quarta-feira, julho 08, 2015

MARIA BARROSO



MARIA BARROSO
Maria Barroso foi uma mulher extraordinária. Para lá de toda a sua actividade social, pedagógica, política, foi uma actriz admirável. Tive o privilégio de a ouvir recitar poemas era ainda muito jovem e ela ainda estava no D. Maria II, de onde seria afastada por questões políticas, depois vi-a nalguns trabalhos no teatro, e também no cinema, sobretudo em “Mudar de Vida”, de Paulo Rocha, e “Benilde”, “Amor de Perdição” e “O Sapato de Cetim”, todos de Oliveira. A última vez que a vi em palco, foi num espectáculo memorável, durante um festival de Teatro de Almada, numa encenação de Joaquim Benite, ao lado de Eunice Muñoz e Carmen Dolores. Um experiencia única. Acabado o espectáculo, falei com o Benite, a Carmen, a Eunice e a Maria Barroso e pedi-lhes autorização para apresentar uma proposta à RTP para eu filmar aquele momento que eu calculava que não se iria repetir mais. Todos concordaram, escrevi uma proposta à RTP, houve ainda quem me dissesse pessoalmente que seria uma óptima ideia para apresentar no dia mundial da poesia. E depois, até hoje. Curiosamente, na noite em que falei com as actrizes, uma delas, já não recordo qual, disse-me, pesarosa. “Você pode propor, mas eles não vão aceitar. Isto não lhes interessa.” Não lhes interessou, é verdade, mas perdemos, todos nós, um registo de três das nossas melhores actrizes de sempre a dizerem poesia numa sóbria mas inesquecível encenação de Benite. Malhas que o império tece.
Maria Barroso era uma mulher de uma beleza límpida, de uma grande inteligência, de uma invulgar sensibilidade e de uma generosidade a toda a prova. Sempre que a convidei para uma qualquer minha actividade, ela nunca se recusou. Apareceu sempre. Com aquele sorriso bonito, o olhar brilhante, o gesto solidário. Nos anos 80, organizei um Festival de Cinema em Portalegre e passei um ciclo sobre José Régio, que foi meu professor quando andei no liceu da terra. No dia da passagem de “Benilde, ou a Virgem Mãe”, convidei Maria Barroso para aparecer. Lá esteve, no velho Cine Teatro Crisfal. Foi a primeira vez que a homenageei publicamente. Anos depois, no Porto, durante um Festival de Vídeo Escolar que dirigi no IPP, onde era professor, convidei-a para uma mesa redonda para discutir questões pedagógicas, e a Maria Barroso não só apareceu como foi dos oradores ouvidos com maior atenção e mais aplaudidos (e havia muitos e dos melhores do país). Ouvi-la era um prazer.
Anos depois, dirigi em Famalicão um festival sobre Cinema e Literatura, o Famafest. Na sua edição de 2006, ao lado de Graça Lobo, Teolinda Gersão e Manuel de Oliveira, Maria Barroso foi uma das homenageadas, recebendo a “Pena de Camilo”. Mais uma vez não se fez rogada e subiu de Lisboa ao Norte para aceitar de novo o abraço comovido deste admirador de sempre. Maria Barroso ostentava uma doçura de porte e uma nobreza de caracter que não se esquecem.
O meu filho Frederico nunca foi um bom aluno no sentido tradicional do termo. Adorava algumas disciplinas e detestava outras. Passou por um colégio onde chegou a ser maltratado por isso. Tirámo-lo de lá e, por indicação de alguns amigos, inscrevemo-lo no Colégio Moderno. Continuou a não ser bom aluno no “sentido tradicional do termo”. Ele gostava de cinema, teatro, ler o que não lhe mandavam e detestava ginástica. Chumbou um ano a ginástica e o professor, anos mais tarde, encontrou-me e veio-me explicar: “Eu não podia fazer outra coisa. Ele era um moço excelente, mas nem sequer se equipava”. No Colégio Moderno teve várias negativas, mas nas festas de fim do ano recebeu uma medalha pelas suas actividades extracurriculares. E foi sempre incentivado a estudar as cadeiras no “sentido tradicional do termo”, mas igualmente sempre apadrinhado pela Maria Barroso e a Isabel Soares nas suas ânsias de criatividade no campo do teatro e do cinema. Hoje é um bom profissional nessas áreas. Se não fosse a sensibilidade da direcção do Colégio Moderno (e a dos pais também, sejamos justos) poderia ter sido um revoltado desintegrado da sociedade.
Devo também isso a Maria Barroso. Devo ainda uma referência numa entrevista que nunca esquecei, sublinhando a minha actividade e as escolhas como programador de cinema da TVI. 
Maria Barroso estará sempre no meu coração, e no de milhares de portugueses. Foi um exemplo, e não é a simples paragem de um coração que a fará deixar de estar junto de nós. Ela continuará sempre aqui, como exemplo, sobretudo numa época em que os exemplos vão rareando.
(as fotos são do Famafest 2006)