MARIA BARROSO
Maria Barroso foi uma mulher
extraordinária. Para lá de toda a sua actividade social, pedagógica, política,
foi uma actriz admirável. Tive o privilégio de a ouvir recitar poemas era ainda
muito jovem e ela ainda estava no D. Maria II, de onde seria afastada por
questões políticas, depois vi-a nalguns trabalhos no teatro, e também no
cinema, sobretudo em “Mudar de Vida”, de Paulo Rocha, e “Benilde”, “Amor de
Perdição” e “O Sapato de Cetim”, todos de Oliveira. A última vez que a vi em
palco, foi num espectáculo memorável, durante um festival de Teatro de Almada,
numa encenação de Joaquim Benite, ao lado de Eunice Muñoz e Carmen Dolores. Um
experiencia única. Acabado o espectáculo, falei com o Benite, a Carmen, a
Eunice e a Maria Barroso e pedi-lhes autorização para apresentar uma proposta à
RTP para eu filmar aquele momento que eu calculava que não se iria repetir
mais. Todos concordaram, escrevi uma proposta à RTP, houve ainda quem me
dissesse pessoalmente que seria uma óptima ideia para apresentar no dia mundial
da poesia. E depois, até hoje. Curiosamente, na noite em que falei com as
actrizes, uma delas, já não recordo qual, disse-me, pesarosa. “Você pode
propor, mas eles não vão aceitar. Isto não lhes interessa.” Não lhes
interessou, é verdade, mas perdemos, todos nós, um registo de três das nossas
melhores actrizes de sempre a dizerem poesia numa sóbria mas inesquecível
encenação de Benite. Malhas que o império tece.
Maria Barroso era uma mulher de
uma beleza límpida, de uma grande inteligência, de uma invulgar sensibilidade e
de uma generosidade a toda a prova. Sempre que a convidei para uma qualquer
minha actividade, ela nunca se recusou. Apareceu sempre. Com aquele sorriso
bonito, o olhar brilhante, o gesto solidário. Nos anos 80, organizei um Festival
de Cinema em Portalegre e passei um ciclo sobre José Régio, que foi meu professor
quando andei no liceu da terra. No dia da passagem de “Benilde, ou a Virgem
Mãe”, convidei Maria Barroso para aparecer. Lá esteve, no velho Cine Teatro
Crisfal. Foi a primeira vez que a homenageei publicamente. Anos depois, no
Porto, durante um Festival de Vídeo Escolar que dirigi no IPP, onde era
professor, convidei-a para uma mesa redonda para discutir questões pedagógicas,
e a Maria Barroso não só apareceu como foi dos oradores ouvidos com maior
atenção e mais aplaudidos (e havia muitos e dos melhores do país). Ouvi-la era
um prazer.
Anos depois, dirigi em Famalicão
um festival sobre Cinema e Literatura, o Famafest. Na sua edição de 2006, ao
lado de Graça Lobo, Teolinda Gersão e Manuel de Oliveira, Maria Barroso foi uma
das homenageadas, recebendo a “Pena de Camilo”. Mais uma vez não se fez rogada
e subiu de Lisboa ao Norte para aceitar de novo o abraço comovido deste
admirador de sempre. Maria Barroso ostentava uma doçura de porte e uma nobreza
de caracter que não se esquecem.
O meu filho Frederico nunca foi
um bom aluno no sentido tradicional do termo. Adorava algumas disciplinas e
detestava outras. Passou por um colégio onde chegou a ser maltratado por isso.
Tirámo-lo de lá e, por indicação de alguns amigos, inscrevemo-lo no Colégio
Moderno. Continuou a não ser bom aluno no “sentido tradicional do termo”. Ele
gostava de cinema, teatro, ler o que não lhe mandavam e detestava ginástica.
Chumbou um ano a ginástica e o professor, anos mais tarde, encontrou-me e
veio-me explicar: “Eu não podia fazer outra coisa. Ele era um moço excelente,
mas nem sequer se equipava”. No Colégio Moderno teve várias negativas, mas nas
festas de fim do ano recebeu uma medalha pelas suas actividades
extracurriculares. E foi sempre incentivado a estudar as cadeiras no “sentido
tradicional do termo”, mas igualmente sempre apadrinhado pela Maria Barroso e a
Isabel Soares nas suas ânsias de criatividade no campo do teatro e do cinema.
Hoje é um bom profissional nessas áreas. Se não fosse a sensibilidade da
direcção do Colégio Moderno (e a dos pais também, sejamos justos) poderia ter
sido um revoltado desintegrado da sociedade.
Devo também isso a Maria Barroso.
Devo ainda uma referência numa entrevista que nunca esquecei, sublinhando a
minha actividade e as escolhas como programador de cinema da TVI.
Maria Barroso estará sempre no
meu coração, e no de milhares de portugueses. Foi um exemplo, e não é a simples
paragem de um coração que a fará deixar de estar junto de nós. Ela continuará
sempre aqui, como exemplo, sobretudo numa época em que os exemplos vão
rareando.
(as fotos são do Famafest 2006)
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