas credenciais ao rei Jorge V do Reino Unido, em Londres, cidade onde então se encontrava a família real portuguesa no exílio. A sua simpatia e afabilidade, a sua cultura e civilidade fizeram dele um conviva requisitado, até nos palácios reais.
É de Paris que Afonso Costa sugere a candidatura de Manuel Teixeira Gomes, representante do Partido Democrático. Foi eleito Presidente da República a 6 de Agosto de 1923, viria a demitir-se das suas funções a 11 de Dezembro de 1925, num contexto de grande perturbação política e social. A sua vontade em dedicar-se exclusivamente à literatura foi a sua justificação oficial para a renúncia. Escreveu: "A política longe de me oferecer encantos ou compensações converteu-se para mim, talvez por exagerada sensibilidade minha, num sacrifício inglório. Dia a dia, vejo desfolhar, de uma imaginária jarra de cristal, as minhas ilusões políticas. Sinto uma necessidade, porventura fisiológica, de voltar às minhas preferências, às minhas cadeiras e aos meus livros."
A 17 de Dezembro de 1925, embarca no paquete holandês "Zeus" rumo a Bougie (Argélia), que ele considerava "uma Sintra à beira-mar”, num auto-exílio voluntário, mantendo-se depois sempre opositor frontal ao regime de Salazar, nunca regressando em vida a Portugal. Morreu em 1941 e só em Maio de 1950 os seus restos mortais voltaram à Pátria. As filhas, Ana Rosa Teixeira Gomes Calapez e Maria Manuela Teixeira Gomes Pearce de Azevedo estiveram presentes na cerimónia de "regresso", uma ocasião que veio a tornar-se numa das mais controversas manifestações populares ocorridas na já cidade de Portimão nos tempos da ditadura de Salazar.
Deixou uma importante obra literária, integrada em correntes da época, decadentistas, nefelibatas e uranista (termo que na altura procurava definir uma tendência para a homossexualidade masculina). Há quem levante suposições sobre as suas inclinações sexuais, mas sabe-se que, aos 39 anos, Manuel Teixeira Gomes amou uma bela jovem algarvia de quem terá duas filhas. Chamava-se Belmira das Neves e era oriunda de uma família de pescadores, o que, para a família de Teixeira Gomes terá causado engulhos ao casamento.
Teixeira Gomes terá talvez marcado mais a literatura do que a política. Em 1899 publica "Inventário de Junho", em 1904 "Agosto Azul" e em 1909 "Gente Singular". Toda a sua obra literária está repassada de figuras algarvias (é considerado o escritor do Algarve). A primeira namorada era de Ferragudo, personagens suas são de Aljezur ou Bensafrim, "Sabina Freire" é uma viúva de Portimão.
Manuel Teixeira Comes é uma excepção no panorama dos presidentes da 1ª República. Todas as noites jogava às cartas com o seu secretário. Há quem o considere “um "Corto Maltese" (com mais uns anos) que passa pelo Palácio de Belém até concluir que uma tarefa não era para ele.”
Principais obras: Cartas sem Moral Nenhuma (1904), Agosto Azul (1904), Sabina Freire (1905), Desenhos e Anedotas de João de Deus (1907), Gente Singular (1909), Cartas a Columbano (1932), Novelas Eróticas (1935), Regressos (1935), Miscelânea (1937), Maria Adelaide (1938) ou Carnaval Literário (1938).
“Sabina Freire” é pois de 1905. Crítica severa a costumes políticos e sociais, expressa-se como um drama a roçar o melodrama, e é como tal que deve ser visto. A história põe frente a frente duas mulheres, Sabina Freire e Maria Freire, uma nora, outra sogra, que têm pelo meio o marido e filho, Júlio Freire, que se vê envolvido num conflito fatal de ódios à flor da pele. Maria Freire é uma latifundiária provinciana, algarvia, conservadora, puritana e austera, e Sabina Freire é todo o contrário, uma sequiosa hedonista, irrequieta e temperamental, provocadora e sedutora. Pelo meio, oportunistas e medíocres representantes da política, e dos serviços. O combate faz-se entre as duas mulheres, e todos os outros são personagens secundárias. É um combate sem tréguas. Que conduzirá à tragédia. Esta é uma peça que só assim se pode entender.
Foi esta peça que, em 2009, as companhias do Theatro Circo (Braga) e a do Teatro da Cerca de São Bernardo (Coimbra) levaram à cena, em co-produção, com encenação de Rui Madeira, e interpretação de um elenco constituído por Solange Sá (Sabina), Sílvia Brito (Maria Freire), André Laires (Júlio), Ricardo Kalash (Epifânio), Jaime Soares (Dr. Fino), Carlos Feio (Padre Correia e Procurador Ferreira), António Jorge (Augusto César e Ministro), Miguel Magalhães (Josezinho Soares), Lina Nóbrega (Josefina). O resultado não podia ter sido mais confrangedoramente dramático, pelas premissas que lhe falsearam o caminho. Transformando o melodrama em grotesca paródia, com personagens caricaturais, e dando ao todo um pretensioso sentido jocoso, perde-se todo o sentido e fica um artificioso enredo que é doloroso acompanhar. Neste equívoco total, difícil é descortinar se o elenco tem ou não valor, ainda que, aqui e ali, pareça existir material humano digno de outros voos. A vontade de modernizar a todo o custo, de facilitar ao gosto do público, quase sempre dá maus resultados. É o caso.

(algumas notas sobre Manuel Teixeira Gomes foram recolhidas do site da Presidência da República, dedicado a “Antigos Presidentes”)

quinta-feira, março 25, 2010

FAMAFEST 2010: PRÉMIOS

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“A FOTOGRAFIA DA RAPARIGA DE NAPALM”,
filme alemão, de Marc Wiese,
vence “FAMAFEST' 2010”

O Júri Internacional, composto pelos escritores José Eduardo Agualusa e Fernando Dacosta, pelo realizador francês Alan Marie, a professora universitária e realizadora brasileira Lisa França, a actriz Anabela Teixeira e o encenador Joaquim Benite, a professora universitária Anabela Oliveira, a escritora Maria Eduarda Colares, o musicólogo João Pereira Bastos, a directora da Associação “Europa Viva”, Ana Paula Lemos, e a directora da revista “As Artes entre as Letras”, Nassalete Miranda, decidiu atribuir os seguintes prémios:

Grande Prémio do Famafest 2010:
“A Fotografia da Rapariga de Napalm”, de Marc Wiese (Alemanha)
Grande Prémio da Lusofonia “Manoel de Oliveira”:
“Esta é a Nossa Rua”, de Margarida Metello (Portugal)

Prémio de Melhor Adaptação
“Josef Winkler, o Viajante dos Ecrãs de Cinema”, de Michael Pfeifenberger (Áustria)
Prémio de Melhor Documentário:
“Tradutor” de Pier Paolo Giarolo (Itália)
Prémio de Registo de Realização Cénica (ex aequo):

“Os Miseráveis Eu e Margaret Thatcher” de Fabio Calvi (Itália) e “Don Giovanni” de Paul Oazan (França).
(este prémio foi concedido devido à presença significativa de documentários acerca de manifestações teatrais e musicais e à ausência de filmes destinados a jovens, previsto no regulamento como o Prémio para Melhor Filme Destinado a Jovens).
O júri internacional decidiu ainda atribuir
Prémio Especial do Júri:
“Canto do Massacre do Povo Hebreu” de Felice Cappa (Itália)
Menções Honrosas:
“Aldina Duarte, A Princesa Prometida, de Manuel Mozos (Portugal);
“Guarda n.º 47” de Filip Renc (República Checa);
“A Menina Stinnes dá a Volta ao Mundo em Automóvel”, de Eric Von Muller (Alemanha)
“Utopia e Barbárie” de Silvio Tendler (Brasil).

O Júri da Juventude, pelo seu turno, atribuiu o
Grande Prémio do Júri da Juventude a
“Utopia e Barbárie” de Silvio Tendler (Brasil), com a seguinte declaração: “o olhar de Silvio Tendler é um olhar cheio de força e poesia. É impossível não nos envolvermos afectivamente nesta viagem que é de utopia, de sonho e de esperança, mostrando também o seu contraponto, a barbárie”.
Outros prémios deste Júri:
Prémios Especiais:
“Aldina Duarte, A Princesa Prometida, de Manuel Mozos (Portugal)
“Tradutor” de Pier Paolo Giarolo (Itália).
Menção Honrosa:
“A Fotografia da Rapariga de Napalm”, de Marc Wiese (Alemanha)

A direcção d festival destacou a altíssima qualidade global das obras a concurso e ainda a “excelente adesão de público ao festival”. “Durante os nove dias do Famafest contamos com a presença de cerca de 20 mil espectadores”.
Ao todo, foram exibidos mais de 150 filmes, com entrada gratuita, em diversas salas do concelho, nomeadamente na Casa das Artes, Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, e Casa de Camilo, em Seide S. Miguel. A concurso estiveram mais de 30 filmes oriundos de países como França, Itália, Brasil, Cambodja, República Checa, Alemanha, Bélgica e Portugal, entre outros.

segunda-feira, março 08, 2010

OSCARS 2010: E FOI ASSIM...

:Os independentes de pequeno orçamento batem a grande indústria.
Uma mulher ganha pela primeira vez a melhor realização. E acumula seis Oscars.
O grande derrotado da noite, Tarantino. Quanto a James Cameron. ganhou as bilheteiras e perde (quase) todos os Oscars técnicos (ganha apenas dois artísticos, direcção artística e fotografia, e um de efeitos visuais). O meu lamento: O Laço Branco.

OSCARS DE 2010

MELHOR FILME
Estado de Guerra

MELHOR REALIZADOR
Kathryn Bigelow

MELHOR ACTOR
Jeff Bridges - Crazy Heart

MELHOR ACTRIZ
Sandra Bullock - The Blind Side

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO
Christoph Waltz - Sacanas Sem Lei

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA
Mo'nique - Precious

MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL
Mark Boal - Estado de Guerra

MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO
Geoffrey Fletcher, Precious

MELHOR FILME EM LINGUA NÃO INGLESA
El Secretro de sus Ojo - Argentina

MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO
Up - Altamente!

MEHOR DIRECÇÃO ARTÍSTICA
"Avatar" - Rick Carter and Robert Stromberg; Set Decoration: Kim Sinclair

MELHOR FOTOGRAFIA
"Avatar” - Mauro Fiore

MELHOR GUARDA-ROUPA
"A Jovem Vitória” Sandy Powell

MELHOR DOCUMENTÁRIO
"The Cove" Nominees to be determined

MELHOR DOCUMENTÁRIO - CURTA-METRAGEM
“Music by Prudence” Roger Ross Williams and Elinor Burkett

MELHOR MONTAGEM
“The Hurt Locker” Bob Murawski and Chris Innis

MELHOR MAQUILHAGEM
"Star Trek” Barney Burman, Mindy Hall and Joel Harlow

MELHOR BANDA SONORA
“Up” Michael Giacchino

MELHOR CANÇÃO
“The Weary Kind (Theme from Crazy Heart)” from “Crazy Heart” Music and Lyric by Ryan Bingham and T Bone Burnett

MELHOR CURTA-METRAGEM DE ANIMAÇÃO
“Logorama” Nicolas Schmerkin

MELHOR CURTA-METRAGEM EM IMAGEM REAL
“The New Tenants” Joachim Back and Tivi Magnusson

MELHOR MONTAGEM SONORA
“The Hurt Locker” Paul N.J. Ottosson

MELHOR SONOPLASTIA
"The Hurt Locker” Paul N.J. Ottosson and Ray Beckett

MELHORES EFEITOS VISUAIS
“Avatar” Joe Letteri, Stephen Rosenbaum, Richard Baneham and Andrew R. Jones
Para ler um texto sobre Estado de Guerra, onde declaro todo o meu entusiasmo, já antigo, por Kathryn Bigelow, ir AQUI.

domingo, março 07, 2010

OSCARS 2010. PREVISÕES PARA A NOITE

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OSCARS DE 2010
A minha previsão


MELHOR FILME
Avatar
The Blind Side
Distrito 9
An Education
Estado de Guerra
Sacanas Sem Lei
Precious
A Serious Man
Up - Altamente!
Nas Nuvens

MELHOR REALIZADOR
Kathryn Bigelow
James Cameron
Quentin Tarantino
Lee Daniels
Jason Reitman

MELHOR ACTOR
Jeff Bridges - Crazy Heart
George Clooney - Nas Nuvens
Colin Firth - A Single Man
Morgan Freeman - Invictus
Jeremy Renner - Estado de Guerra

MELHOR ACTRIZ
Sandra Bullock - The Blind Side
Helen Mirren - A Última Estação
Carey Mulligan - An Education
Gabourey Sidibe - Precious
Meryl Streep - Julie e Júlia

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO
Matt Damon - Invictus
Woody Harrelson - The Messenger
Christopher Plummer - A Última Estação
Stanley Tucci - Visto do Céu
Christoph Waltz - Sacanas Sem Lei

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA
Penelope Cruz – Nove
Vera Farmiga - Nas Nuvens
Maggie Gyllenhaal - Crazy Heart
Anna Kendrick - Nas Nuvens
Mo'nique - Precious

MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL
Mark Boal - Estado de Guerra
Quentino Tarantino - Sacanas Sem Lei
Alessandro Camon & Oren Moverman - The Messenger
Joel & Ethan Coen - A Serious Man
Peter Docter, Bob Peterson, Tom McCarthy - Up-Altamente!

MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO
Neill Blomkamp & Terri Tatchell - Distrito 9
Nick Hornby - An Education
Jesse Armstrong, Simon Blackwell, Armando Iannucci & Tony Roche - In The Loop
Geoffrey Fletcher, Precious
Jason Reitman & Sheldon Turner - Nas Nuvens

MELHOR FILME EM LINGUA NÃO INGLESA
Ajami - Israel
El Secretro de sus Ojo - Argentina
The Milk of Sorrow - Chile
O Profeta - França
O Laço Branco - Alemanha

MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO
Coraline
O Fantástico Senhor Raposo
Princesa e o Sapo
The Secrets of Kells
Up - Altamente!

MEHOR DIRECÇÃO ARTÍSTICA
"Avatar" - Rick Carter and Robert Stromberg; Set Decoration: Kim Sinclair
"Parnassus - O Homem que Queria Enganar o Diabo" - Dave Warren and Anastasia Masaro; Set Decoration: Caroline Smith
"Nove" - John Myhre; Set Decoration: Gordon Sim
"Sherlock Holmes" - Sarah Greenwood; Set Decoration: Katie Spencer; Patrice Vermette; Set Decoration: Maggie Gray

MELHOR FOTOGRAFIA
"Avatar” - Mauro Fiore
"Harry Potter e o Principe Misterioso" - Bruno Delbonnel
"Estado de Guerra" - Barry Ackroyd
"Sacanas Sem Lei" - Robert Richardson
"O Laço Branco" - Christian Berger

MELHOR GUARDA-ROUPA
"Bright Star" - Estrela Cintilante” Janet Patterson
"Coco before Chanel” Catherine Leterrier
"Parnassus - O Homem que Queria Enganar o Diabo" - Monique Prudhomme
"Nove" Colleen Atwood
"A Jovem Vitória” Sandy Powell

MELHOR DOCUMENTÁRIO
"Burma VJ" Anders Østergaard and Lise Lense-Møller
"The Cove" Nominees to be determined
"Food, Inc." Robert Kenner and Elise Pearlstein
"The Most Dangerous Man in America: Daniel Ellsberg and the Pentagon Papers" Judith Ehrlich and Rick Goldsmith
"Which Way Home" Rebecca Cammisa

MELHOR DOCUMENTÁRIO - CURTA-METRAGEM
“China’s Unnatural Disaster: The Tears of Sichuan Province” Jon Alpert and Matthew O’Neill
“The Last Campaign of Governor Booth Gardner” Daniel Junge and Henry Ansbacher
“The Last Truck: Closing of a GM Plant” Steven Bognar and Julia Reichert
“Music by Prudence” Roger Ross Williams and Elinor Burkett
“Rabbit à la Berlin” Bartek Konopka and Anna Wydra

MELHOR MONTAGEM
“Avatar” Stephen Rivkin, John Refoua and James Cameron
“District 9” Julian Clarke
“The Hurt Locker” Bob Murawski and Chris Innis
“Inglourious Basterds” Sally Menke
“Precious: Based on the Novel ‘Push’ by Sapphire” Joe Klotz

MELHOR MAQUILHAGEM
“Il Divo” Aldo Signoretti and Vittorio Sodano
"Star Trek” Barney Burman, Mindy Hall and Joel Harlow
“The Young Victoria” Jon Henry Gordon and Jenny Shircore

MELHOR BANDA SONORA
“Avatar” James Horner
“Fantastic Mr. Fox” Alexandre Desplat
“The Hurt Locker” Marco Beltrami and Buck Sanders
“Sherlock Holmes” Hans Zimmer
“Up” Michael Giacchino

MELHOR CANÇÃO
“Almost There” from “The Princess and the Frog” Music and Lyric by Randy Newman
“Down in New Orleans” from “The Princess and the Frog” Music and Lyric by Randy Newman
“Loin de Paname” from “Paris 36” Music by Reinhardt Wagner Lyric by Frank Thomas
“Take It All” from “Nine” Music and Lyric by Maury Yeston
“The Weary Kind (Theme from Crazy Heart)” from “Crazy Heart” Music and Lyric by Ryan Bingham and T Bone Burnett

MELHOR CURTA-METRAGEM DE ANIMAÇÃO
“French Roast” Fabrice O. Joubert
“Granny O’Grimm’s Sleeping Beauty” Nicky Phelan and Darragh O’Connell
“The Lady and the Reaper (La Dama y la Muerte)” Javier Recio Gracia
“Logorama” Nicolas Schmerkin
“A Matter of Loaf and Death” Nick Park

MELHOR CURTA-METRAGEM EM IMAGEM REAL
“The Door” Juanita Wilson and James Flynn
“Instead of Abracadabra” Patrik Eklund and Mathias Fjellström
“Kavi” Gregg Helvey
“Miracle Fish” Luke Doolan and Drew Bailey
“The New Tenants” Joachim Back and Tivi Magnusson

MELHOR MONTAGEM SONORA
“Avatar” Christopher Boyes and Gwendolyn Yates Whittle
“The Hurt Locker” Paul N.J. Ottosson
“Inglourious Basterds” Wylie Stateman
“Star Trek” Mark Stoeckinger and Alan Rankin
“Up” Michael Silvers and Tom Myers

MELHOR SONOPLASTIA
“Avatar” Christopher Boyes, Gary Summers, Andy Nelson and Tony Johnson
"The Hurt Locker” Paul N.J. Ottosson and Ray Beckett
“Inglourious Basterds” Michael Minkler, Tony Lamberti and Mark Ulano
“Star Trek” Anna Behlmer, Andy Nelson and Peter J. Devlin
“Transformers: Revenge of the Fallen” Greg P. Russell, Gary Summers and Geoffrey Patterson

MELHORES EFEITOS VISUAIS
“Avatar” Joe Letteri, Stephen Rosenbaum, Richard Baneham and Andrew R. Jones
“District 9” Dan Kaufman, Peter Muyzers, Robert Habros and Matt Aitken
“Star Trek” Roger Guyett, Russell Earl, Paul Kavanagh and Burt Dalton.


Nota: a verde os que penso que vão sair vencedores. A vermelho, nalguns casos, os que eu gostaria de ver triunfar, quando não coincidirem com os a verde.

Há categorias que desconheço por completo os nomeados. Não me pronuncio.

CINEMA: ESTADO DE GUERRA

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ESTADO DE GUERRA

Este ano, na cerimónia de atribuição dos Oscars, vai haver uma situação a merecer atenção muito especial. Nas categorias de melhor filme e de melhor realizador vão estar em disputa, frente a frente, James Cameron, com “Avatar” e Kathryn Bigelow com “Estado de Guerra”, um casal que já foi marido e mulher (1). Aprofundando esta curiosidade, há que recordar de um lado um dos filmes mais caros de sempre, que se converteu na maior fonte de receitas até hoje conhecida, enquanto, no outro extremo, temos uma obra de orçamento reduzido, que, apesar da boa recepção crítica e do triunfo em festivais e diversas premiações, não conseguiu descolar da 131ª posição no “box oficce” anual norte-americano. Sendo ambos filmes de guerra, um futurista, outro bem real e presente, realista e quase documental, ambos se servem da guerra para a combater e ambos se mostram relutantes com a presença americana fora de portas, a impor a sua ordem. Se este aspecto os irmana, já o lado majestosamente espectacular de “Avatar” se afasta completamente do intimismo de “The Hurt Locker”, o que para um “filme de guerra”, não deixa de ser absolutamente surpreendente.
Diga-se ainda de Kathryn Ann Bigelow que esta é uma das mais interessantes cineastas norte-americanas reveladas na década de 80. Nascida a 27 de Novembro de 1951, em San Carlos, Califórnia, filha de um gerente de fábrica de tintas e de uma livreira, foi como bolseira do Whitney Museum, em Nova Iorque, que começou a sua carreira de pintora. Depois, estudou cinema, teoria e crítica, na Columbia University, onde foi aluna de Vito Acconci e Susan Sontag.
O seu filme de estreia foi uma curta-metragem de ficção, “The Set-Up” (1978), onde se analisavam comportamentos violentos. Seguiu-se “The Loveless” (1982), mas foi sobretudo com “Near Dark” (Depois do Anoitecer, 1987), uma aproximação ao filme fantástico com vampiros, que começou a ser notada. Em 1990 escreve e dirige “Blue Steel” (Aço Azul), com Jamie Lee Curtis, um “thriller” tumultuoso sobre uma mulher polícia perseguida, e em perseguição, de um assassino psicótico. Com “Point Break” (Ruptura Explosiva, 1991), protagonizado por Keanu Reeves, um agente do FBI que tenta prender um gang de assaltantes de bancos que actua com máscaras dos ex-presidentes dos EUA, Reagan, Nixon, LBJ e Jimmy Carter, volta a captar as atenções de público e crítica, que se rendem definitivamente ao seu talento em "Strange Days" (Estranhos Prazeres, 1995), uma psicadélica e violenta incursão por uma Los Angeles de pesadelo. O filme seguinte, “The Weight of Water”, baseado num romance de Anita Shreve, que abordava as relações tensas e sufocantes entre duas mulheres. “K-19: The Widowmaker” (2002), com Harrison Ford, foi um fracasso de bilheteira, que impôs a Bigelow um período de tréguas, regressando em força com “The Hurt Locker” (Estado de Guerra, 2009). Entretanto foi afiando as garras nalguns episódios de séries para televisão, como "Wild Palms" (1993), "Homicide: Life on the Street" (3 episódios, 1998-1999) ou "Karen Sisco" (1 episódio, 2004). Tem em pré produção “The Miraculous Year”, para televisão, previsto para 2011.
“Estado de Guerra” concretiza a consagração, qualquer que seja os resultados dos Oscars. Já ganhou o prémio para melhor realizador do ano da “Directors Guild of America”, foi melhor realizador e melhor filme de 2009, para a British Academy Film Awards, ganhou nomeações para os Golden Globe e os Oscars. James Cameron, que arrecadou o Globo, afirmou que Bigelow deveria ter sido a vencedora. Mas foi a primeira mulher a ganhar um BAFTA Award, para melhor realização, e a sua nomeação para melhor realizadora, nos Oscras, só tem três precedentes: Lina Wertmüller, com “Pasqualino das Sete Beldades” (1976), Jane Campion, com “O Piano” (1993), e Sofia Coppola, com “Lost in Translation” (2003). Se ganhar, é a primeira a consegui-lo nesta categoria.
Posto isto, “Estado de Guerra” é realmente um grande filme, que vive agarrado a três ou quatro personagens, militares americanos na guerra do Iraque, especialistas em localizar e despoletar minas e bombas. O cenário não pode ser mais desolador e miserável, as ruas esventradas de Bagdad, o lixo arrastado pelo vento, a areia a entranhar-se nas roupas e nos olhos, e um militar vestido de astronauta caminhando numa paisagem de “western spagheti”. Um robot que parece saído da “Guerra das Estrelas” dos pobrezinhos tenta desmantelar à distância uma mina, mas quebra uma das rodas, e lá parte o astronauta intrépido no seu encalço, procurando resolver com os dedos o que não foi conseguido com a tecnologia. A tensão cresce, mas este é apenas um dos lados da questão. O mais angustiante é ver os soldados numa rua de uma cidade que desconhecem, armas apontadas às casas e a cada transeunte que passa, olhos dilatados pela dúvida, pela suspeita, pela impossibilidade de confiarem em quem quer que seja. Nesta guerra não há aliados, só inimigos. Ou potenciais inimigos. Um rosto que se aproxima é alguém que tem de se afastar ou de se abater, um olhar por detrás de um cortinado, um comerciante a teclar num telemóvel, um rebanho a pastar lá longe, tudo adquire um peso insuspeito, uma presença inquietante, e a tensão redobra.
A câmara movimenta-se à mão, e esta oscilação é mais um elemento perturbador. Aproxima-se, afasta-se, re-enquadra o espaço, corre em direcção ao estranho objecto, rente ao chão, vagueia nos primeiros andares destas casas que se fecham sobre si próprias, e este estilo de narração é a essência do próprio filme. A câmara são os olhos perscrutantes dos militares, intimidados e alerta.
Há uma legenda a abrir o filme que reza assim: “A emoção da batalha costuma ser um vício forte e letal. A guerra é uma droga”. O autor Chris Hedges, jornalista e correspondente de guerra, especialista no Médio Oriente, é autor de obras como “Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle” (2009). James, protagonista deste filme, é um viciado em saturação de adrenalina. Para ele o perigo é uma espécie de roleta russa que deseja ou um suicídio programado ao jogo. Não se põe em risco só a si, mas a toda a equipa que comanda, homens que o detestam e o admiram simultaneamente.
O argumento de “Estado de Guerra” parte das experiências pessoais de Mark Boal, jornalista e argumentista, que experimentou a guerra “in loco” e dela já tinha extraído material para um outro filme, "No Vale de Elah", de Paul Haggis. O resultado é brilhante, colocando-se ao lado dos melhores filmes que a barbárie da guerra já inspirou. Rodado na Jordânia, deixa-se impregnar pela secura do deserto e a desconfiança do clima. Nove nomeações para Oscars, entre as quais a de melhor filme, melhor realização e melhor actor, Jeremy Renner, são reconfortantes recompensas para uma autora que, ao longo da sua curta mas impressiva carreira, se tem dedicado a estudar e analisar com particular acuidade casos de alienante adição, quer seja à violência, às drogas ou ao perigo que a guerra transporta.

(1) Completando a curiosidade, diga-se que Cameron já foi casado por cinco vezes: Sharon Williams (1978–1984), Gale Anne Hurd (1985–1989), Kathryn Bigelow (1989–1991), Linda Hamilton (1997–1999), Suzy Amis (2000–até ao presente). Oscilando, portanto, entre realizadoras e actrizes.

ESTADO DE GUERRA
Título original: The Hurt Locker
Realização: Kathryn Bigelow (EUA, 2008); Argumento: Mark Boal; Produção: Kathryn Bigelow, Mark Boal, Nicolas Chartier, Jenn Lee, Tony Mark, Donall McCusker, Jack Schuster, Greg Shapiro; Música: Marco Beltrami, Buck Sanders; Fotografia (cor): Barry Ackroyd; Montagem: Chris Innis, Bob Murawski; Casting: Mark Bennett; Design de produção: Karl Júlíusson; Direcção artística: David Bryan; Decoração: Amin Charif El Masri; Guarda-roupa: George L. Little; Maquilhagem: Daniel Parker, Robin Pritchard, Janice Rhodes; Direcção de Produção: Karima Ladjimi, Jack Schuster; Assistentes de realização: Nicolas Duchemin Harvard, Michelle Fitzpatrick, David Ticotin; Departamento de arte: Rime Al-Jabr, Sana'a Jaber, Marwan Kheir, Mike Malik, Gary Thomas; Som: Paul N.J. Ottosson; Efeitos especiais: Blair Foord, Ernst Gschwind, Richard Stutsman; Efeitos visuais: Benjamin H. Bernard, Changsoo Eun, Tom Kendall, Dan Lopez, Kurt McKeever, Bob Minshall, Alex Romano, Doug Spilatro; Companhias de produção: First Light Production, Kingsgate Films; Intérpretes: Jeremy Renner (Sgt. William James), Anthony Mackie (Sgt. JT Sanborn), Brian Geraghty (Spc. Owen Eldridge), Guy Pearce (Sgt. Matt Thompson), Ralph Fiennes (chefe de grupo), David Morse (Coronel Reed), Evangeline Lilly (Connie James), Christian Camargo (Coronel John Cambridge), Suhail Aldabbach, Christopher Sayegh, Nabil Koni, Sam Spruell, Sam Redford, Feisal Sadoun, Barrie Rice, Imad Dadudi, Erin Gann, Justin Campbell, Malcolm Barrett, Kristoffer Ryan Winters, J.J. Kandel, Ryan Tramont, Michael Desante, Hasan Darwish, Wasfi Amour, Nibras Quassem, Ben Thomas, Nader Tarawneh, Anas Wellman, Omar Mario, Fleming Campbell, David Gueriera, Kate Mines, etc. Duração: 131 minutos; Distribuição em Portugal: ZON Lusomundo; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 17 de Setembro de 2009
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quarta-feira, março 03, 2010

CINEMA: NOVE

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NOVE


Rob Marshall realizou um musical com algum interesse, “Chicago”, que foi muito bem recebido pelo público e por alguma crítica. Foi bafejado nos Oscars desse ano. Voltou ao género com “Nine”, segundo um outro musical estreado na Broadway vai para 27 anos, e que aborda obviamente um momento da carreira de Federico Fellini, inspirando-se nalgumas das suas obras, obviamente em “Fellini 8 ½”, mas também nalgumas outras, como “Amarcord”, “A Doce Vida”, “Roma”, “A Cidade das Mulheres” ou mesmo “Julieta dos Espíritos”. A ideia era falar de um cineasta talentoso, em crise de inspiração, sem argumento para o filme cuja rodagem se aproxima, mas rodeado de mulheres que disputam o seu amor, desde a legítima (Marion Cottilard) à mãe (Sophia Loren), passando pela absorvente amante (Penélope Cruz), a loura protagonista do seu próximo filme (Nicole Kidman), a velha amiga e figurinista (Judi Dench), a repórter da revista “Vogue” (Kate Hudson) ou mesmo uma certa Saraghina, prostituta recordada dos seus tempos de criança (Fergie, vocalista do grupo “Black Eyed Peas”). Tudo mulheres que, segundo Rob Marshall, seriam aprovadas por Fellini, num hipotético casting. Admitamos.
Guido Contini (Daniel Day-Lewis) é um genial realizador italiano dos anos 60, que se prepara para dirigir a sua nona obra. Logo a seguir, portanto, à anterior, que teria sido “8 e ½” (Fellini contabilizara na sua filmografia, até essa altura, sete longas, duas curtas e uma entrada num filme em episódios para chegar a esse número). Mas a crise de inspiração é total, e os problemas emocionais multiplicam-se, acusado de não querer crescer, de ser mulherengo, infiel, inconsciente e tudo o mais. O filme é uma sandes múltipla de cenas faladas e números musicais, cada um deles interpretado por uma das actrizes (algumas bisam) e há os bons e os medíocres (nos primeiros Penélope Cruz, Marion Cottilard e Fergie, nos segundos Kate Hudson). No final, a vida intensa por que passa Guido Contini acabará por o inspirar a rodar precisamente esse filme, aquele que acabámos de ver.
Bons cenários, alguns números bem conseguidos, uma Penélope Cruz em excelente forma, um elenco de luxo que se passeia pela passerelle, e um Daniel Day-Lewis que é uma sombra do excelente actor que realmente é, dado que também a ele lhe falta papel – a sua personagem torna-se refém de uma indefinição de tom e de essência absoluta. No que é acompanhado pela trôpega direcção de Rob Marshall, muito desequilibrada, com alguns (raros) bons momentos e outros arrastados e desinspirados.
Rob Marshall conhece bem a lição de Bob Fosse, e gostaria de rodar um novo “All That Jazz”, mas falta-lhe talento e garra. O que consegue é um arremedo sem grande fulgor, uma obra de técnica mais ou menos competente (por vezes a montagem nem isso é, desaproveitando momentos de alguns números, que deveriam usar uma linguagem mais discreta, deixado brilhar as estrelas, isto é, neste caso, cantores e bailarinos).
Interessante como projecto, mas falhado como resultado, “Nine” aconselha prudência enquanto se espera por “Dez”, qualquer que ele seja.

NOVE
Título original: Nine
Realização: Rob Marshall (EUA, 2009); Argumento: Michael Tolkin, Anthony Minghella, segundo musical da Broadway, de Arthur Kopit, Maury Yeston e Mario Fratti; Produção: John DeLuca, Rob Marshall, Marc Platt, Harvey Weinstein; Música: Andrea Guerra; Fotografia (cor): Dion Beebe; Montagem: Claire Simpson, Wyatt Smith; Casting: Kate Dowd, Francine Maisler, Razzauti Teresa; Design de produção: John Myhre; Direção atística: Peter Findley, Phil Harvey, Simon Lamont; Decoração: Gordon Sim; Guarda-roupa: Colleen Atwood; Maquilhagem: Catherine Davies, Tamsin Dorling, Peter King, Ana Lozano, Kerry Warn; Director de produção: Gary Birmingham, Tania Blunden, Kelly Helstrom; Assistente de realização: Vicki Allen, John DeLuca, Filippo Fassetta, Martin Harrison, Chris Stoaling, Charlie Waller; Som: Harry Cohen; Efeitos Especiais: Helen Badley, Peter Hutchinson, Stephen Hutchinson; Efeitos Visuais: Antony Bluff, Piers Hampton, Claire McGrane, Mark Nelmes; Companhias de Produção; The Weinstein Company, Relativity Media, Marc Platt Productions, Lucamar Productions, Cattleya; Intérpretes: Daniel Day-Lewis (Guido Contini), Marion Cotillard (Luisa Contini), Penélope Cruz (Carla), Nicole Kidman (Claudia), Judi Dench (Lilli), Kate Hudson (Stephanie), Sophia Loren (Mamma), Stacy Ferguson (Saraghina), Ricky Tognazzi (Dante), Giuseppe Cederna (Fausto), Elio Germano (Pierpaolo), Andrea Di Stefano, Roberto Nobile, Romina Carancini, Alessandro Denipotti, Alessandro Fiore, Erica Gohdes, Gianluca Frezzato, Paola Zaccari, Roberta Mastromichele, Francesco De Vito, Francesca Fanti, Enzo Cilenti, Enzo Squillino Jr., Michael Peluso, Jonathan Del Vecchio, Jake Canuso, Eliot Giuralarocca, Tommaso Colognese, Valerio Mastandrea, Damiano Bisozzi, Marcello Magni, Anna Maria Everett, Remo Remotti, Michele Alhaique, Martina Stella, Mark Bousie, Giuseppe Spitaleri, Mario Vernazza, Monica Scattini, Roberto Citran, Georgina Leonidas, Vincent Riotta, Eleonora Scopelliti, Ilaria Cavola, Alessia, Giovanni Luca Izzo, Simone Cappotto, Giacomo Valdameri, Anna Safroncik, James Currie, Roberta Mastromichele, etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimedia; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 14 de Janeiro de 2010.

CINEMA: O LAÇO BRANCO

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O LAÇO BRANCO

“O Laço Branco” explode no interior de uma paisagem triste de uma aldeia alemã em meados da primeira década do século XX, em pleno período pré I Guerra Mundial. Mas explode sobretudo no contexto de uma geografia humana que oscila entre o mais completo negrume e a cinza magoada. É um universo de adultos e crianças, num desolador horizonte onde se vão precipitando inquietantes acontecimentos, que resultam em indecifráveis enigmas. De um lado, os impolutos cidadãos de uma sociedade feudal, machista, autoritária, prepotente e exploradora dos mais fracos. Do outro lado, os rostos puros mas muito pouco ingénuos das crianças da aldeia que frequentam a escola do jovem professor que procura colocar alguma humanidade nas suas vidas. Quando se assiste a esta obra-prima de Michael Haneke não podemos deixar de recordar um outro excelente filme, “A Aldeia dos Malditos”, de Wolf Rilla (1960), ambientado igualmente numa pequena aldeia, desta feita no Midwich de Inglaterra, onde surge uma geração de jovens concebidos no mesmo dia e à mesma hora, uma hora de um dia parado no tempo, que permitiu a extraterrestres invasores apoderarem-se dos úteros das mulheres e conceberem seres maléficos que serão os seus pioneiros na Terra. Em “O Laço Branco” os extraterrestres são bem humanos, na sua desumanidade. Não descem do céu, vivem na terra e concebem crianças que não chegam com o Mal dentro de si, mas o vão aprendendo lenta e dolorosamente no dia a dia. “Das Weisse Band” é a crónica intimista dessa aprendizagem. O ódio instila-se, ganha-se, apodera-se de nós, inscreve-se no corpo dúctil de uma criança, cresce com as imagens que se vêem, com as dores que se sentem, com as injustiças que se interiorizam. É uma aprendizagem rigorosa, até se sentir o ressentimento, até se dominar a dor, até se calar o sofrimento, até que os olhos só vomitem ódio, até que se aprenda a lição de que temos de ser fortes, muito fortes, porque só os mais fortes resistem, porque são os mais fortes que comandam a aldeia, a cidade, o país, o mundo. “Sieg Heil!, Heil Hitler!, Heil mein Führer!”
É isso mesmo que Michael Haneke nos procura fazer ver com o seu angustiante “O Laço Branco”. Foi deste barro que se fizeram os soldados que invadiram a Europa, tentando impor uma raça ariana. Foi desta argamassa que se criaram os cidadãos que se transformaram em turbas assassinas ao som de trombetas imperais. Foram estas crianças que, vinte anos depois, invadiram a Polónia e atravessaram Paris. Foram justamente elas que guardaram os campos de concentração onde se deu o Holocausto. Foram crianças crispadas pelo horror de uma educação sem amor, sem ternura, sem o afago de uma mão ou a doçura de um olhar, com a ponta do chicote em punho, para vergastar o mais pequeno desvio, ou manter sob o jugo da prepotência e da exploração trabalhadores e mulheres. Muitas delas cúmplices nada inocentes do que presenciavam e aplaudiam.
Aparentemente a aldeia onde decorrem esses perturbantes factos é um local idílico. A calma é total, ou parece sê-lo. Até ao dia em que o cavalo do médico da aldeia tropeça num arame que une dois troncos de árvores e envia o homem para o hospital e o cavalo para abate. Depois há um incêndio de que ninguém descobre as causas, um agricultor que aparece enforcado, crianças que são torturadas e desaparecem na floresta, um pássaro que sai da gaiola para aparecer estripado por uma tesoura na secretária do barão todo-poderoso. A violência existe, por debaixo de uma capa de austeridade, de rigoroso puritanismo, de asfixiante pobreza e miséria moral.
Haneke não dá tréguas ao espectador, mas sem nunca entrar pelo caminho mais fácil da violência exposta. O que vemos, quase sempre, são sintomas ou consequências dessa violência calada, interiorizada, estrangulada. O que há de absolutamente notável neste filme surpreendente é que com a maior economia de meios se cria uma tensão insustentável. O que impera no filme não é o terror barato do “mata e esfola”, mas o horror institucionalizado, normalizado, quotidiano. É o terror imposto do interior, no interior. Um terror que marca fundo, que sulca de estigmas perenes quem o vive e a ele sobrevive. Um terror que fortalece e fulmina nos olhos das crianças. Crianças que avançam em bandos disciplinados e secretos, que progridem ameaçadoramente, com a aparente doçura da sua pele branca e olhos claros (as crianças de “A Aldeia dos Malditos” eram igualmente louras, de olhos transparentes). Que no seu íntimo, porém, vão gerando “O Ovo da Serpente” de que falou Bergman.
Haneke é austríaco e sabe do que fala, mesmo quando fala de jovens alemães, os mesmos que invadiram o seu país e foram saudados por muitos compatriotas que se associavam às ideias do nacional-socialismo emergente. O cinema de Haneke nunca deixou de ser inquietante, e nunca se furtou a abordar formas de violência quotidiana, geradas no silêncio e que explodem na clandestinidade do tempo proibido (“Jogos Proibidos”, “Brincadeiras Perigosas”, “Código Desconhecido”, “A Pianista”, “Caché - Nada a Esconder”, “O Tempo do Lobo”, ou essa adaptação de “O Castelo”, revelada em Portugal pelo Famafest, numa das suas primeiras edições).
A realização do cineasta austríaco atinge aqui um rigor e uma depuração que relembram os grandes mestres nórdicos (de Stroheim a Dreyer ou Bergman). A direcção de actores é majestosa na sobriedade e na fulgurância dos resultados, nessa inquietante atmosfera que se cria na combinação da tensão da atmosfera humana e da densa paisagem. A fotografia de Christian Berger é simplesmente magistral, num preto e branco pesado que cria as cores do terror do nada e veste o ecrã de uma magnitude de sombras tenebrosas. Um filme que tudo indica vai conquistar dois merecidos Oscars, o de melhor filme em língua não inglesa e o de melhor fotografia. Uma obra opressiva que o espectador demora a digerir, que se instala no seu subconsciente e diariamente o martela, sem complacências. O cinema no seu estádio mais puro, mais exigente, mais absorvente.

O LAÇO BRANCO
Tìtulo original: Das Weisse Band
Realização: Michael Haneke (Áustria, Alemanha, França, Itália, 2009); Argumento: Michael Haneke; Produção: Stefan Arndt, Veit Heiduschka, Michael Katz, Margaret Ménégoz, Ulli Neumann, Andrea Occhipinti; Fotografia (cor): Christian Berger; Montagem: Monika Willi; Casting: Simone Bar, Carmen Loley, Markus Schleinzer; Design de produção: Christoph Kanter; Direção artística: Anja Müller; Decorações: Heike Wolf; Guarda-roupa: Moidele Bickel; Maquilhagem: Anette Keiser, Waldemar Pokromski; Director de produção: Miki Emmrich; Assistente de realização: Hanus Polak Jr., Patrick Winkler; Departamento de Arte: Enzo Enzel, Gonda Hinrichs, Ilse Töpfer; Som: Vincent Guillon, Jean-Pierre Laforce, Michel Monier, Guillaume Sciama; Efeitos Especiais: Gerd Feuchter; Companhias de Produção: X-Filme Creative Pool, Wega Film, Les Films du Losange, Lucky Red, Medienboard Berlin-Brandenburg, Mitteldeutsche Medienförderung (MDM), German Federal Film Board, Mini-Traité Franco-Canadien, Deutsche Filmförderfonds (DFFF), Austrian Film Institute, Vienna Film Financing Fund, Ministère de la Culture et de la Communication, Eurimages, Canal+; Intérpretes: Christian Friedel (Professor), Ernst Jacobi (Professor - voz), Leonie Benesch (Eva), Ulrich Tukur (Barão), Ursina Lardi (Baronesa), Fion Mutert (Sigi), Michael Kranz (Professor de casa), Burghart Klaußner (Padre), Steffi Kühnert (Mulher do padre), Maria-Victoria Dragus (Klara), Leonard Proxauf (Martin), Levin Henning (Adolf), Johanna Busse (Margarete), Thibault Sérié, Josef Bierbichler, Gabriela Maria Schmeide, Janina Fautz, Enno Trebs, Theo Trebs, Rainer Bock, Susanne Lothar, Eddy Grahl, Branko Samarovski, Klaus Manchen, Birgit Minichmayr, Sebastian Hülk, Kai-Peter Malina, Kristina Kneppek, Stephanie Amarell, Aaron Denkel, Detlev Buck, Anne-Kathrin Gummich, Carmen-Maja Antoni, Christian Klischat, Michael Schenk, Hanus Polak Jr., Sara Schivazappa, etc. Duração: 144 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 7 de Janeiro de 2010.

terça-feira, março 02, 2010

VERGILIO FERREIRA, PARA SEMPRE

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RECORDANDO VERGILIO FERREIRA



A RTP 2 recorda Vergilio Ferreira com muitos excertos de um filme meu,
"Vergilio Ferreira numa "Manhã Submersa".
(Obrigado Pires F. por mo ter recordado)
e, já agora, uma outra sugestão, esta da Vanessa:

igualmente com muitos excertos do mesmo meu filme