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sábado, janeiro 07, 2012

TEATRO: DUAS PEÇAS NA "BARRACA"


TEATRO “A BARRACA”
“D. MARIA, A LOUCA”
No Teatro “A Barraca” duas peças em cena com motivos mais do que suficientes para despertarem o interesse dos espectadores. Por razões diferentes, é certo.
Estreada em Junho, para uma curtíssima série de espectáculos, mas reposta em Novembro para a sua carreira regular, “D. Maria, A Louca”, um original do brasileiro António Cunha, fala da rainha portuguesa D. Maria I, a primeira mulher a reinar de facto no trono de Portugal, e que teve, desde sempre, uma valoração muito diversa e contraditória até em relação aos seus reais atributos. Por um lado, há que lhe dar o crédito de uma série de iniciativas altamente meritórias, como a criação da Casa Pia, da Academia das Ciências, da Fábrica das Sedas, da valorização do ensino feminino, impondo-se por um humanismo não muito vulgar na época. Por outro lado, esta filha de D. José I, herdeira de um dos mais invulgares legados da nossa História, assinado em larga medida pelo Marquês de Pombal, que vai dos Távoras ao Terramoto de 1755, passando pela epidemia de varíola que dizimou a população de Portugal e a sua própria família, pelos conflitos com a aristocracia e a igreja, pelos ventos da mudança que advinham da França revolucionária, acabaria louca, refugiada no Brasil, após o exílio da família real portuguesa, que ali procurou refúgio, perante a ameaça das invasões francesas.
D. Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança, que nascera em Lisboa, a 17 de Dezembro de 1734, viria a falecer a 20 de Março de 1816, suicidando-se, atirando-se ao mar no cais da Praça XV, na cidade do Rio de Janeiro. Oscilando entre”A Piedosa” e “A Louca”, D. Maria I é uma personagem certamente fascinante para historiadores, romancistas, dramaturgos ou mesmo cinéfilos. Joaquim Benite já havia encenado uma ópera sobre a mesma figura, no Festival de Almada de 2011.
É no barco que a conduziu a Terras de Vera Cruz que o autor a coloca, por entre momentos de loucura e lucidez, percorrendo mentalmente parte da sua vida e das suas resoluções, habitada por fantasmas e atormentada pelo fervor religioso. A peça não convence muito, é demasiado “poética” e algo arrevesada na sua linguagem, mas permite a Maria do Céu Guerra uma excelente interpretação trágica, mas com os seus laicos de trágica-cómica, sempre comedida e sensível. A encenação da mesma Maria do Céu Guerra é igualmente bastante interessante, económica num cenário bem imaginado por José Costa Reis. Se a peça não me convence muito, tudo o resto é merecedor da melhor atenção.
“D. Maria, a Louca”
Intérpretes: Maria do Céu Guerra, Adérito Lopes; Texto: António Cunha; Encenação: Maria do Céu Guerra; Direcção Plástica, Cenografia e Figurinos: José Costa Reis; Assistência de encenação: Marta Soares; Adereços: Nuno Elias; Desenho de Luz: Luís Viegas; Operação de Luz: Fernando Belo; Sonoplastia e operação: Ricardo Santos; Montagem: Mário Dias; Estreia a 20 de Julho, Teatro Cinearte; De Quinta-feira a Sábado às 21h30; Domingo às 16h30; Na Sala 1 do Teatro Cinearte; M/12.

 “RUMOR”
“Rumor”, de Mário de Carvalho, começa por ser um excelente texto, muito bem escrito, com uma muito boa utilização da palavra como elemento plástico e cénico, o que não é vulgar em textos portugueses. Posso mesmo dizer que “Rumor” é, para mim, um dos melhores textos dramáticos nacionais dos últimos anos.
A forma como Mário de Carvalho aborda o tema é de uma ironia fina que permite ao elenco um trabalho saboroso e divertido, o que beneficia todo o espectáculo. Estamos num terraço de uma cidade abstracta, certamente durante o Império Romano. Várias personagens, bem instaladas na vida, o que ficam a dever ao governador da cidade que os favorece em troca da sua lealdade e de algumas outras cortesias que se preferem não nomear (como as visitas da bela mulher de um comerciante que regularmente passa a noite nos aposentos daquele que não se sabe se está ou não acima ou abaixo dos deuses!), conversam. Descontraidamente, bebem vinho, não tão bom como o que se bebe no palácio, cuja luz irradia pela cidade, e orienta os barcos no mar, mas ainda assim muito bom, muito melhor que a zurrapa que se bebe nas tabernas do povinho, e elogiam a grandeza do governador, homem de muitas virtudes e de uma largueza de vistas excepcionais. Apenas uma nota dissonante: um jovem, cujo pai, prestigiado general, havia sido assassinado às ordens desse mesmo governador.
Mas a harmonia parece grande entre os convivas, até que a luz do palácio esmorece e de todo se apaga. Corre o rumor que o governador morreu. Como? Quem será o sucessor? Alguém amigo do velho general assassinado? Então será melhor dosear as palavras, refrear os elogios, virar o tom da conversa, enfim o governador sempre tinha os seus aspectos menos virtuosos e quem sabe se quem virá aí não será muito melhor. Pode até ser alguém da confiança do filho do general que afinal passa a ser uma personagem muito querida, “vai minha filha, e abraça-o”.
Peça deliciosamente cínica sobre os vira casacas e aqueles que se alapam ao poder para dele retirar dividendos, “Rumor” é um exercício de teatro inteligente, divertido, e contundente. A encenação de Maria do Céu Guerra é muito boa, discreta, subtil, servindo muito bem o texto, o que todo o elenco acompanha com galhardia. Sente-se que os actores, João D’Ávila, Jorge Gomes Ribeiro, Paula Guedes, Rita Fernandes, Ruben Garcia, Sérgio Moras e Vânia Naia, se divertem neste jogo de tapa / destapa e isso acaba por beneficiar o espectáculo.
Vão à “Barraca” ver teatro. O talento e a persistência da Céu Guerra, bem acompanhada pelos cúmplices de aventura, merece-o.
RUMOR
Texto: Mário de Carvalho; Encenação: Maria do Céu Guerra; Direcção Plástica: José Costa Reis; Intérpretes: João D’Ávila, Jorge Gomes Ribeiro, Paula Guedes, Rita Fernandes, Ruben Garcia, Sérgio Moras, Vânia Naia; Assistência de Encenação: Sérgio Moras; Apoio de movimento: Catarina Santana; Apoio musical: Ana Isabel Dias; Aderecista e assistente de cenografia e figurinos: Marta Fernandes da Silva; Desenho de luz: Maria do Céu Guerra / Fernando Belo; Operação de luz e som: Paulo Vargues; Montagem e Carpintaria: Mário Dias: De 5ª a Sábado às 21h30; Domingo às 16h00; Na Sala 2 do Teatro Cinearte; M/12.

domingo, outubro 09, 2011

TEATRO NO CASINO DO ESTORIL

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O Melhor de La Féria”


“O Melhor de La Féria” é e não é “o melhor de La Féria”. O nome pode enganar um pouco, pois La Féria não é só o encenador de musicais, muito embora tenha sido através deles que adquiriu a celebridade de que hoje desfruta. Mas, para se ser mais rigoroso, este espectáculo que agora estreou no Salão Preto e Prata do Casino do Estoril deveria chamar-se “O Melhor de La Féria – Os Musicais”. Filipe La Féria tem um historial que vai muito para além dos musicais, os seus tempos na Casa da Comédia são recordados com grande interesse, quando ele era um jovem vanguardista que encenava peças como "A Paixão segundo Pier Paolo Pasolini", "A Marquesa de Sade", "Eva Péron", "Savanah Bay”, "A Bela Portuguesa", " Noites de Anto", "A llha do Oriente", de autores como Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras, Mishima, Agustina Bessa-Luís ou Mário Cláudio. Depois há o seu primeiro grande sucesso popular, de público e de crítica, "What Happened to Madalena Iglésias?". Mesmo após a sua “conversão” ao musical, La Féria assina espectáculos memoráveis que não são musicais, desde "Maria Callas" a “A Casa do Lago”, passando por "Rosa Tatuada", entre outros.
Enfim, Filipe La Féria é mais do que aquilo que se mostra em “O Melhor de La Féria”. Mas, nesta antologia laferiana do musical em Portugal, há algo que perpassa e aí sim, temos o melhor de La Féria. O melhor de La Féria é a sua paixão pelo teatro, pelo espectáculo, pelo palco, pelos actores e o público, por esse momento mágico que acontece sempre que as cortinas se abrem (ou sobem) e o milagre acontece. Este milagre não tem muito a ver até com a qualidade do espectáculo. Acontece numa modesta sociedade recreativa de amadores ou no Scala. Em intensidades diferentes, é certo, mas acontece porque quem gosta de teatro e do espectáculo sente esse mergulhar no puro sortilégio do jogo da transformação, da mentira que passa a verdade, do fascínio do milagre das rosas ou da travessia das águas. Ali, naquele local hipnótico que é o palco, tudo é possível. Todos os sonhos de criança se tornam possíveis, o que aliás marca o início deste espectáculo, onde La Féria, miúdo, brinca aos teatrinhos, para depois se abrir perante si o enorme palco do Casino, onde a sua “feérie” irá acontecer. Podem assacar-se a La Féria alguns defeitos, mas não se lhe pode recusar o seu amor ao teatro. Depois da sua encenação de “As Fúrias”, no Nacional D. Maria II, La Féria passou a ser conhecido, para o bem ou para o mal, como “La Fúria”. Essa “fúria” marca bem a sua personalidade, o seu arrojo, a sua temeridade, a sua megalomania, a forma como se lança nos projectos mais loucos, como sobe ao palco e grita “Viva o Teatro!”. Ele é isso mesmo, um amante agitador, um Dom Quixote teatral. “O Melhor de La Féria” faz justiça à figura.
Agora o espectáculo em si mesmo: como já se disse, inicia-se com La Féria criança a imaginar-se no teatro, passa por La Féria no teatro ao longo de uma vasta carreira como autor de musicais, e termina com La Féria na actualidade, a imaginar novas encenações. Não deixa de ser coerente. “La Fúria” não pára. Desde criança. Hoje ainda mantém o mesmo desejo, o mesmo apetite, a mesma obsessão. Se pudesse, não havia musical que lhe escapasse.
A evocação dessa carreira começa por alguns números de “Passa por mim no Rossio”, e depois desfilam “Maldita Cocaína”, “My Fair Lady”, “Amália”, “A Canção de Lisboa”, “Música no Coração”, “West Side Story”, “Piaf”, “Jesus Cristo Superstar”, “ Um Violino no Telhado”, “A Gaiola das Loucas”, “Fado - História de um Povo”, e uma antevisão de todos os que ele ainda sonha realizar, desde “Chapéu Alto” ou “Serenata à Chuva”,  “Sweet Charity” ou “O Feiticeiro de Oz” (que já encenou, e bem), até aqueles que se sabe que andam no seu horizonte próximo, como “Evita” (a sua próxima estreia já anunciada), “O Fantasma da Ópera”, “Man of la Mancha”, “Os Miseráveis”, “Mamma Mia” ou “Hello Dolly”, que lhe serve a preceito como gala de encerramento.
Ao longo de quase duas horas temos um pouco de tudo, para deleite de nostálgicos empedernidos, bons números, encenações criativas, música da melhor, cantores que cumprem galhardamente, coreografias espectaculares, bonito guarda-roupa, cenários discretos, mas quase sempre eficazes (como resulta bem “Piaf” num cenário minimalista), bailarinas, plumas, lantejoulas, luzes, e ainda acrobatas, dependurados do tecto, tal como a cruz de Cristo, como O próprio em arriscada postura. É, portanto, “O Melhor de La Féria” quase em todo o seu esplendor. Há uma ou outra solução que não me parecem as melhores, dispensava bem alguns números de trapézio, por inúteis, mas deixava ficar as belíssimas mariposas que descem do tecto, e quanto à animação dos vídeos, muitas vezes bem conseguida, deixava cair a Maria, de “Música no Coração”, regadeira, a verter águas sobre as verdes montanhas, que me pareceu de muito mau gosto. 
De resto, o que poderia ser uma manta de retalhos, acaba por resultar numa bonita evocação de uma carreira, que é simultaneamente uma homenagem a um autor que bem a merece. É Filipe La Féria quem escreve no programa: “Tantas vezes encontro, a um canto de um velho armazém, velhos adereços, peças de guarda-roupa que já tiveram vida sob as luzes brilhantes dos projectores. O Teatro deu-me também Vida. A ele devo o que sou, com toda a sua luz e sombras. Levou-me a sítios inimagináveis, a países para além do arco-íris, fez-me conhecer pessoas inesquecíveis, deu-me momentos de prazer e glória e também de desilusão e dor, e aprendi com ele a compreender melhor o ser humano. É injusto a vida não ser como o teatro: ter tempo para ensaiar e depois para viver”.
Pois é: no teatro ensaia-se a vida, na vida ensaia-se o teatro. Entre o teatro e a vida vamo-nos todos ensaiando, uns aos outros. Essa a grande lição da arte de representar.
O elenco, bem encabeçado por Alexandra e Henrique Feist, conta ainda com a presença de Gonçalo Salgueiro, Paula Sá, Vanessa, F.F., Eva Santiago, Flávio Gil, Elsa Casanova e João Frizza, um corpo de bailado, dois acrobatas e um orquestra privativa.

No Salão Preto e Prata do Casino do Estoril. A partir de 7 de Outubro, de quarta a sábado às 21h30, e ainda sábados e domingos às 17h00.

quinta-feira, julho 14, 2011

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA 2011 - 4

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 Notas Rápidas

CHEF (Chefe), com texto a partir de “Uma Modesta Proposta”, de Jonathan Swift, com a colaboração de Guillermo Calderón. Encenação de Jaime Lorca. Produção do Tearo Viaje Inmóvel, Santiago do Chile | Chile.

Um chefe de cozinha em apuros económicos resolve concorrer a um “reality show”, na televisão, para ultrapassar a crise. Mas a televisão quer espectáculo e “receitas” cada vez mais inusitadas. Que tal propor a venda dos bebés dos pobres para alimento de excelência dos ricos?  A ideia não é nova, noutro contexto, visando a Irlanda do seu tempo, já tinha sido dada por Jonathan Swift, num texto provocatório, de nome “Uma Modesta Proposta”. Escrita, dirigida e protagonizada por Jaime Lorca, “Chef” é uma tragicomédia sobre as fraquezas e as obsessões da natureza humana, através de uma sátira corrosiva à sociedade contemporânea, tendo a gastronomia e a televisão como pretexto para abordar o tema da fome no mundo e da desigualdade social cada vez mais gritante.
O cenário é uma cozinha decadente. O actor é Jaime Lorca, excelente. A encenação é inventiva e ácida, controlada ao milímetro, num espaço criteriosamente desenhado para cumprir a função. O resultado: um grande espectáculo de teatro político, onde se castigam os costumes através do riso.
Jaime Lorca já é um velho conhecido do Festival de Almada. Em 1996, o seu espectáculo “Viagem ao Centro da Terra” foi eleito como “Espectáculo de Honra”. Em 2007, “Gulliver” viria a obter a mesma distinção. Ele animou e dirigiu durante dezoito anos o projecto “La Troppa”, a que se segue es “Viaje Inmóvil”.

Intérpretes: Daniela Montt, Jaime Lorca; Cenário: Carlos Rivera, Rodrigo Ruiz, Manuel Paredes; Figurinos: Loreto Monsalve; Desenho de luz: Tito Velásquez; Desenho de som: Antonio Palácios; Música: Juan Salinas; Fotografia: Cláudio Pérez; Ass. de dramaturgia e direcção de actores: Cristián Ortega; Produção: Andrea Gutiérrez Travesía Producciones; Língua: Espanhola; Duração: 1H10. 


AMNÉSIA (Amnésia), de Jalila Baccar e Fadhel JaÏbi; Encenação de Fadhel Jaïbi; Criação do Teatro “Familia Productions”, Tunes (Tunísia).

Em 1994, o Festival de Almada apresentou “Família”, onde se revelou um grupo tunisino desconhecido na Europa. Voltaram em 1997 e em 1999, e agora Fadhel Jaïbi regressa com o grupo e “Amnésia”. Em boa hora. Trata-se de um espectáculo absolutamente inesquecível, com onze actores magníficos, num cenário vazio, apenas acompanhados por cadeiras e alguns outros (poucos) adereços, onde nos contam uma história “edificante”, sobre um chefe político de um qualquer país africano (não seria a própria Tunísia?) que, na noite do seu aniversário, sabe pela televisão que foi destituído do Governo. O partido a que pertence substitui-o por outro (certamente igual a ele, tão déspota e corrupto como), e ele é preso e colocado em residência fixa. Tenta fugir para o estrangeiro e é impedido. Fechado na sua biblioteca, fica queimado quando esta arde e é posteriormente internado num hospício por mostrar “sinais de confusão mental”. Tudo como mandam as regras.
Também como mandam as regras (estas as cénicas) funciona este belíssimo e vigoroso espectáculo, com actores que se multiplicam em papéis e oferecem um autêntico vendaval de obsessivo rigor e invenção. Magnífico jogo de luzes e de música valorizam uma marcação sóbria mas fulgurante. Entusiasmante.
Vamos às notas colhidas no Festival de Almada: Fadhel Jaïbi (n. 1945) é encenador, autor, realizador e um nome fundamental do teatro árabe contemporâneo. Fez os seus estudos em França (1967/1972) e dirigiu o Conservatório de Arte Dramática da Tunísia entre 1974 e 1978. Em 1976, fundou com Jalila Baccar a companhia “Nouveau Théâtre” de Tunis e, em 1993, “Familia Productions”. Em 2003, o realizador tunisino Mahmoud dedicou-lhe o documentário “Fadhel Jaïbi, un Théâtre en Liberté”. Quanto a Jalila Baccar (n. 1952) é actriz de teatro, de cinema e de televisão e, desde 1976, acompanha Fadhel Jaïbi em todas as suas criações, sendo muitas vezes co-autora dos seus textos: é o caso, nomeadamente, de “Comedia” (1991), “Família” (1993), “Les Amoureux du Café Désert” (1995) e, agora, “Amnésia”. No cinema, foi dirigida, entre outros, por Nicolas Klotz e Randa Chakal Salbag.”

Intérpretes: Jalila Baccar, Fatma Ben Saîdane, Sabah Bouzouita, Ramzi Azaiez, Moez M’rabet, Lobna M’lika, Basma El Euchi, Karim El Kefi, Riadh El Hamdi, Khaled Bouzid, Mohammed Ali Kalaî; Cenário: Kaîs Rostom; Figurinos: Anissa B’diri; Desenho de luz: Fadhel Jaïbi; Música: Gérard Hourbette; Dramaturgia: Jalila Baccar, Fadhel Jaïbi; Ass. de encenação: Narjes Ben Ammar; Ass. de figurinos: Jalila Madani; Operação de luz:  Naîm Zaghab; Língua: Árabe, legendado em português; Duração: 2H00. 


A RAINHA LOUCA, Ópera de Alexandre Delgado; Libreto de Alexandre Delgado, a partir de “O Tempo Feminino”, de Miguel Rovisco; Direcção musical de Alexandre Delgado; Encenação de Joaquim Benite; Criação do Centro Cultural de Belém e Festival de Almada, Almada, Lisboa (Portugal).  

Excelente criação da ópera “A Rainha Louca”, com música e libreto (a partir de “O Tempo Feminino”, de Miguel Rovisco), da inspirada responsabilidade de Alexandre Delgado, e encenação de Joaquim Benite. “A Rainha Louca” é D. Maria I, que vamos encontrar, no fim da vida, enclausurada na sua dor e loucura. Estamos no final do século XVIII, a Rainha ainda não partiu para o Brasil, onde iria morrer, lamenta a sua má sorte, os funestos acontecimentos em Portugal, e em França, a braços com uma revolução que cortou a cabeça à realeza. Tem à sua cabeceira uma criada negra, Rosa, e a rígida Duquesa de Lafões. É visitada por quatro damas da corte que lhe traçam um retrato pitoresco e delirante da realidade social portuguesa da altura. Uma das damas parece adormecida até se descobrir que está morta. A morte perpassa por estas salas sem janelas.
D. Maria I é vista sob um duplo prisma, ora se sublinha o seu amor às artes e às letras, à educação, como a sua loucura e fanatismo. Mas na hora da morte, José Bonifácio da Silva exaltou “o nobre carácter, o bondoso coração, a prudência de entendimento e a constância de ânimo.” A ópera interessa-se mais pelo retrato da rainha como reflexo de uma época.
A partitura musical é riquíssima e exemplar. As vozes das sopranos e meio soprano são belíssimas (pena não se perceber melhor o texto, que é de boa qualidade) e a encenação de Joaquim Benite sublinha o essencial, com rigor e inventiva, num cenário austero, onde explode a melodia e as paixões abafadas.
Notas do Festival: Compositor e violetista, Alexandre Delgado (Lisboa, 1965) estudou na Fundação Musical dos Amigos das Crianças e foi aluno de composição de Joly Braga Santos e Jacques Charpentier. Tem composições suas para música de câmara, música concertante e música vocal. Autor da ópera de câmara O Doido e a Morte, venceu o 1.º prémio do Conservatório de Nice em 1990 e o Prémio Jovens Músicos em 1987. É director do Festival de Música de Alcobaça.
Director do Festival de Almada (que criou há 27 anos) e da Companhia de Teatro de Almada, Joaquim Benite, desde o seu primeiro espectáculo em 1971 (“O Avançado-centro Morreu ao Amanhecer”, de Agustin Cuzzani), encenou mais de uma centena de peças de autores portugueses e estrangeiros. Em 2008, dirigiu, para o Teatro Nacional de São Carlos, a ópera de Mozart “La Clemenza de Tito”. Como reconhecimento público da sua vasta e rica carreira possui numerosas distinções: é Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e da Ordem do Mérito Civil de Espanha, e Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras de França. Possui ainda a Medalha de Honra da Cidade da Amadora, a Medalha de Ouro da Cidade de Almada, a Medalha de Mérito do Distrito de Setúbal e a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura.

Intérpretes: Sopranos Ana Ester Neves, Ana Paula Russo e Teresa Cardoso Meneses, Meio-soprano Maria Luísa de Freitas, e a actriz Nilma Santos, OrchestrUtopica;  Correpetidores João Paulo Santos, Jan Wierzba; Cenário e figurinos: Jean-Guy Lecat; Desenho de luz: José C. Nascimento; Col. Coreográfica: Jean Paul Bucchieri; Dir. de montagem: Carlos Galvão, Guilherme Frazão; Caract. e cabeleiras: Sano de Perpessac; Ass. de encenação: Rodrigo Francisco; Ass. de cenografia e figurinos: Joana Ferrão; Ass. de produção: Paulo Mendes; Língua: Português; Duração 1H15. Estreia absoluta.

domingo, junho 26, 2011

TEATRO: A FLOR DO CACTO


 A FLOR DO CACTO
Jean-Pierre Grédy e Pierre Barillet escreveram uma trentena de peças de teatro entre 1949 e o início da década de 90. Comédias de boulevard, sem grandes pretensões, um arzinho de crítica de costumes e algum humor, baseado em trocas e baldrocas, situações equívocas, encontros e desencontros. A herança de Georges Feydeau, Georges Courteline ou Eugène Labiche, mas sem a graça destes. Em 1964, estrearam “Fleur de Cactus”, no Théâtre des Bouffes-Parisiens, com algum sucesso e logo despertaram o interesse da Broadway americana que adaptou a peça para os seus palcos numa versão de Abe Burrows, que também a encenou. “Cactus Flower” estreou-se em Dezembro de 1965, no Royale Theatre, permaneceu dois anos en cena, passando depois para o Longacre, perfazendo um total de 1234 representações, que terminaram em Novembro de 1968. Do elenco original faziam parte Lauren Bacall, Barry Nelson, Brenda Vaccaro, Burt Brinckerhoff, Lloyd Bridges, Kevin McCarthy, e Betsy Palmer. Êxito de público, portanto.

Pouco depois, em 1969, o argumentista preferido de Billy Wilder, I.A.L. Diamond adaptou a peça a filme, que Gene Saks dirigiu de fora escorreita, com um bom conjunto de intérpretes, Walter Matthau, Ingrid Bergman, e Goldie Hawn, que iria ganhar um Óscar com esta sua estreia no cinema. Os actores vão bem, os diálogos são divertidos, escritos com alguma subtileza e graça, a adaptação do palco ao ecrã é muito aceitável. Não estamos na presença de uma comédia daquelas que figuram no palmarés das nossas boas recordações, mas não envergonhava.
Julian é dentista, solteiro e mulherengo, e para assim se manter dizia às suas conquistas que era casado e pai de três filhos. Até ao dia em que encontra Toni, uma miúda com idade para ser sua filha, por quem se apaixona a sério. Depois é o costume, mas ao contrário. Julian tem de arranjar uma mulher para mostrar a Toni e assim convencê-la de que é realmente casado e pai de filhos e de que a sua mulher está disposta e até interessada no divórcio. Quem ele vai recrutar é a sua fiel assistente de clínica, a enfermeira Stephanie que, por sua vez, está apaixonada pelo seu dentista. Estão a ver o resto? Qui pro quos para dar e vender, até à solução final. Comédia para dispor bem, mas não mais do que isso. 
Mas em 2010, surgiu uma nova adaptação para cinema, “Just Go With It” assim se chama agora, com realização de Dennis Dugan e interpretação de Adam Sandler, Jennifer Aniston e Brooklyn Decker. O resultado é triste, das piores coisinhas vistas ultimamente. O esforço dos argumentistas que adaptaram a comédia original foi no sentido de polvilharem o todo com muitas imagens vistosas de belas mulheres e entrecortá-las com diálogos grosseiros e graças escatológicas, num primarismo de cortar a respiração e tirar a pica a qualquer espectador que não seja atrasado mental. O dentista passou a cirurgião plástico (claro, para se poderem ver e se falar de mamas e outros apêndices femininos e masculinos), e o resto, que tem escala no Hawai, ajusta-se às premissas.    
Lembro-me de ter visto, no Monumental, em 1967, o original de Barillet & Grédy numa versão de Jerónimo de Bragança, encenada por Manuel Santos Carvalho, com Laura Alves na protagonista, ao lado de Paulo Renato, Carlos José Teixeira, Alina Vaz, Rui Mendes, Ângela Ribeiro, Alexandre Vieira e Alda Pinto. Os cenários eram de Pinto de Campos e do espectáculo guardo boa memória, sem que todavia a peça me tenha convencido por aí além. 
É essa mesma “Flor do Cacto” (a original) que agora Filipe La Féria recupera para o seu Politeama. Pode dizer-se que a peça continua a não deslumbrar, é uma comédia de verão, produzida em “low cost”, como o próprio encenador confessa, com uma divertida adaptação a Portugal, diálogos, personagens e situações, sem desfigurar a estrutura original. Os diálogos mantêm a graça, as figuras, caricaturais, nalguns casos, são interessantes pelos “bonecos” estereotipados que desenham, e o todo é vistoso, como manda a estética de La Féria. Mas estamos longe do melhor que o conhecido encenador já nos deu. Do elenco, que não deslumbra, dado que não tem personagens para impor, mas silhuetas, fazem parte Rita Ribeiro, Carlos Quintas, Nuno Guerreiro, e ainda os que melhor se adaptaram a esta estética de quase “cartoon”, Vítor Espadinha, Helena Rocha, Hugo Rendas, Patrícia Resende e Bruna Andrade. 


segunda-feira, fevereiro 14, 2011

TEATRO: MAIS RESPEITO QUE SOU TUA MÃE

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MAIS RESPEITO QUE SOU TUA MÃE

Não se percebe muito bem o porquê, mas a verdade é que a imprensa portuguesa quase não critica teatro dito comercial. É normalmente fraco? É verdade, mas também é muitas vezes fraco o teatro dito mais sério e nem por isso, aqui e ali, deixa de merecer as suas referências. Depois há um aspecto que acho profundamente injusto: quem trabalha no teatro comercial merece ser olhado com o mesmo respeito que os demais. Goste-se ou não, merece que as opiniões sejam conhecidas. É bom ter interlocutores, concorde-se ou não com eles. É bom saber o que X ou Z acham do trabalho de A ou B.
Quase não li críticas a “Mais Respeito que sou Tua Mãe” que se estreou há vários meses no Casino do Estoril, passou pelo Rivoli do Porto, e voltou agora a assentar arraiais no Teatro Armando Cortez, na Casa do Artista. Muita gente viu a peça, chegaram-me opiniões pessoais desencontradas. Houve quem detestasse, ou quem se divertisse muito. Mas quase todos eram unânimes quanto à interpretação de Joaquim Monchique, num travesti divertido e muito bem executado.
Quase todos os grandes cómicos adoram, uma vez por outra, experimentar as dificuldades de se fazerem passar por alguém do sexo oposto. Nomeiem um cómico e logo surge o seu momento de travesti. António Silva? Sim. Raul Solnado? Sim. José Viana? Sim. Herman José? Sim. Vamos lá para fora, e a lista prolonga-se.
Actualmente, em Portugal, há dois exemplos máximos desta arte. Herman e Monchique. O poder de transmutação destes dois actores é absolutamente notável. Parece que não representam, que se transformam em. Olhamos para eles como outras personagens, homens ou mulheres, e deixaram de ser eles, não os reconhecemos como eles próprios, são “outros”.
Joaquim Monchique, em “Mais Respeito que sou Tua Mãe”, encarna a figura de uma mulher, Esmeralda, quarentona ou cinquentona, mãe de uma família disfuncional, suburbana, que vive na outra banda, na Baixa da Banheira, e tem sogra, marido, e três filhos. Ela é o esteio da comunidade. A sogra gosta de fuminhos, o marido é reformado, benfiquista ferrenho e passa os dias no sofá frente à sport tv, e quanto aos filhos, há para todos os gostos, a escanzelada galdéria que ganha a vida com strip teases na internet, o homossexual que se torna hétero e não deixa de se entusiasmar com esta descoberta, e o ganzado que faz esculturas com matéria orgânica.
A peça do argentino Hernán Casciari (nascido em Mercedes, Buenos Aires, a 16 de Março de 1971), mas radicado há muito na Catalunha, tem graça, mas abusa, não tanto da brejeirice, como da escatologia. O seu humor oscila entre a anotação crítica certeira e divertida e a vulgaridade de um diálogo sem controlo.
Entusiasta dos blogues, é aí que Hernán Casciari tem cumprido a maior parte da sua actividade jornalística, inclusive para o jornal “El Pais”. Escreveu blogonovela e crítica a séries de TV. Foi chefe de redacção da revista argentina “La Ventana”. Assinou duas obras premiadas, “Subir de Espaldas la Vida” e “Nosotros Lavamos Nuestra Ropa Súcia” (Prémio Juan Rulfo, Paris, 1998). “Weblog de una Mujer Gorda” (melhor blogue para a cadeia alemã “Deutsche Welle”), foi editado com o título “Más Respeto, que soy tu Madre”. Publicou ainda "El Diario de Letizia Ortiz". Em 2007 lançou “España, Perdiste”. Iniciou agora a publicação de uma revista trimestral, “Orsai”, sem publicidade, de distribuição mundial.
Com discreto e eficaz cenário único, numa sóbria encenação do próprio Joaquim Monchique, “Mais Respeito que sou Tua Mãe” está longe de ser uma obra importante, pretendendo ser apenas um divertimento de duas horas, servido por um elenco que cumpre (Luís Mascarenhas, Maria Tavares, Tiago Aldeia, Rita Tristão da Silva e Emanuel Santos). Um maior rigor no texto (que não convidasse tanto à facilidade) seria bem vindo, mas a adaptação à realidade portuguesa é convincente.
Posto isto, o teatro também vive de espectáculos destes, que não ficam na História, mas ajudam alguns espectadores a passar pelas agruras da vida, e trazem público às salas.

domingo, janeiro 23, 2011

TEATRO: ANGEL CITY

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ANGEL CITY
“Angel City”, do norte-americano Sam Shepard (nascido em 1943), tinha tudo para ser uma peça para me agradar a cem por cento. O universo de Hollywood e do seu cinema, um argumentista, dois produtores, um técnico de som, uma secretária com aspirações a vedeta, um saxofonista, uma discussão em “huis clos” sobre a indústria, a febre do lucro que atraiçoa a criação artística, e uma metafórica poluição que invade o “lá fora”, Los Angeles, ou Culver City, e começa a corroer a pele dos que por lá se aventuram.
Sam Shepard escreveu dezenas de peças (entre elas uma muito conhecida, “Fools for Love”, que passou ao cinema pela mão de Robert Altman, “Loucos por Amor”), colaborou no argumento de filmes como “Paris Texas”, de Wim Wenders, ou “Zabriskie Point”, de Antonioni, e interpretou ainda dezenas de filmes onde deixou a marca do seu talento de actor, austero e nervoso.
Falando da sua obra de autor teatral, esta não costuma ter uma narrativa realista, preferindo invadir terrenos experimentalistas, passando pelo absurdo, a vanguarda e o simbolismo. É o caso de “Angel City” (1976) que, optando por uma aproximação metafórica, de um humor negro que joga com a mitologia norte-americana, ataca com violência e sarcasmo o espírito voraz de quem apenas pensa no lucro e na rentabilidade imediata do “produto”. Tudo certo e assunto que Sam Shepard deve conhecer e dominar como poucos, ele que, apesar disso, ou por causa disso, raramente entrou abertamente no campo da indústria e preferiu sempre trabalhar em obras onde prevaleceram os aspectos artísticos e culturais.
Mas a verdade é que “Angel City”, apesar das muitas qualidades, se me afigura obra não totalmente conseguida e algo desequilibrada. Por exemplo, a segunda parte parece-me muito mais lograda do que a primeira, para o que também deve ter contribuído em muito a montagem a que se pode assistir em “A Barraca”, com encenação de Rita Lello. Acontece que, como não conheço o original, difícil se torna uma avaliação em termos absolutos. Posso então apenas falar do espectáculo visto.
Num palco quase vazio e descarnado, uma larga janela/ecrã delimitada por néons, é a referência que imediatamente se impõe. Acrescente-se-lhe uma mesa, uma ou duas cadeiras que vão mudando de lugar e seis actores. Dois são produtores, têm entre mãos um hipotético filme que querem “de catástrofe”, e falta-lhes personagens e situações, para o que convidam um argumentista, dito “artista”, para iluminar essa ausência. O argumentista vem do Oeste de carroça, com indumentária de Buffalo Bill e muitos amuletos de índios presos ao cinto. Julgo que esta caricatura é o lado menos conseguido do espectáculo, não representa uma alternativa, mas apenas um continuar do caos que pré-existia e apenas se avoluma com a sua chegada. Depois, assistimos a uma dança da morte grotesca, com o fim que se adivinha.
Se o arranque da peça pressagia um desastre, a verdade é que no decorrer da representação o clima vai-se entrosando, e a segunda parte é mesmo bastante boa, com actores a imporem-se em personagens que vão adquirindo força e consistência no seu recorte caricatural. A encenação de Rita Lello, que tem excelentes apontamentos, cresce com o andamento, ou vai fazendo crescer o curso dos acontecimentos, e torna-se particularmente sugestiva na segunda metade. O palco divide-se em dois planos, com a janela/ecrã a adquirir uma importância e um significado cada vez mais preponderante, estabelecendo um contraponto entre a realidade do palco e a ficção da representação.
Os actores também ganham com o avançar da peça, sobressaindo os excelentes Ruben Garcia e Pedro Borges, muito bem acompanhados por Vânia Naia. Menos certos me parecem Sérgio Moras e Sérgio Moura Afonso (sobretudo pela excessiva gritaria que imprimem na primeira parte e que torna difícil perceber o texto). Boa a composição do saxofonista Paulo Curado, que é igualmente um dos autores da música original (de colaboração com Ricardo Santos e Pedro Freixo). 

A Barraca,
Quintas, sextas e sábados, às 21,30 horas, domingos, às 16,00 horas.

sábado, agosto 14, 2010

FADO, NO CASINO DO ESTORIL

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Fado - História de um Povo
Pela primeira vez no Casino Estoril como encenador de um espectáculo, Filipe La Féria assina “Fado - História de um Povo”, que procura traçar uma história do fado, desde as suas origens até à actualidade. Um espectáculo de casino tem as suas especificidades próprias e não se deve pensar ir encontrar aqui uma história erudita do fado, nem sequer um musical, na linha de “Amália”. O fado é aqui cruzado com o musical, é certo, mas igualmente com o circo, o bailado, a revista, o vídeo, as novas tecnologias, mas sobretudo também com o “music hall”. O resultado é certamente do agrado do público que vai ao Casino do Estoril, mas deixa um travo de alguma decepção em quem gosta de fado e de musicais, pois ao que se assiste é a um espectáculo híbrido. Não se ouve uma história do fado, através do fado (ainda que surjam muitos dos mais célebres fados de sempre, mas poucos para os incondicionais da canção nacional), nem se assiste a um musical estruturado enquanto tal.
Feita esta primeira ressalva, que tem a ver com a própria concepção do espectáculo, que enveredou deliberadamente por esta estrutura um pouco fragmentada em “números” que se sucedem, organizada em termos quase puramente espectaculares que procuram seduzir o espectador precisamente por este lado ligeiro e festivo, o que fica então?
Claro que desde logo o gosto e o saber de La Féria, que arranca momentos muito bons, como a entrada, com o aparecimento da caravela, e a evocação de que o fado nasceu no mar alto, na voz de um marinheiro. Depois de uma recordação da Severa e dos trágicos amores com o Conde de Vimioso, dado a touros e cavalos (o que permite um efeito de grande espectáculo, com um cavalo a descer do tecto do Casino), temos um dos momentos altos, possivelmente o mais conseguido, o enterro da Severa. Depois passamos pelo fado de Coimbra, cantado numa lua de belo efeito, e acompanhado por dois pífios bailarinos que evoluem no espaço, passamos pelas hortas onde o fado vadio se cantava aos domingos, passamos por Calafate e Setúbal, por Maria Cesária, pelos cafés de camareiras e pelas casas de prostituição em finais do século XIX, onde se ouvia o fado, que também era aristocrata, na corte de D. Carlos.
Depois, assiste-se à implantação da República, outro bom momento, com quase todo o elenco no palco, e à entrada na I Guerra Mundial. E vem Salazar e as marchas Populares, o Estado Novo e o aproveitamento dos 3 fs. Surgem gigantes como Alfredo Marceneiro e Hermínia Silva, e o fado vadio pelas tabernas da noite, nas ruelas de Lisboa. Durante a II Guerra Mundial, a capital recebe refugiados e influências, cita-se o Tango, e homenageia-se Fernando Maurício. Mostra-se como fado e folclore cruzaram tendências, e ainda antes de 25 de Abril não se esquece Carlos Ramos. Depois, de Maria Teresa de Noronha, “a aristocrata do Norte”, às aristocracias do fado de Lisboa, chega-se a Fernando Farinha, José Carlos Ary dos Santos, Carlos do Carmo, para se culminar em Amália. Pena não se sublinhar a verdadeira actualidade do fado, povoado por dezenas e dezenas de vozes novas e raras, que redescobrem os tons e as tonalidades desta canção que nos embala a todos e nos faz sentir a estranha sensação de comprovarmos a existência de uma voz portuguesa, uma toada, um canto, uma emoção.
Acrobatas a descerem do céu ou touros a dançar em pontas, demónios e anjos (demasiados anjos, é verdade, um momento, o primeiro, chegava para o efeito e não o banalizava), marchas e folclore, entre tudo isto oscila “Fado - História de um Povo”, entre o muito bom e o não muito conseguido, tal como as vozes que enfermam da mesma ambiguidade, ou são de fado ou de musical, e nem sempre cooperam harmoniosamente.
Com música de fados célebres, em novos arranjos, e partituras originais de Filipe La Féria, Paulo Valentim e Artur Guimarães, o espectáculo abre com a ressonância vocal de Alexandra (que tão bem fora “Amália”, no musical), e é continuado, com oscilações diversas, por Henrique Feist, Liana, Gonçalo Salgueiro, Paula Sá, Inês Santos, Luís Matos, Elsa Casanova, Luís Caeiro, Flávio Gil ou Jorge Silva, num elenco de várias dezenas de intervenientes.
O Casino tem um espectáculo à altura das suas credenciais? Claro que tem. Dado o intercâmbio que existe entre vários casinos internacionais, acho mesmo que é chegada a altura de casino do Estoril começar a exportar os seus shows e este, aprimorado aqui e ali, é um bom estandarte da canção nacional. Mas eu, como amante de fado, gostaria de algo mais castiço e mais genuíno, mais fado-fado. Outras oportunidades virão, espero.

quinta-feira, julho 15, 2010

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, NOTAS, 10

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Todos os Grandes Governos Evitaram o Teatro Íntimo
de Daniel Veronese
“Todos os Grandes Governos Evitaram o Teatro Íntimo”, espectáculo do argentino Daniel Veronese, encenado em 2009, parte de “Hedda Gabler”, obra estreada em 1897, uma peça absolutamente fulcral no teatro moderno, assinada pelo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906). Parte desse clássico para lhe conferir uma nova interpretação e a adaptar a actualidade. Não se trata de pegar no texto original e enformá-lo em vestes actuais. Trata-se antes de recuperar algumas personagens e o espírito da peça de finais do século XIX, e olhá-los numa perspectiva contemporânea, repensando sobretudo a condição da mulher que, apesar de ter evoluído muito desde então, ainda continua a conhecer graves e pesados condicionantes sociais e morais. Veronese disse mesmo que “continuamos a diferenciar a avaliação dos comportamentos em função do sexo de quem os pratica”.
O cenário e a encenação nada trazem de especialmente significativo, mas a interpretação é magnífica e o texto excelentemente explorado. O lado aparentemente banal do cenário, porém, despido de qualquer efeito, quase se assemelhando a um cenário de interior de casa de teatro amador, acaba por causar alguma estranheza e levar o espectador a concentrar-se no essencial: o texto e o comportamento das personagens.
Interessante, portanto, esta aproximação do teatro argentino actual, muito pouco conhecido entre nós.
Daniel Veronese parece ser um dos criadores mais destacados do novo teatro da América Latina. Dramaturgo, encenador, actor e manipulador de bonecos, Veronese desempenha também funções de cenógrafo e criador das bandas sonoras dos seus espectáculos. Membro fundador do grupo de teatro “El Periférico de Objetos”, os seus espectáculos e intervenções performativas participaram em diversos festivais em todo o Mundo. Reuniu as suas obras nos volumes “Cuerpo de Prueba” e “La Deriva”. Recebeu numerosos prémios, de entre os quais se destacam, na Argentina, o Prémio Nacional de Dramaturgia e o primeiro Prémio Municipal de Dramaturgia de Buenos Aires.

Todos os Grandes Governos Evitaram o Teatro Íntimo, de Daniel Veronese; Encenação: Daniel Veronese; Intérpretes: Claudio Da Passano, Elvira (Pipi) Onetto, Marcelo Subioto, Osmar Nuñez, Silvina Sabater; Cenário adaptado da cenografia da obra “Budín Inglês”, de Ariel Vaccaro; Assistente de encenação Felicitas Luna; Produção Sebastián Blutrach; Teatro Metropolitan, Buenos Aires, Argentina; Duração: 1H30; Classificação M/ 12.

terça-feira, julho 13, 2010

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, NOTAS, 6

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DANÇA DA MORTE / DANÇA DE LA MUERTE

Há espectáculos perfeitos. Redondos. Burilados como obra de relojoaria. Ou de ourives, como dizia alguém a meu lado. “Dança da Morte” é um desses mágicos objectos de palco, onde tudo parece estar no seu lugar, no seu tempo, na sua duração, com a palavra certa, o movimento e a luz, a cor e o som, a voz e a música. Esta criação de Ana Zamora recupera textos portugueses e espanhóis dos séculos XIV a XVI, centrados na temática da morte. A "Dança General" (“Códice de Et Escorial” e edição sevilhana de 1520) serviu como eixo central para uma dramaturgia que se articula com fragmentos de obras de Gil Vicente ("Barca do Inferno", "do Purgatório" e "da Glória", "Quem tem Farelos", "O Velho da Horta", "Farsa dos Físicos", "Comédia do Viuvo" e "Romagem de Agravados"), assim como com outros textos anónimos de carácter dramático como o "Diálogo entre el Viejo, el Amor y la Mujer Hermosa", e material lírico procedente de diversos cancioneiros dos séculos XV y XVI.
Explica ainda a autora que “a peste negra, pandemia que assolou a Europa durante o século XIV, dizimando um terço da população, desencadeou uma intensa reflexão acerca da precariedade da vida, sendo a “dança macabra” uma das suas expressões culturais mais impressivas.” Aqui se vêem actores, que são também bailarinos, cantores e músicos, recuperarem esses entremezes medievais, confrontarem o sacro e o pagão, o terror e o humor, a vida e a morte, a missa e o baile. Uma disposição cénica brilhante, guarda-roupa e adereços notáveis, uma iluminação de ritual místico, mas também de festa profana, e uma interpretação onde a palavra, o gesto, o movimento estão onde deveriam estar desde sempre: ao serviço de uma ideia, consolidando a magia do cerimonial. A encenação desfruta cada momento, retoca ao pormenor cada detalhe, nada acontece por acaso e tem invenções magníficas, como o achado dos diferentes chapéus dispersos pelo espaço cénico, servindo cada um deles para invocar uma personagem.
Falado em espanhol e português, num texto muito bem articulado e magnificamente interpretado por todo o grupo, mas saboreado como só Luís Miguel Cintra o sabe fazer, com uma voz inigualável e uma consciência profissional invejável, este espectáculo é um hino à competência técnica e ao talento, tudo isto estribado num vasto saber e numa sólida cultura de clássicos e modernos. É curioso como, partindo de textos de antanho, se concebe, sem desvirtuar uma vírgula, um espectáculo moderno, sugestivo, efervescente de criatividade, sem nunca a tentar atirar aos olhos do público.
Na barca da morte, todos teremos o nosso lugar, ricos e pobres, sacerdotes e almocreves, burgueses e plebeus. Ninguém foge ao seu chamamento, mas até lá que tal saborear os prazeres de estar vivo? Vendo espectáculos como este, por exemplo, entre muita outra salutar oferta que a existência nos reserva a cada dia. O cheiro a incenso e as luzes bruxuleantes, o cerimonial dos rituais invocam certamente diabólicas personagens e medos ancestrais, mas igualmente o prazer de respirar. Que a caveira a que todos nos reduziremos um dia chegue tarde, o mais tarde possível e que os folguedos nos incendeiem o corpo e o espírito.

Dança da morte
A partir de textos portugueses e espanhóis dos séculos XIV a XVI
Dramaturgia e direcção de Ana Zamora; Produção: Nao d’Amores (Madrid) e Teatro da Cornucópia (Lisboa); Intérpretes: Luis Miguel Cintra, Sofia Marques,Elena Rayos; Interpretação musical: flautas, cromornoe chirímia: Eva Jornet, viola de gamba: Juan Ramón Lara, órgão: Isabel Zamora
Arranjos e dir. musical: Alicia Lázaro; Cenário: David Faraco, Almudena Bautista; Figurinos: Deborah Macias; Desenho de luz: Miguel Ángel Camacho; Coreografia: Javier García Ávila; Assessor de verso castelhano: Vicente Fuentes; Assistência artística e de produção: Ana Szkandera; Director de produção de “Nao d’Amores”: Germán H. Solis; Assist. de encenação: Manuel Romano; Desenho gráfico: Cristina Reis; Assistente de cenografia e figurinos: Linda Gomes Teixeira, Luís Miguel Santos; Director técnico: Jorge Esteves.

Ana Zamora, com a sua companhia “Nao d’Amores”, estreou-se em Portugal no Festival de Almada de 2005, com “Auto de los quatro tiempos”, de Gil Vicente. No Festival de 2009, apresentou outro trabalho seu, “Misterio del Cristo de los Gascones”. Dedicando-se com grande mestria à encenação do primevo teatro ibérico, na sua dupla dimensão religiosa e profana, Ana Zamora já dirigiu – entre vários textos de outras épocas (como “Viaje del Parnaso”, de Miguel de Cervantes, em 2005) – “Auto de los Reyes Magos” (2008), “Sibila Cassandra”, de Gil Vicente (2003) ou “Comedia llamada metamorfosea”, de Joaquín Romero de Cepeda (2001). Em 2008 foi-lhe atribuído o Prémio ADE de encenação, pela Associação de Encenadores de Espanha.
Encenação de Ana Zamora

segunda-feira, julho 12, 2010

NOTAS DESPORTIVAS (NO INTERVALO DO FESTIVAL)

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ESPANHA, PORTUGAL E SPORTING
1. A Espanha ganhou o Mundial. Com justiça. Jogou sempre para ganhar (mesmo no único jogo que perdeu), foi “uma equipa”, recheada de bons jogadores, individualidades que serviram sempre o conjunto, nunca teve problemas internos nos 50 dias que durou a concentração, teve um treinador que foi sempre “um senhor”, soube ganhar e soube perder. Nada a opor. Perdemos com “os melhores” (e podíamos, se calhar, não ter perdido se não fossemos tão cobardes a enfrentar a partida, mas isso são outras histórias, outros treinadores, e outras mentalidades).

2. Por cá, parece que continua tudo na mesma, como se não tivesse havido nada: Carlos Queiroz vai continuar a treinar a Selecção Nacional. Madail na direcção da “amadora” FPF. Vamos continuar a jogar para não perder com Cabo Verde. Com um bocadinho de sorte e muitas contas até ao último jogo podemos ser apurados para o Europeu. Valha-nos a Senhora de Caravaggio!

3. O Sporting não vende Moutinho ao Everton por 15 milhões, há um ano, mas cede-o ao FC Porto, agora, por 11. Coisa de amigos. De resto, o Sporting parece ter abdicado de jogar futebol para ganhar seja o que seja. Basta-lhe por a render a Academia. Vende o que cria e satisfaz-se com a renda (curiosamente ninguém percebe como vendendo tanta cria, não está rico, mas, pelo contrário, em situação aflitiva).

4. Nos últimos dias, o SCP tem feito jogos de preparação. Novo treinador e muitas caras novas (e velhas). Nada de novo, porém, apesar dos muitos (ditos) reforços: continua-se a jogar para o lado e para trás e a não atinar com as balizas. Os passes falhados são mato. Uma ou outra nota positiva. Claro que faltam os “mundialistas”. Claro que pode haver mais “reforços”. Mas sabem quem tem sobressaído? Djaló. Sabem quem parece estar na calha para ser vendido? Djaló.

5. Gostava muito de me enganar. Imploro mesmo que me façam ver o meu tremendo erro. Ficaria muito feliz se me enganasse redondamente e, pelo menos, o SCP jogasse até à última jornada, pelo título, pelas taças, pela Europa. Mas parece-me que vamos continuar a jogar para o quarto lugar.

6. Benfica e Porto também já se “preparam”. Saúdo no Benfica o novo guarda-redes. Parece ser amigo. Ok, eu sei que o Benfica e o Porto também “saúdam” muitos jogadores do Sporting.

quinta-feira, julho 08, 2010

CHARLOTTE RAMPLING EM PORTUGAL

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CHARLOTTE RAMPLING EM ALMADA


Charlotte Rampling, como actriz, deu corpo a algumas das representações mais secretas, intimistas e perturbantes da figura da mulher, durante a segunda metade do século XX e a primeira década do seguinte. “Dar corpo” é uma boa síntese para o seu trabalho de actriz, pois Charlotte Rampling, para lá da expressividade da voz, da originalidade do seu talento e de uns olhos verdes misteriosos e sensuais, é uma intérprete para quem o corpo é um instrumento de ofício não negligenciável, não por maus motivos, não pelo oportunismo do seu aproveitamento, mas por muito boas razões: Charlotte Rampling faz do seu corpo matéria interpretativa, que acompanha a subtileza da voz e a voluptuosidade da emoção.

Nasceu a 5 de Fevereiro de 1946, em Sturmer, Inglaterra, filha de um coronel que chegou a comandante da NATO e era igualmente artista plástico de certos recursos, além de atleta olímpico, vencedor da medalha de ouro, em Berlim 1936, integrando a estafeta 4x400 metros. Em virtude da vida profissional do pai, Charlotte permaneceu longas temporadas em França, onde estudou na Academia “Jeanne d'Arc pour Jeunes Filles”, em Versalhes. De regresso a Inglaterra, passou pela escola de St. Hilda's, em Bushey. Iniciou a carreira como modelo antes de se estrear, num papel insignificante, num filme de Richard Lester “The Knack...and How to Get It” (1965). Foi, todavia, no ano seguinte que, ao lado de Lynn Redgrave, se tornou notada como protagonista de “Georgy Girl” (1966), de Sílvio Narizzano, integrando-se de certa forma no movimento de um cinema que se queria retrato da realidade social inglesa e que ficou conhecido por “free cinema”. Em 1969, pela mão de Luchino Visconti, enfrenta o seu primeiro grande desafio, no papel de Elisabeth Thallman, em “Os Malditos” (La Caduta Degli Dei).
A sua carreira ganha fôlego internacional, intercalando trabalhos em Inglaterra, EUA, França e Itália. Em “Vanishing Point”, de Richard Sarafian (1971), é uma inesquecível rapariga que pede boleia na estrada. Assume-se como incestuosa em “Addio, Fratelo Crudelle”, de Guiseppe Patron Griffi, segundo peça teatral de John Ford (1971), e é Ana Bolena, em “Henry VIII and His Six Wives”, de Waris Hussein (1972). Roda, ao lado de Sean Connery, a ficção científica “Zardoz”, de John Boorman (1973), e, em 1974, é Lúcia Atherton, em “O Porteiro da Noite” (Il Portiere di Notte), de Liliana Cavani, talvez o seu papel mais marcante. Interpreta de forma particularmente inquietante e brilhante a figura de uma sobrevivente de um campo de concentração nazi que reencontra o guarda que a torturou (Dirk Bogarde), com quem mantém uma relação sadomasoquista que causou enorme polémica em todos os sectores. Era a primeira vez que surgia no cinema uma relação assumida de “bondage”, ainda por cima entre um nazi e uma judia. As cenas de amor, de desejo e dor, de atracção e repulsa, mostravam uma mulher no perfeito domínio das suas emoções e da vibração do seu corpo. Charlotte Rampling torna-se uma actriz inabitual, expondo sem falsos pudores a nudez do seu corpo, mas sempre ao serviço de uma história que o justifica, tornando-se igualmente a actriz certa para papéis de inconfessáveis paixões. Ela era, de certa maneira, a imagem de uma perversão controlada, por vezes fria e dominadora, outras impulsiva e arrebatadora.
Segue-se, em 1975, a “remake” de “Farewell, My Lovely”, contracenando com Robert Mitchum num policial assinado por Dick Richard, partindo de um romance de Raymond Chandler. A nova versão não é tão boa quanto o original, de 1944, assinado por Edward Dmytryk, mas o trabalho dos actores compensa. “La Chair de l'Orchidée”, de Patrice Chéreau, do mesmo ano, oferece-nos outro magnífico retrato de mulher, uma rica herdeira, mantida encerrada pelo marido numa instituição psiquiátrica para assim poder manejar livremente a sua fortuna. É outro grande romance “negro”, desta feita assinado por James Hadley Chase, que ganha no grande ecrã um novo fôlego. Ainda por esta altura, no ponto mais alto da sua carreira de vedeta internacional, roda, sob as ordens do mexicano Arturo Ripstein, “Foxtrot”, contracenando com Max von Sydow e Peter O’Toole, e do norte-americano Woody Allen, “Recordações” (Stardust Memories).
Outro momento importante da sua carreira passa-o sob a direcção de Sidney Lumet, em “The Verdict” (1982), ao lado de Paul Newman, um drama passado entre advogados e barras de tribunais. Depois suporta com brio nova provocação no filme do japonês Nagisa Oshima, “Max, My Love” (1986), onde “aceita” apaixonar-se por um chimpanzé, e em França aparece num “thriller” de mistério e violência, “On Ne Meurt Que Deux Fois”, de Jacques Deary, voltando de novo aos EUA para trabalhar sob a orientação de Alan Parker, em “Angel Heart” (1987), onde se misturam práticas de “voodoo” e ambientes de crime. No final dos anos 80, e durante toda a década de 90, continua no clima do filme policial, por exemplo, em “Paris by Night”, de David Hare (1989) e “Invasion of Privacy”, de Anthony Hickox (1996), e na comédia, casos de “Time is Money”, de Paolo Barzman (1994) ou “Asphalt Tango”, de Nae Caranfil (1997). Mas são os papéis mais conturbados que melhor se encaixam na sua personalidade, como é o caso da inquietante tia Maude, em “The Wings of the Dove”, de Iain Softley, segundo obra de Henry James, onde aparece ao lado de Helena Bonham Carter (1997).
Volta a Anton Tchekov com “The Cherry Orchard”, de Mihalis Kakogiannis (1999), e inicia o novo século com um dos seus melhores trabalhos, “Sous le Sable”, de François Ozon (2000), com quem volta a trabalhar anos depois, em ”Swimming Pool”, num papel que a fará ganhar o prémio de melhor actriz do cinema europeu, atribuído pela European Film Academy, em 2003.
Na última década tem alternado pequenos e grandes papéis onde tem gravado sempre algo da sua personalidade, muito embora a sua carreira tenha oscilado entre obras essênciais e películas de puro entretenimento e vulgar comércio. Destaquem-se “The Statement”, de Norman Jewison (2003), “Immortel Ad Vitam”, de Enki Bilal (2004), “Le Chiavi di Casa”, de Gianni Amelio (2004), “Lemming”, de Dominik Moll (2005) “Vers le Sud”, de Laurent Cantet (2005), “Basic Instinct 2”, de Michael Caton-Jones (2006), “Angel”, de François Ozon (2007), ou, mais recentemente, “Desaccord Parfait”, de Antoine de Caunes, “Caotica Ana”, de Julio Medem, “Babylon A.D.”, de Mathieu Kassovitz, “The Duchess”, de Saul Dibb (todos de 2008).
Encontra-se actualmente a rodar, ou a ultimar, vários projectos, entre os quais “The Eye of the Storm”, de Fred Schepisi, “Melancholia”, de Lars von Trier. Outros títulos onde está prevista a sua colaboração: “Kill Drug”, “Angel Makers”, “Cleanskin”, “Never Let Me Go”, “Rio Sex Comedy” ou “The Mill and the Cross”. Uma actividade transbordante. Apesar desta carreira ininterrupta no cinema, Charlotte Rampling ainda encontra tempo para outras aparições, nomeadamente no teatro e na canção, um velho sonho que lhe vem da adolescência, quando ela e a irmã Sarah cantavam em dueto em cabarets, até ao dia em que o velho coronel, seu pai, as proibiu de actuarem. Mas, muitas décadas depois, em 2002, Charlotte cumpre o sonho e lança um CD, "Comme Une Femme", com Michel Rivgauche e Jean-Pierre Stora, disco que teve grande sucesso.
No teatro estreia-se tarde, só em Setembro de 2003, com “Petits Crimes Conjugaux”, de Eric-Emmanuel Schmitt, no “Theatre Eduoard VII”, em Paris. Ao lado de Bernard Giraudeau, numa encenação de Bernard Murat. Em 26 de Maio de 2004, no mesmo teatro, lê "A Queda da Casa Usher” e “A Máscara da Morte Vermelha”, duas novelas de Edgar Allan Poe. É “Notes de Lecture”, acompanhada pela “Musique Obliqúe”, com música de Jean-Sébastien Bach e André Caplet.
Ainda nesse ano, aparece entre Junho e Setembro, no “National Theatre”, em Londres, integrando o elenco de “The False Servant” de Pierre Marivaux, numa nova versão de Martin Crimp, com encenação de Jonathan Kent. Interpreta ainda, em 2007, em França, uma encenação de “A Dança da Morte”, de August Strindberg, no “Theatre Madelaine”, em Paris, ao lado de Bernard Verley.
No Festival de Teatro de Almada, Charlotte Rampling apresenta "Yourcenar/Cavafy", um recital de textos e poemas, respectivamente de Marguerite Yourcenar e Konstantin Kavafy. O espectáculo, concebido por Jean-Claude Feugnet, a partir de uma cenografia de Lambert Wilson, será apresentado no Teatro Nacional de S. João, no Porto (16 de Julho), e na sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II (dias 17 e 18).


(texto de abertura da brochura dedicada a Charotte Rampling, a sair durante o Festival de Teatro de Almada, resultante do protocolo de colaboração assinado entre este Festival e o Famafest)