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quarta-feira, março 31, 2010

ALICE NO PAÍS DE HARRY POTTER?

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ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Não seria de todo expectável, nem se compreende muito bem, mas aceita-se. Todo o criador, mesmo o maior, pode ter os seus momentos de desinspiração. Tim Burton é um dos cineastas contemporâneos que mais aprecio, mas este seu “Alice in Wonderland” deixa-me realmente estupefacto, pois sempre pensei que o universo de Lewis Carrol se poderia ajustar muito bem ao seu. E a aproximação poderia dar-se precisamente pelo lado em que mais parece falhar esta sua adaptação: se o “País das Maravilhas” do escritor inglês é um local totalmente surreal, onde a lógica existe mas se submete a uma outra construção, se o “non sense” é completo, se a ausência de “moral” só existe nas cogitações de uma condessa que é obviamente parodiada como representante de um convencionalismo racional totalmente desfasado deste mundo de fantasia onde tudo é possível e nada implica uma moral “normal”, se esta é a proposta de Lewis Carrol, a de Tim Burton parece desviar-se 180 graus, organizando o universo de Alice segundo convenções narrativas e morais, de todo em todo dessincronizadas com o projecto original.
Sabe-se que Tim Burton é um autor de uma imaginação plástica e de um requintado gosto fantástico. Não surpreende por isso que este filme mantenha uma altíssima qualidade plástica, com ambientes soberbamente criados, personagens vistosas e imaginativas. Há figuras que ficarão certamente no imaginário cinematográfico deste início do século XXI, como a Rainha Vermelha ou o Chapeleiro Louco (duas soberbas presenças de Helena Bonham Carter e Johnny Depp). Há paisagens que não esqueceremos mais. Há situações de todo em todo merecedoras do talento de um homem que nos deu anteriormente, entre outros, “Eduardo, Mãos de Tesoura”, “Ed Wood”, “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”, “O Grande Peixe” ou “Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street”. Acontece que o resultado final não só deixa um amargo de boca, como vai ainda mais longe, justificando uma sensação de desilusão e falhanço. Numa palavra: Tim Burton errou o alvo, transformou a genial e subversiva inspiração de Lewis Carol num convencional filme de aventuras fantásticas que em muito se assemelha a mais um episódio da serie “Harry Potter” (não que eu despreze “Harry Porter” que, por vezes, é divertido, mas a verdade é que Lewis Carrol e J. K. Rowling estão em patamares distintos da História da Literatura).
A ideia de Tim Burton não foi adaptar fielmente os dois volumes de Lewis Carrol, "Alice's Adventures in Wonderland" e "Through the Looking Glass". O cineasta partiu do princípio que todos nós conhecíamos as aventuras de Alice e as personagens que com ela se cruzaram para a imaginar, quinze anos depois, a voltar aos mesmos locais. Em circunstâncias diferentes, mas partindo de um idêntico estado de espírito. No romance de Lewis Carrol, Alice, uma rapariguinha de dez anos, “começava a aborrecer-se imenso de estar sentada à beira-rio com a irmã, sem nada para fazer”. “Foi então que, de repente, um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa passou a correr ao pé dela.” E o Coelho dizia: “Credo! Credo! Vou chegar atrasadíssimo!” Alice estava, portanto, aborrecidíssima com a monotonia da sua vida, quando o Coelho a desvia para um outro universo, onde se precipita vorazmente. Agora, no filme de Tim Burton (cujo argumento traz a assinatura de Linda Woolverton), Alice, quinze anos mais velha, e ainda no final de século XIX, continua a não conviver bem com as convenções do quotidiano e não acha graça mesmo nenhuma a um casamento que lhe preparam com um insonso aristocrata que pede a sua mão perante uma expectante e entusiasta plateia de “peraltas e sécias”. E passa outra vez o Coelho Branco, e Alice volta a cair na auto-armadilha do seu sonho de fuga à realidade. (Diga-se que a Alice de Tim Burton, Mia Wasikowska, não nos parece ter sido muito bem escolhida, pois, apesar do seu persistente ar espantado, não oferece outras garantias de inquietação interior e de gosto pelo reino da fantasia). Depois lá vão aparecendo gatos e lagartas, animais e plantas de vários portes, e todos eles bem falantes, os gémeos Tweedledee e Tweedledum, lá surge o Chapeleiro Louco, lá vem o elogio “da loucura que habita em todos nós” e de que não nos devemos libertar, sob pena de cairmos na mais comezinha realidade sem fascínio ou sedução. Entramos, então, no castelo da Rainha Vermelha, que não pode ser contrariada e manda cortar a cabeça a todos quantos, mesmo hipoteticamente, a desafiam. E esta mudança da Rainha de Copas original pela Rainha de Vermelho introduz o desvario. Ambas existem nos livros de Lewis, a primeira em “Alice in Wonderland”, a segunda em “Alice Through the Looking Glass”. A questão não está aí. A questão está no que desbloqueia a situação: espadas mágicas que recordam Excalibur, dragões e pássaros que remetem para Harry Porter, lutas fratricidas entre as irmãs Rainha de Vermelho e Rainha de Branco pela posse da coroa, tudo isto desvirtua o espírito da obra de onde parte, sem lhe acrescentar nada de substancialmente novo ou original. Muito pelo contrário: se o ambiente é plasticamente de encher o olho, as situações ficam pelo trivial e a moral da luta entre o Bem e o Mal aproxima-se muito das moralidades da Condessa que desapareceu mas parece ter-se imiscuído no pensamento de Tim Burton.
Mas atentemos ainda num outro aspecto da deriva do realizador: os ambientes. O mundo da fantasia de Alice é, no filme, pesado e asfixiante. A queda de Alice não a transporta a um mundo de liberdade total onde tudo é possível, mas a uma atmosfera pesada e densa, de cores trágicas, que mais se assemelha a um pesadelo que a um sonho libertário. Por isso lhe chama “underland”. No que se vai socorrer do primitivo título destas aventuras de Lewis Carrol: “Alice in the Underland”. Esta opção corresponde a sombrias sombras dos nossos dias? É possível que esse tenha sido o propósito, mas que altera por completo a ideia libertária de Lewis Carrol. Em Tim Burton nem o reino dos sonhos nos salva do pesadelo e entre a realidade e a fantasia não há grande diferença.
Também a utilização das 3D não traz nada de novo, a não ser uma muito bem conseguida sticada no jogo de cróquete (uma versão muito pessoal do criquete, com flamingos em vez de tacos e ouriços-cacheiros a fazerem a vez de bolas).
Escrita em 1865 por um cónego de nome Charles Lutwidge Dodgson, que adoptou o pseudónimo de Lewis Carroll, “Alice's Adventures in Wonderland” ou mais simplesmente “Alice in Wonderland”, é uma das obras chaves da literatura de “nonsense", muito apreciada por surrealistas e vanguardistas.
“Alice” no cinema
“Alice, the March Hare, and the Mad Hatter at the "Mad Tea-Party" foi a primeira adaptação ao cinema que se conhece, dirigida por Cecil Hepworth, em 1903. Seguiram-se outras versões ainda mudas: “Alice's Adventures in Wonderland”, de Edwin Stanton Porter (1910), “Alice in Wonderland”, de W. W. Young (1915). Já na época do filme sonoro, as versões sucederam-se: “Alice in Wonderland”, de Bud Pollard (1931) ou “Alice in Wonderland”, de 1933, realização de Norman Z. McLeod, com um grande elenco, Gary Cooper, W.C. Fields, Louise Fazenda, Edward Everett Horton, Cary Grant e Charlotte Henry, como Alice.
Depois surgiram várias versões em animação, como “Alice in Wonderland (1949), de Lou Bunin (misturando imagem real e animação), e a mais conhecida “Alice in Wonderland” (1951), dos estúdios Walt Disney. Os franceses deram o seu contributo com uma versão de “Alice of Wonderland in Paris” (1966) e Hanna-Barbera voltaram ao tema em “Alice in Wonderland (What’s a Nice Kid Like You Doing in a Place Like This?)” (igualmente em 1966).
Versões para televisão também abundam, como a de 1966, da BBC, dirigida por Jonathan Miller. Em 1972, surge “Alice's Adventures in Wonderland”, uma adaptação do musical a cinema levada a cabo por William Sterling. Em 1976, há uma versão pornográfica, com realização de Bud Townsend, e interpretações de Terri Hall, Bree Anthony, e Kristine DeBell.
“Alicja” (1982), co-produção belga-polaca, dirigida por Jacek Bromski e Jerzy Gruza, é uma fantasia musical, e “Alisa v Strane Chudes”, de 1981, com realização de Yefrem Pruzhanskiy, é a contribuição soviética para esta filmografia. “Alice at the Palace” assinala o registo de “Alice in Concert”, com Elizabeth Swados, de 1981. Em 1983 existe uma nova versão do musical da Broadway e, no mesmo ano, surge a série de animação para televisão dos estúdios japoneses, “Fushigi no Kuni no Alice”.
Novas contribuições para televisão, em 1985 e em 1986, esta última uma mini-série, dirigida por Barry Letts, para a BBC. “Alice in Wonderland, de 1988, é uma produção australiana, da Burbank Films Australia, em animação. Ainda em 1988, aparece uma adaptação de Jan Švankmajer, em “live-action/stop motion”, de teor surrealista, com o título original “Něco z Alenky”. Os estúdios Disney regressaram à figura entre 1991 e 1995, numa série de TV, e em 1999, dá-se nota de nova versão para televisão, desta feita para a NBC, com realização de Nick Willing, e um grande elenco, que incluía Ben Kingsley, Martin Short, Whoopi Goldberg, Peter Ustinov, Christopher Lloyd, Gene Wilder e Miranda Richardson. Tina Majorino era Alice. Em 2008, “Abby in Wonderland” foi um “Sesame Street Special”, lançado directamente em DVD. E chega-se a Tim Burton.

ALICE NO PAIS DAS MARAVILHAS
Título original: Alice in Wonderland
Realização: Tim Burton (EUA, 2010); Argumento: Linda Woolverton, segundo obras de Lewis Carroll ("Alice's Adventures in Wonderland" e "Through the Looking Glass"); Produção: Joe Roth, Jennifer Todd, Suzanne Todd, Linda Woolverton, Richard D. Zanuck, Katterli Frauenfelder, Derek Frey, Chris Lebenzon, Peter M. Tobyansen; Música: Danny Elfman; Fotografia (cor): Dariusz Wolski; Montagem: Chris Lebenzon; Casting: Susie Figgis; Design de produção: Robert Stromberg; Direcção artística: Tim Browning, Todd Cherniawsky, Stefan Dechant, Andrew L. Jones, Mike Stassi, Christina Ann Wilson; Decoração: Karen O'Hara, Peter Young; Guarda-roupa: Colleen Atwood; Maquilhagem: Terry Baliel, Paul Gooch, Bill Myer, Julia Vernon; Direcção de produção: Tommy Harper, Jessie Thiele, Tiffany Wu; Assistentes de realização: Katterli Frauenfelder, Sarah Hood, Emma Horton, Brandon Lambdin; Departamento de arte: Billy Hunter, Tammy S. Lee, Jeff Markwith, Richard F. Mays, David Moreau, Anne Porter; Som :Steve Boeddeker; Efeitos especiais: Michael Lantieri; Efeitos visuais: Greg M. Boettcher, Kristy Lynn Fortier, Jeanny Lee, Michael C. Miller, Sean Phillips, Ken Ralston, Steve Riera, Tim Sassoon, Brian D. Scott, Beth Tyszkiewicz, Carey Villegas, Bjorn Zipprich; Companhias de Produção: Walt Disney Pictures, Roth Films, Zanuck Company, Team Todd; Intérpretes: Mia Wasikowska (Alice), Johnny Depp (Chapeleiro Louco), Helena Bonham Carter (Rainha Vermelha), Anne Hathaway (Rainha Branca), Crispin Glover (Stayne), Matt Lucas (Tweedledee / Tweedledum), Stephen Fry (voz) (Gato Cheshire), Michael Sheen (voz) (Coelho branco), Alan Rickman (voz) (Lagarta Azul), Barbara Windsor (voz) (Dormouse), Timothy Spall (voz) (Bayard), Paul Whitehouse (voz), Marton Csokas (voz), Tim Pigott-Smith, John Surman, Peter Mattinson, Lindsay Duncan, Geraldine James, Leo Bill, Frances de la Tour, Jemma Powell, John Hopkins, Eleanor Gecks, Eleanor Tomlinson, Rebecca Crookshank, Michael Gough, Imelda Staunton, Christopher Lee, Mairi Ella Challen, Holly Hawkins, Lucy Davenport, Joel Swetow, Jessica Oyelowo, Ethan Cohn, Richard Alonzo, etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/12 (Qualidade); Data de Estreia em Portugal: 4 de Março de 2010.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

SWEENEY TODD, 3




SWEENEY TODD:
O TERRÍVEL BARBEIRO DE FLEET STREET
Há um aspecto em “Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street” que dá que pensar desde a hora que se larga a visão do filme. Sabe-se que Tim Burton é um cineasta cerebral, que deve pensar muito bem todas as implicações dos gestos, das palavras, dos enquadramentos, dos sons que habitam as suas obras. Por que será então que Sweeney Todd (Johnny Deep) e a sua macabra parceira, a Srª Lovett (Helena Bonham Carter) habitam numa casa de dois andares, sendo que a loja do barbeiro fica nas águas furtadas, cortada do espaço exterior por enormes janelas que permitem que quem está dentro veja para fora, mas sobretudo que quem está fora espreite para o seu interior, criando-se assim, e desde logo, um espaço claustrofóbico que convida a variadas interpretações.
Sabe-se ao que vamos: Tim Burton adapta o musical da Broadway, magistralmente concebido por Stephen Sondheim e Hugh Wheeler, partindo de uma adaptação assinada por Christopher Bond de um mito popular, da literatura urbana britânica (em Portugal conhecida como “de cordel”, em Inglaterra como "penny dreadfuls"), que um tal Thomas Peckett Prest vulgarizou em dezoito fascículos, saídos em outras tantas semanas, entre 1846 e 47. A história original tem muito pouco a ver com a que corre hoje nas salas de cinema, a não ser na prática de horríveis crimes cometidos por Sweeney Todd, na solidão da sua barbearia, enviando os cadáveres das vítimas directamente para a cozinha da sua colaboradora dilecta, que transformava as febras humanas em saborosas empadas. Mas na história original não se fala do que hoje faz o slogan do filme: “nunca esquecer, nunca perdoar” (“Never Forget. Never Forgive.”). Até à versão de Christopher Bond nunca fora mencionado o facto do barbeiro exercer assim a sua profissão para se vingar de um passado de injustiça. Mas agora esse é o móbil de toda a trama.
Casado com uma bela loura e pai de uma linda menina, o jovem Benjamin Barker, barbeiro bem instalado em Londres, é subitamente preso, condenado e exilado na Austrália, numa tramóia urdida pelo despótico juiz Turpin (Alain Rickman) e o seu não mais escrupuloso auxiliar e cão de mão Beadle Bamford (Timothy Spall). A pretensão de Turpin é ficar com a esposa e mais tarde com a filha do casal, e delas se servir a seu belo prazer. Parte, portanto, para a Austrália um jovem Benjamin Barker que, num ápice, perde a felicidade, a esperança e a confiança nos homens e na justiça, regressa, quinze anos depois, um vingativo Sweeney Todd que, mal desce do navio e pisa terras londrinas, não descansa enquanto não executa a sua vingança até ao fim. Pelo caminho dezenas e dezenas de vítimas e milhares de suculentas empadas. Enquanto vão desaparecendo muitos homens que, em lugar de saírem da loja bem escanhoados, descem degolados por um alçapão às caves do inferno, por outro lado a freguesia do rés-do-chão vai-se multiplicando pelas redondezas, bem alimentada por “carne da sua carne”, sem que nada o faça supor.
Ao lado desta história sinistramente sangrenta, uma outra vai evoluindo paralelamente, mostrando que a pureza dos sentimentos se mantém intacta na Humanidade. Como sempre entre jovens, ardendo em fogosidade, mas colhendo os primeiros e bem dolorosos desencantos. Um jovem companheiro de Sweeney Todd, Anthony Hope (Jamie Campbell Bower), que partilhou com ele a viagem de regresso a Londres, apaixona-se pela loura Johanna (uma não muito brilhante Jayne Wisener, diga-se de passagem, o mais fraco elo deste filme memorável) que não é outra senão a crescidinha filha de Benjamin Baker, agora a contas com o assédio do velhaco lúbrico que mantém cativa a sua favorita, num jaula de ouro, idêntica àquela que a jovem olha, dependurada num canto da sua janela, aprisionando um pássaro. Ela própria o recorda: “Eu nunca tive sonhos, só pesadelos.” (I've never had dreams, only nightmares.”).
Gaiolas, quartos, jaulas, cozinhas fechadas a sete chaves, deportações, clarabóias… Cenários que se sucedem e se evocam. Um filme sobre a prisão em que todos parecemos viver, sob a ameaça de pesados e funestos tiranetes que sobrevivem na impunidade, apesar do horror das suas artimanhas. O que nos recoloca no ponto inicial desta demanda. Porquê aquelas janelas rasgadas sobre a cidade, sempre plúmbea e suja, decrépita e nauseabunda? Nas ruas medra a injustiça e a impunidade do temível Juiz e dos seus sequazes, no interior da gaiola onde a vingança e o ódio aprisionaram Sweeney Todd germina a violência mais brutal e os horrores inauditos. Venha o diabo e escolha, e se não se sabe o passado do “Juiz”, descortina-se o do barbeiro para justificar tão funesta senha assassina. Portanto justificações psicológicas que vamos encontrar para perceber a mudança de comportamento do diurno Benjamin Baker, agora nocturno Sweeney Todd. Olhos cavados, escondidos no negrume da paixão mais funesta, cabelos cortados por uma madeixa de branco terror, e nas mãos a navalha que o completa e o identifica, qual “Eduardo Mãos de Tesoura”, sem a inocência deste (ou com a inocência deste vilipendiada pelo Mal do mundo). Digamos que Sweeney Todd é o prolongamento, sob a forma de vingança, de “Edward Scissorhands”). O que nos leva a pensar se aquela gaiola, donde espreita um pássaro aprisionado na dor, apontando aos céus a sua navalha, e que nós, espectadores privilegiados, espiamos do céu (ou do alto de uma grua, para se ser mais prosaico!) a cada novo movimento da lâmina ou a cada novo pensamento do executor, não será o Íntimo de cada ser possuído pela destemperança da violência e pelo gosto mórbido de olhar o gotejar do sangue (fabulosamente descrito nesse genérico inicial que desde logo define o cenário e o pulsar desta obra). Aquela barbearia será pois o coração de um ser destruído pela sociedade que o rodeia (e que, posteriormente, ele próprio irá destruir, num movimento mimético, repetido até à saciedade). Será o inconsciente mais secreto que se revela na sua brutalidade mais terrível. Será o que dentro de cada um de nós jaz adormecido e uma injustiça feroz pode acordar e despoletar para o horror. Será o que transforma uns olhos puros nuns outros raiados de cólera.
Sem dúvida que este é um dos melhores filmes fantásticos dos últimos anos, um dos mais conseguidos de Tim Burton (que os “consegue” todos, apenas uns mais do que outros), e um dos mais inquietantes deste período particularmente negro da história da Humanidade (de que a obra se faz testemunho e manifesto). Falar do musical (ou da ópera, porque não?) é simplesmente repetir que se trata de um dos mais brilhantes trabalhos de um mestre exigente e pouco dado a concessões, Stephen Sondheim. Mas Tim Burton acrescenta-lhe um universo plástico arrebatador. A Londres vitoriana idealizada pelo italiano Dante Ferretti é impressionante no seu realismo estilizado (o que pode parecer contraditório, e não é: por vezes o mais construído pode ser o mais real). A fotografia de Dariusz Wolski é igualmente poderosa no predomínio de tons soturnos, mas de um requintado gosto (relembra as inspiradoras tartes que, ao que se julga, sabem tão bem, mas encobrem ignominias inconfessáveis). Entre os intérpretes, que são também cantores (com maior ou menor vocação, mas com igual vontade de acertar em registos muito pessoais, que conferem uma curiosidade especial), há um fabuloso Johnny Depp, uma desconcertante Helena Bonham Carter, um majestoso e pérfido Alan Rickman, um mesquinho e rasteiro Timothy Spall, um surpreendente Sacha Baron Cohen. Todos magníficos.
Tim Burton executa, com rápidos e certeiros movimentos, uma realização brilhante, uma montagem galvanizante, uma narrativa galopante de abominação e tingida de sangue, um golpe de mestre. Uma navalhada que corta a história do fantástico num ante e num depois de “Sweeney Todd”. O fantástico cinematográfico tem, felizmente, muitas navalhadas destas ao longo da história, mas é sempre agradável acrescentar mais uma.

SWEENEY TODD: O TERRÍVEL BARBEIRO DE FLEET STREET
Titulo original: Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street
Director: Tim Burton (Inglaterra, EUA, 2007); Argumento: John Logan, segundo musical de Stephen Sondheim e Hugh Wheeler, e adapatção musical de Christopher Bond; Música: Stephen Sondheim (do musical "Sweeney Todd"); Maestro: Paul Gemignani; Música adicional: Alex Heffes; Supervisor de montagem musical: Michael Higham; Orquestrador: Jonathan Tunick; Fotografia (cor): Dariusz Wolski; Montagem: Chris Lebenzon; Casting: Susie Figgis; Design de produção: Dante Ferretti; Decoração: Francesca Lo Schiavo; Guarda-roupa: Colleen Atwood; Maquilhagem: Nana Fischer, Paul Gooch, Claire Green, Ve Neill, Peter Owen, Neal Scanlan, Olivier Seyfrid, Tristan Versluis; Direcção de produção: Nikki Penny; Assistentes de realização: Katterli Frauenfelder, Toby Hefferman, Bryn Lawrence; Departamento de arte: Gary Freeman, Sally Ross, Dominic Sikking; Som: Steve Boeddeker; Efeitos especiais: Jody Eltham, Jason Leinster; Efeitos visuais: Nikki Penny, Paul Alexiou, Daniel Barrow, Graham Cristie, Paul Driver, Chas Jarrett, Drew Jones, Jamshed Soori, Gemma Thompson; Produção: John Logan, Laurie MacDonald, Walter F. Parkes, Richard D. Zanuck, Katterli Frauenfelder, Derek Frey, Patrick McCormick; Companhias de produção DreamWorks SKG, Film IT, Parkes/MacDonald Productions, Warner Bros. Pictures., The Zanuck Company.
Intérpretes: Johnny Depp (Sweeney Todd), Helena Bonham Carter (Mrs. Lovett), Alan Rickman (Juiz Turpin), Timothy Spall (Beadle Bamford), Sacha Baron Cohen (Signor Adolfo Pirelli), Jamie Campbell Bower (Anthony Hope), Laura Michelle Kelly (mulher), Jayne Wisener (Johanna), Ed Sanders (Toby), Gracie May, Ava May, Gabriella Freeman, Jody Halse, Aron Paramor, Lee Whitlock, Nick Haverson, Mandy Holliday, Colin Higgins, John Paton, Graham Bohea, Daniel Lusardi, Ian McLarnon, Phill Woodfine, Toby Hefferman, Charlotte Child, Kira Woolman, Helen Slaymaker, Jess Murphy, Nicholas Hewetson, Adam Roach, Marcus Cunningham, David McKail, Philip Philmar, Gemma Grey, Sue Maund, Emma Hewitt, Buck Holland, Peter Mountain, Harry Taylor, Stephen Ashfield, Jerry Judge, Norman Campbell Rees, Jonathan Williams, William Oxborrow, Tom Pleydell-Pearce, Laura Sanchez, Johnson Willis, Jon-Paul Hevey, Liza Sadovy, Jane Fowler, Gaye Brown, Anthony Head, etc.
Duração: 116 minutos; Classificação etária: M/ 16 anos; Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner; Locais de filmagem: Pinewood Studios, Iver Heath, Buckinghamshire, Inglaterra; Data de estreia: 31de Janeiro de 2008 (Portugal).