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sábado, fevereiro 18, 2017

"AMÁLIA", O REGRESSO (1)



O REGRESSO DE “AMÁLIA” (1)
Foi em 2000 que escrevi este texto que agora aparece de novo no programa do Teatro Politeama, numa altura em que Filipe La Fèria repõe este enorme sucesso, com algumas novidades e um elenco ligeiramente retocado (17 anos de diferença impõem algumas variantes. Há actrizes que permanecem, mas em 1999 tinham 12 anos e eram Amália em miúda, agora são mulheres de 29, obviamente num outro papel.  Mas recordemos o que então escrevi, numa época que que o meu filho Frederico dava os primeiros passos no teatro, e assinado logo os vídeos desse belíssimo espectáculo que marcou o teatro musical em Portugal). 


“Eu sei, meu amor, que tu não chegaste a partir...”.

“Amália”, de Filipe La Féria, estreou na Madeira em finais de Novembro de 1999. Tive a sorte de lá estar, de acompanhar momentos de alguns dos derradeiros ensaios, e de assistir à estreia, gloriosa por aquelas bandas. Acompanhei depois, passo a passo, ainda que de longe, a estrondosa carreira deste musical que foi esgotando sucessivas lotações quase até à noite de Natal, altura em que o La Féria achou por bem devolver o Frederico à procedência, cansado mas feliz pela experiência que vivera.
Fala-se em boca de cena nos teatros. Amália Rodrigues era a boca do Fado e foi durante anos a boca por onde Portugal cantou. No Funchal, na sala do Casino Park, “Amália” começou por rasgar uma boca na boca de cena do teatro, estendendo por três mega écrans o grito nostálgico da Diva. Três écrans por onde foram passando a imagem única e as imagens múltiplas de Amália e do Fado Português do último século. Para o bem e para o Mal, para a consagração e para a polémica, Amália esteve ligada à História de Portugal deste final de milénio. Ela foi a Voz, ela deu consistência à música, ela conviveu com poetas, escritores, artistas, ela atravessou os salões do poder, ela foi política, negando que o fosse, foi a imagem de Portugal passeando pelos palcos mundiais, ela foi a nossa Glória e a nossa Tristeza, o nosso Portugal dos Pequeninos e o nosso verdadeiro Quinto Império
Enquanto no palco, um elenco de muito bom nível, ritmado pela cadência galopante de La Féria, escrevia a história de Amália Rodrigues, desde a sua humilde infância até à consagração nacional, percorrendo um itinerário de sucesso que se foi cruzando com a dor, como é destino dos imortais, nos três écrans vão surgindo frases, fotos, desenhos, pinturas, excertos de filmes ou vídeos que colocam Amália no seu tempo e o tempo de Amália nos nossos olhos. Nascida com a 1ª República, cresceu com (e para) o Estado Novo, foi condecorada por Marcelo Caetano, acusada de “colaboracionista” e perseguida em 74, condecorada por Mário Soares, levada em triunfo pelos seus 50 anos de carreira, e desceu à terra acompanhada por milhões de portugueses que a choram em Cerimónia Nacional. O filme dessa história pessoal é o filme da nossa história colectiva e passa por detrás dos actores que cantam o melhor de Amália, nas inspiradas melodias de Frederico Valério, Carlos Santos Gonçalves, José Fontes Rocha, Alain Oulman e tantos outros.
E falando de filmes, deve dizer-se que Amália no cinema também está documentada através de dois momentos importantes, “Capas Negras”, de Armando Miranda, onde aparece ao lado de Alberto Ribeiro, e “Fado, História de uma Cantadeira”, de Perdigão Queiroga, contracenando com Virgílio Teixeira. Mas a contribuição da fadista no cinema nacional ficou ainda marcada por “Fado Corrido”, de Jorge Brum do Canto, e “Ilhas Encantadas”, de Carlos Villardebó. Em todos se confirma um pressentimento: Amália poderia ter sido uma grande actriz, se bem dirigida, e esta certeza leva-nos a lamentar o diminuto número de obras onde ela aparece. Mas também no cinema, Amália deixa uma presença forte.
Os murais de Almada, o casario de Botelho, o pitoresco boémio de Stuart, as cores puras de Mário Eloy, a filigrana policroma de Vieira da Silva, a intimidade fechada de Maluda, o fado de Malhoa, a solitária emoção de Lauro Corado cruzam-se com o preto e branco das fotos, com o grafismo dos cartazes e anúncios marcando a passagem da cantora pelo Retiro da Severa, pelo Parque Mayer, pelo Olympia de Paris, por Nova Iorque, Tóquio ou Rio de Janeiro, pelo mundo. Por momentos, a imagem são os olhos de Amália, onde nos revemos. Olhos nos olhos, quem foste tu, Amália, quem somos nós, portugueses? Fado do mesmo fado, angústia da mesma angústia, pecado do mesmo pecado, paixão que nos consome, com a grandeza das coisas pequenas e íntimas.
O segredo deste musical que Filipe La Féria concebeu e encenou com brilhantismo, e que marca talvez um dos pontos mais altos da sua carreira, está na unidade conseguida, na coerência da proposta, na conjugação de todos os elementos em redor de uma figura, e na força poderosa e avassaladora desta evocação. Uma personagem que são vários rostos: agora, Alexandra, Liana, Patrícia Resende ou Marline Costa, em Lisboa. O mesmo princípio do caleidoscópio que, através da diversidade, restitui a unidade. Um puzzle que se organiza à nossa frente, convidando à intervenção do espectador. Um mosaico no empedrado das ruas de Lisboa que nos traz ecos de uma mulher singular. Afinal, o Fado cumpre-se. “Eu sei, Meu Amor, que tu não chegaste a partir...” Os imortais, não partem. Viajam e regressam continuamente. Como Amália Rodrigues, que agora vemos comovidamente em “Amália”. (Lauro António, 2000). 

                                                                                                              

sábado, maio 30, 2015

"A NOITE DAS MIL ESTRELAS" NO CASINO DO ESTORIL



A NOITE DAS MIL ESTRELAS



Devo dizer que gosto muito da Costa do Sol, com particular destaque para Oeiras, Estoril e Cascais. Recordei recentemente uma série de reportagens que publiquei no extinto jornal “República”, corria o ano de 1966, e que percorria a rota “Do Cais do Sodré a Cascais”, com subtítulo “Em Comboio eléctrico – primeira etapa de férias”, reportagem que foi premiada com o primeiro prémio no concurso promovido pela Junta de Turismo da Costa do Sol, “O Melhor Artigo sobre a Costa do Sol” (reportagem republicada  em “Cascais e seus Lugares”, Cascais, 1968). Teria muitas histórias para contar do tanto que por ali tenho vivido, desde as férias passadas com a família em Cascais, à minha estreita relação com o TEC desde a sua fundação, não esquecendo, infelizmente!, as últimas férias de meu pai, num hotel do Estoril, até às masterclasses que agora mantenho em Oeiras. Depois, devo confessar que gosto bastante de arriscar uns escudos ou uns euros nas máquinas do Casino, prazer que tenho abandonado pois os tempos não estão para esses apetites, e fui frequentador assíduo de concertos grandiosos, de espectáculos feéricos, com que Assis Ferreira dinamizou o novo Casino, sobretudo a partir de umas Galas orientadas pelo João Maria Tudela e que ajudaram a mudar a cara do velho para o novo. O “velho” era aquele Casino onde uma vez fui impedido de entrar porque não levava gravata e que justificou uma crónica no “Diário de Lisboa”, onde então escrevia. O “novo” é aquele espaço multicolor, explodindo em néones e jackpots (estes muito raros, infelizmente), com um salão preto e prata por onde passaram algumas das maiores vozes do mundo e também do maior silêncio mímico.
Há dias estreou um novo espectáculo neste espaço, “A Noite das Mil Estrelas”, da autoria de Filipe La Féria, que o escreveu e encenou, tendo por base uma viagem pelos momentos mais emblemáticos da história do Casino Estoril, desde os anos trinta à actualidade, fazendo, ainda, o enquadramento com a História de Portugal do séc. XX aos nossos dias. É um espectáculo ligeiro, um daqueles espectáculos para Casino. É conveniente não esquecer isto. Muita luz, cor, movimento, ritmo, mulheres bonitas, lantejoulas e plumas, entremeados com números de actores e cantores. O que me pareceu mais bem conseguido foram algumas evocações “históricas”, desde a fundação do casino, à praia do Tamariz, passando pela presença de personalidades como os reis de Espanha (Juan Carlos) e de Itália (Humberto), Grace Kelly, Ian Fleming, Margaret de Inglaterra, Soraya do Irão, Jorge Amado ou Salvador Dali. Mais desequilibradas são as recordações de algumas das muitas estrelas que deram luz a esta noite: Amália, Carlos do Carmo, Gloria Swanson, Tony Bennett, Elis Regina, Charles Aznavour, Júlio Iglésias, Liza Minnelli, The Platters, Stevie Wonder, Woody Allen, Ray Charles, entre muitos outros. Sem esquecer aquele memorável "Só Nós Três". 


Mas, globalmente, esta “A Noite das Mil Estrelas” é um grande espectáculo de music-hall, com um belíssimo guarda-roupa de Costa Reis, bem ritmado e animado, com o talento (e a loucura, pois então! de La Féria a dar boa conta de si. Não sei como aparece “O Rei Leão” nesta fantasia, mas trata-se de um número imperdível. Entre os intérpretes contam-se Alexandra, Rui Andrade, Gonçalo Salgueiro, Pedro Bargado, Vanessa, David Ripado, Dora, Cláudia Soares, João Frizza e Catarina Mouro. Obviamente que há um vistoso corpo de bailarinos, acrobatas e uma orquestra ao vivo. Tudo boas razões para optar por uma noite relaxante e fresca, a partir das 21h30, com o musical “A Noite das Mil Estrelas”, em exibição de quinta-feira a domingo (às 17h00), no Salão Preto e Prata do Casino do Estoril. M/12 anos. 

sábado, dezembro 14, 2013

TEATRO: ROBIN DOS BOSQUES


ROBIN DOS BOSQUES

Filipe La Féria continua a não descurar o seu público mais jovem e voltou a encenar uma peça baseada num herói mítico que tem acompanhado diversas gerações e cujo regresso a cena se saúda, numa altura em que muitos proclamam, pela Europa fora (e em Portugal, em particular), que fazia falta um (ou vários) Robins dos Bosques para imporem alguma justiça neste regabofe de impunidade contributiva que faz lembrar os tempos negros do Xerife de Nottingham e do famigerado Príncipe João.
Pois bem, o Robin Hood da floresta de Sherwood aí está numa divertida encenação com o toque mágico de Filipe La Féria (uma encenação que, dir-se-ia, possui um vestígio de teatro épico e didáctico de Brecht), com um equilibrado elenco e um bom aproveitamento das condições do Teatro Politeama. O enredo segue mais ou menos as tradicionais baladas medievais que exaltavam a figura do bandoleiro que roubava aos ricos para dar aos pobres, e introduz mesmo algumas variantes que fazem vibrar os mais novos, como a bruxa Camafeu e um terrível dragão.
Ricardo Soler é o Robin dos Bosques, “Príncipe dos Ladrões” e paladino da justiça social,  Sara Cabeleira é Lady Marian,  e Ana Sofia Cruz a Aia Briolanja. No bando de Robin dos Bosques surgem ainda João Pequeno (Bruno Xavier), Piolho (David Mesquita), Pitosga (Jonas Cardoso), Trovador (Pedro Bandeira) e Pastelão (Paulo Ferreira), todos eles em luta contra os roubos e os impostos mirabolantes decretados pelo Príncipe João (Sérgio Lucas) e brutalmente impostos pelo Xerife de Nottingham (Tiago Isidro). A Bruxa Camafeu (Vânia Naia) tem uma breve mas explosiva aparição.
O espectáculo tem sessões no Teatro Politeama, às 11h da manhã e às 14 horas de Terça a Sexta-feira e aos Sábados e Domingos, às 15 horas.

A miudagem delira com mais este musical. Eu assisti e comprovo.  

sábado, junho 29, 2013

TEATRO: GRANDE REVISTA À PORTUGUESA


GRANDE REVISTA À PORTUGUESA

Os dois ou três últimos espectáculos de Filipe La Féria tinham-nos deixado um certo travo amargo na boca. Não eram maus, mas eram demasiado esforçados, percebia-se que lutava contra muitos entraves, que não eram bem aquilo que ele sonhava, mas apenas o que podia fazer para manter aberto o seu Politeama. Algumas vozes que ouvi consideravam mesmo que La Féria tinha perdido gás, já não era o que era, mas aí está a “Grande Revista à Portuguesa” para demonstrar que o ocaso foi mesmo ocasional, e que La Féria regressou ao seu melhor. Este é um trabalho magnífico, um daqueles espectáculos que os portugueses precisam nesta altura das suas tão amarguradas vidas. Ainda bem que assim é. Eu que, além de tudo o mais, sou amigo e um admirador confesso deste homem de teatro, fico satisfeito e feliz por este regresso em força e em magia.
Eu sei que encenar uma peça de teatro ou um musical não é o mesmo que encenar uma revista. São contextos diferentes e necessitam de aproximações diversificadas. Mas também posso dizer que há muito, possivelmente desde “Passa por Mim no Rossio”, que não via nada com a qualidade desta “Grande Revista à Portuguesa”. O texto é inteligente, bem escrito, crítico, politicamente incorrecto em todas as direcções, mas por isso mesmo eficaz, sem todavia ser derrotista, sem ser anti-democrático. Depois, cenários e guarda-roupa são deslumbrantes, os primeiros jogando quase sempre no apontamento desenhado (muito bem desenhado, diga-se), com uma ou outra apótese, o segundo de um bom gosto e de uma eficácia espectacular sem remoque. Nunca se excedem, sempre na dimensão exacta, sem novo-riquismos escusados. Repita-se: o guarda-roupa de José Costa Reis é daqueles que apetece trazer para casa, com uma combinação cromática e um desenho de formas que nos fazem sonhar. Tudo o resto acompanha a quase perfeição: o desenho de luzes, a coreografia de Marco Mercier (finalmente uma coreografia que não é pífia e pindérica, que é o que mais tem abundado por aí), os vídeos, as canções e a direcção musical.
Finalmente, os actores. Que elenco! Marina Mota, a quem eu um dia chamei “o Futre da revista à portuguesa”, quando o Figo era a Ivone Silva, e quando nós os dois eramos bastante mais novos, e ela dava os primeiros passos na profissão, agora atingiu o patamar de “Cristiano Ronaldo da revista à portuguesa”. Ela é portentosa de vitalidade, de garra, de talento, de graça, de entrega. O seu número do “polícia e do ladrão” fica na História, tal como o do “Prédio” onde ela se multiplica em diversas personagens. Mas tudo o que faz, faz bem.
João Baião é outro caso idêntico e quase poderia utilizar os mesmos adjectivos: vitalidade, garra, talento, graça, entrega, e mais alguns números ficam para a História da revista: ele é brilhante como “Tony Carteira”, como “Roberto”, como obcecado pelo “Facebook”, como “Sócrates”.
Depois, mais vitalidade, garra, talento, graça, entrega e estamos a falar da pequena bomba relógio que é Maria Vieira. Ela é “Ela”, é “Guia”, é a Madre Superiora do “Convento dos Segredos”, ela é “Fafá”, ela explode em cada aparição. Outro tanto se pode dizer de Ricardo Castro, notável como mordomo de Sócrates, como “Joana Vais Conhecê-los”, como “Lula”, como La Féria, num número que recorda a “Audição do Pedrinho”. Está ali um grande actor, na tradição de um Vasco Santana que por vezes relembra.
Maria Vieira, João Baião e Filipe Albuquerque (atenção a este nome!) oferecem-nos ainda um divertidíssimo quadro de “Angolanos às Compras”. Não me venham falar de resquícios de racismo, é puro humor crítico do melhor, que não poupa brancos, amarelos, vermelhos ou negros.
Há ainda Bruna Andrade, Rui Andrade, Vanessa, Patrícia Resende, Adriana Faria, corpo de baile, e etc. e tudo a correr sobre esferas. O número da “Marioneta” é bater numa tecla já gasta, poderia ter-se encontrado outra forma de mudar de cenário, mas é apenas um pormenor.
Que bom é ver actores no seu habitat natural, dando o melhor de si mesmo. Que pesaroso foi ver Marina nalguns episódios televisivos onde se percebia como desbaratava talento. Que bom é vê-la ali no palco, a regurgitar de vida.
Que bom é ir ao teatro e sair com esta sensação de plenitude, de fartura, mesmo neste tempo de vacas magras. La Féria consegue o milagre de fazer uma revista à portuguesa que poderia estar num palco de Paris, Londres ou Nova Ioque e continuar a ser muito boa. Que o público lhe não falte, pois todos quantos a conceberam e diariamente lhe dão vida bem o merecem.

O Teatro Politeama comemora agora 100 anos de existência. Não poderia ter melhor prenda de aniversário.


domingo, julho 08, 2012

AMÁLIA (2)


UMA NOITE EM CASA DE AMÁLIA (2)
Em 1968, por iniciativa de David Mourão Ferreira, a Valentim de Carvalho gravou uma noite histórica em casa de Amália, que reuniu, além da cantora, Vinicius de Moraes, Natália Correia, Ary dos Santos, Maluda, Alain Oulman e o próprio David Mourão Ferreira. Vinicius ia partir para Roma e depois o Brasil, Oulman ia exilar-se em Paris, e esses eram os pretextos para uma noite poética e musical, como tantas outras, mas esta registada em banda sonora para futura reprodução.
Filipe La Féria agarra neste acontecimento e resolve conceber um espectáculo com base nele. Uma boa ideia, que resulta em duas horas por onde perpassam mais de trinta canções, que vão do fado ao samba, passando por temas espanhóis e franceses, incluindo o “Summertime”, evocados pelas vozes de quase todos os intervenientes. E onde se recordam não só as personalidades presentes nessa noite, como a época então vivida em Portugal, em pleno marcelismo, com guerra, censura e polícia politica, perseguições e medo.
Pela reacção do público pagante (não o da estreia, mas o de uma vulgar “soirée”) que saiu visivelmente satisfeito no final do evento, tudo indica que La Féria acertou na “mouche”, o que bem precisa, pois a situação do teatro em Portugal, nestes anos negros de penúria, é péssima, e a disposição do cidadão não é melhor, e uma evocação de algumas glórias nacionais, com muitas canções à mistura, sempre ajuda a levantar o moral.
Não existe o que se possa chamar uma história, dramaticamente a estrutura é muito linear, o que conta é o encontro desses escritores, poetas, músicos, pintores e cantores, e as conversas que entre eles se estabelecem, e que permitem dar entrada a temas musicais. Mas julgo que haveria alguns aspectos a melhorar no seu conjunto. Penso que o cenário é demasiado vasto para criar o tipo de intimidade que a reunião requeria e julgo que a iluminação, excessiva quase sempre, também impede essa cumplicidade. De resto, o clima dramático sobe quando se encontram em cena apenas duas personagens, caso de Oulman e Amália, ou de Amália e Maluda, mesmo quando surge o militar que se apresta a partir para África e se vem despedir da sua quimérica paixão e entregar-lhe um ramo de rosas vermelhas.
Quanto ao elenco, onde se nota algum desequilíbrio, conta com uma boa presença de Vanessa Silva, na figura de Amália, o que para ela, fisicamente tão distante do modelo, constituiu um enorme desafio, que suporta com grande dignidade, quer a cantar, quer a recuperar alguns dos traços e gestos da fadista. Marcos de Góis (Vinicius), Paula Fonseca (Natália), Ricardo Castro (Ary), Hugo Rendas (Oulman), Nuno Guerreiro (David), Cláudia Soares (Maluda), Rui Andrade (militar), Rosa Areia (Casimira) e Pedro Martinho (Hugo Ribeiro) compõem o grupo de convidados, a empregada de Amália e o engenheiro de som. Apetece-me destacar Hugo Rendas, contido e frágil, como se impunha, e Rosa Areias e Pedro Martinho que, com curtas aparições, marcam as cenas. Também Rui Andrade consegue um bom momento com a sua passagem por cena. Já a escolha do brasileiro Marcos de Góis me parece a menos acertada para o papel.
“Uma Noite em Casa de Amália” cozinhado com os sabidos temperos de La Féria, apesar da crise geral, que também aqui se nota, prepara-se, todavia, para ser um grande sucesso de público. Trata-se efectivamente de um espectáculo popular, que não agride a inteligência nem a sensibilidade do espectador, e que, para lá de recordar grandes sucessos musicais, nos relembra parte da nossa história recente. O que faz pensar.

sábado, janeiro 28, 2012

TEATRO: JUDY GARLAND - O FIM DO ARCO-ÍRIS

:
JUDY GARLAND - O FIM DO ARCO-ÍRIS


Depois de ter tratado sempre com grande amor e entusiasmo os casos de divas como Amália, Maria Callas ou Edith Piaf, Filipe La Féria lança-se na evocação de Judy Garland, através da encenação do musical “Judy Garland - O fim do arco-íris”, um original de Peter Quilter, que tem sido bem recebido nos palcos de todo o mundo e agora sobe à cena no Teatro Politeama de Lisboa.
Inglês de nascimento (Colchester), Peter Quilter estudou na Universidade de Leeds, emigrando depois para as Ilhas Canárias, onde reside. Iniciou a carreira como apresentador de televisão, na BBC, e estreou-se como dramaturgo com uma comédia, “Respecting Your Piers”, mais tarde rebaptizada como "Curtain Up", a que se seguiram uma adaptação de Oscar Wilde, “The Canterville Ghost”, o musical, e uma nova comédia, “BoyBand”. O seu primeiro grande sucesso internacional seria, todavia, em 2005, “End of the Rainbow”, que se estreou na Sydney Opera House, na Austrália. Em Inglaterra, surgiu no Royal Theatre de Northampton, com encenação de Terry Johnson, e interpretação de Tracie Bennett. Chegou ao West End londrino, para se instalar no Trafalgar Studios, tendo recebido quatro nomeações para os “Laurence Olivier Awards”, melhor nova peça, melhor actriz, melhor actriz num papel secundário, melhor som. A sua carreira prosseguiu em Madrid, Hamburgo, Rio de Janeiro, e vai estrear nos EUA, a caminho da Broadway, onde conta chegar a 19 de Março deste ano.
Outro musical de grande sucesso do mesmo autor é “Glorious!”, contando-se ainda no seu reportório obras como “Celebrity”, “Just the Ticket”, “Curtain Up!”, “The Nightingales” ou “The Morning After”.
“Judy Garland - O fim do arco-íris” é, como se calcula, uma homenagem à lendária actriz e cantora que nos legou, entre outros, filmes como “O Feiticeiro de Oz” ou “Não Há Como a Nossa Casa”, “O Pirata dos Meus Sonhos” ou “Assim Nasce Uma Estrela”, para só citar alguns.
Judy Garland nasceu com o nome de Frances Ethel Gumm, a 10 de Junho de 1922, em Grand Rapids, Minnesota, nos EUA, e viria a falecer muito jovem ainda, aos 47 anos, em Londres, a 22 de Junho de 1969. Desde muito nova que se entregou ao espectáculo, os pais eram artistas de variedades e cantores, Francis Avent "Frank" Gumm (1886-1935) e Ethel Marion Milne (1893-1953), e formou com duas outras irmãs mais velhas, Mary Jane "Suzy" Gumm (1915-64) e Dorothy Virgínia "Jimmie" Gumm (1917-77), um trio a que deram o nome “The Sisters Gumm”, que, depois de muitos espectáculos de teatro de “vaudeville”, se estreou no cinema, em 1929, em “Revue Big”. A última aparição de “The Sisters Gumm” no ecrã surgiu em 1935, em “La Fiesta de Santa Barbara”, uma curta-metragem musical. Passaram então a chamar-se “The Garland Sisters”, dado que Gummo não era nome que soasse bem. Mas o trio não durou muito. Suzanne Garland casou, abandonou a carreira, e também Frances Ethel Gumm foi substituída por Judy Garland. "Judy", como homenagem a uma popular canção de Hoagy Carmichael, e Garland, aí as explicações fiam mais fino e há várias, para todos os gostos, desde uma influência da personagem de Carole Lombard (Lily Garland), até um elogio recebido por telegrama da actriz Judith Anderson, onde se referia a palavra "Garland" (grinalda). É já como Judy Garland que assina o seu primeiro contrato a solo com a MGM. Estávamos em 1935, ela tinha treze, catorze anos 1, 64 m de altura, , o pai morrera pouco antes, vítima de meningite, e a “,Babe”, como era chamada pelos familiares e amigos, logo passou a “filha da MGM”, onde dominava Louis Mayer, que tinha por hábito alimentar-se sexualmente de todas as suas actrizes.
A seu lado, tinha as “vedetas” da casa, entre as quais Ava Gardner, Lana Turner ou Elizabeth Taylor, e Garland não era o que se pode chamar o “glamour” em pessoa, a uma primeira vista. Na sua idade, não era nem carne nem peixe, e Louis B. Mayer, uma vez recusados os avanços, ao que consta, referia-se a ela como a "pequena corcunda". Mas a popularidade da jovem actriz era muita, sobretudo desde que cantara “You Made Me Love You”, no aniversário de Clark Gable, e posteriormente no “All-Star Extravaganza Broadway Melody” de 1938, desta feita perante a fotografia do actor. A MGM inventou então a parelha Judy Garland - Mickey Rooney, que apareceu numa série de musicais para adolescentes. O primeiro data de 1940, “Thoroughbreds B Don't Cry”, a que se seguiram mais oito. Mas foi “O Feiticeiro de Oz”, de 1939, que marcaria para sempre a sua carreira e a tornaria imortal, sobretudo através do êxito sem precedentes que foi a sua interpretação do clássico tema “Over the Rainbow”.
 
Rapidamente Judy Garland se torna dependente de medicamentos e drogas, de álcool e tabaco. Afirma-se que Louis Mayer, “para melhor rentabilizar os serviços da jovem” lhe administrava anfetaminas para a estimular e, depois, barbitúricos para que dormisse quando já não era necessária”.
A sua vida torna-se um carrossel com altos e baixos cíclicos. Profissionalmente é uma das mais celebradas vedetas dessas décadas de ouro do musical, aparecendo nalguns dos grandes filmes que assinalaram o género. Mas, em simultâneo, a dependência torna-se uma constante, as crises multiplicavam-se, com tentativas de suicídio regulares, e os seus efeitos sobre o trabalho também, com atrasos e ausências a filmagens. Começou várias obras que não terminou, sendo despedida e substituída por outra actriz. Particularmente, a sua vida sentimental era instável. Casou com David Rose (1941-1944), com o cineasta Vincente Minnelli, de cuja ligação nasceu Liza Minnelli, (1945-1951), Sidney Luft (1952-1965), Mark Herron (1965-1967), e Mickey Deans (1969), que a encontrou morta na banheira do seu apartamento, num hotel da capital inglesa.
Em 1999, o “American Film Institute”, numa sondagem entre os seus membros, colocou-a em oitavo lugar, entre as dez maiores estrelas femininas da história do cinema americano. Desde a sua morte, cujo enterro foi acompanhado por mais de 22 mil pessoas, que é um ícone da história do cinema e do espectáculo.
Foi esta personagem singular, mas não tão singular assim, quando olhamos a história do espectáculo mundial, onde exemplos similares são frequentes, que serviu de base à peça de Peter Quilter, que se centra somente nas últimas semanas de vida da actriz, quando em Londres se encontra a actuar no “Talk of the Town”. A peça mostra o mau feitio da actriz, no seu relacionamento com o seu dedicado pianista, Anthony (Carlos Quintas), e com o seu quinto marido, Mickey Deand (Hugo Rendas), mas, de certa forma, tenta fazer compreender esse génio desesperado pelos amargos de boca por que a actriz passou ao longo de toda a vida. De qualquer forma, este tipo de trabalhos deixa sempre uma certa sensação de ligeira hipocrisia e de aproveitamento pós-mortem. É verdade que Judy Garland, como muitas outras e outros, tiveram vidas sacrificadas, mas também não o é menos que deveria ser muito traumatizante trabalhar com ela, sujeito a todos os seus estados de espírito. Mas a peça parece uma sincera homenagem, não muito brilhante enquanto escrita teatral, mas suficientemente interessante para se acompanhar com agrado.


Filipe La Féria, tal como o país, vive um período de vacas magras, e não se nota em “Judy Garland - O Fim do Arco-Íris” aquele arrojo espectacular que costuma ser seu timbre. A encenação oscila entre dois cenários, o quarto de hotel e o palco do “Talk of the Town”, sendo que é aqui que se passam os momentos mais exaltantes, com a interpretação de Vanessa Silva, como Judy Garland, uma bonita e poderosa voz e uma interpretação que, na noite da estreia, começou naturalmente nervosa e lentamente foi ganhando o palco e admiração dos espectadores. Carlos Quintas e Hugo Rendas cumprem com a habitual dedicação.

domingo, outubro 09, 2011

TEATRO NO CASINO DO ESTORIL

 :

O Melhor de La Féria”


“O Melhor de La Féria” é e não é “o melhor de La Féria”. O nome pode enganar um pouco, pois La Féria não é só o encenador de musicais, muito embora tenha sido através deles que adquiriu a celebridade de que hoje desfruta. Mas, para se ser mais rigoroso, este espectáculo que agora estreou no Salão Preto e Prata do Casino do Estoril deveria chamar-se “O Melhor de La Féria – Os Musicais”. Filipe La Féria tem um historial que vai muito para além dos musicais, os seus tempos na Casa da Comédia são recordados com grande interesse, quando ele era um jovem vanguardista que encenava peças como "A Paixão segundo Pier Paolo Pasolini", "A Marquesa de Sade", "Eva Péron", "Savanah Bay”, "A Bela Portuguesa", " Noites de Anto", "A llha do Oriente", de autores como Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras, Mishima, Agustina Bessa-Luís ou Mário Cláudio. Depois há o seu primeiro grande sucesso popular, de público e de crítica, "What Happened to Madalena Iglésias?". Mesmo após a sua “conversão” ao musical, La Féria assina espectáculos memoráveis que não são musicais, desde "Maria Callas" a “A Casa do Lago”, passando por "Rosa Tatuada", entre outros.
Enfim, Filipe La Féria é mais do que aquilo que se mostra em “O Melhor de La Féria”. Mas, nesta antologia laferiana do musical em Portugal, há algo que perpassa e aí sim, temos o melhor de La Féria. O melhor de La Féria é a sua paixão pelo teatro, pelo espectáculo, pelo palco, pelos actores e o público, por esse momento mágico que acontece sempre que as cortinas se abrem (ou sobem) e o milagre acontece. Este milagre não tem muito a ver até com a qualidade do espectáculo. Acontece numa modesta sociedade recreativa de amadores ou no Scala. Em intensidades diferentes, é certo, mas acontece porque quem gosta de teatro e do espectáculo sente esse mergulhar no puro sortilégio do jogo da transformação, da mentira que passa a verdade, do fascínio do milagre das rosas ou da travessia das águas. Ali, naquele local hipnótico que é o palco, tudo é possível. Todos os sonhos de criança se tornam possíveis, o que aliás marca o início deste espectáculo, onde La Féria, miúdo, brinca aos teatrinhos, para depois se abrir perante si o enorme palco do Casino, onde a sua “feérie” irá acontecer. Podem assacar-se a La Féria alguns defeitos, mas não se lhe pode recusar o seu amor ao teatro. Depois da sua encenação de “As Fúrias”, no Nacional D. Maria II, La Féria passou a ser conhecido, para o bem ou para o mal, como “La Fúria”. Essa “fúria” marca bem a sua personalidade, o seu arrojo, a sua temeridade, a sua megalomania, a forma como se lança nos projectos mais loucos, como sobe ao palco e grita “Viva o Teatro!”. Ele é isso mesmo, um amante agitador, um Dom Quixote teatral. “O Melhor de La Féria” faz justiça à figura.
Agora o espectáculo em si mesmo: como já se disse, inicia-se com La Féria criança a imaginar-se no teatro, passa por La Féria no teatro ao longo de uma vasta carreira como autor de musicais, e termina com La Féria na actualidade, a imaginar novas encenações. Não deixa de ser coerente. “La Fúria” não pára. Desde criança. Hoje ainda mantém o mesmo desejo, o mesmo apetite, a mesma obsessão. Se pudesse, não havia musical que lhe escapasse.
A evocação dessa carreira começa por alguns números de “Passa por mim no Rossio”, e depois desfilam “Maldita Cocaína”, “My Fair Lady”, “Amália”, “A Canção de Lisboa”, “Música no Coração”, “West Side Story”, “Piaf”, “Jesus Cristo Superstar”, “ Um Violino no Telhado”, “A Gaiola das Loucas”, “Fado - História de um Povo”, e uma antevisão de todos os que ele ainda sonha realizar, desde “Chapéu Alto” ou “Serenata à Chuva”,  “Sweet Charity” ou “O Feiticeiro de Oz” (que já encenou, e bem), até aqueles que se sabe que andam no seu horizonte próximo, como “Evita” (a sua próxima estreia já anunciada), “O Fantasma da Ópera”, “Man of la Mancha”, “Os Miseráveis”, “Mamma Mia” ou “Hello Dolly”, que lhe serve a preceito como gala de encerramento.
Ao longo de quase duas horas temos um pouco de tudo, para deleite de nostálgicos empedernidos, bons números, encenações criativas, música da melhor, cantores que cumprem galhardamente, coreografias espectaculares, bonito guarda-roupa, cenários discretos, mas quase sempre eficazes (como resulta bem “Piaf” num cenário minimalista), bailarinas, plumas, lantejoulas, luzes, e ainda acrobatas, dependurados do tecto, tal como a cruz de Cristo, como O próprio em arriscada postura. É, portanto, “O Melhor de La Féria” quase em todo o seu esplendor. Há uma ou outra solução que não me parecem as melhores, dispensava bem alguns números de trapézio, por inúteis, mas deixava ficar as belíssimas mariposas que descem do tecto, e quanto à animação dos vídeos, muitas vezes bem conseguida, deixava cair a Maria, de “Música no Coração”, regadeira, a verter águas sobre as verdes montanhas, que me pareceu de muito mau gosto. 
De resto, o que poderia ser uma manta de retalhos, acaba por resultar numa bonita evocação de uma carreira, que é simultaneamente uma homenagem a um autor que bem a merece. É Filipe La Féria quem escreve no programa: “Tantas vezes encontro, a um canto de um velho armazém, velhos adereços, peças de guarda-roupa que já tiveram vida sob as luzes brilhantes dos projectores. O Teatro deu-me também Vida. A ele devo o que sou, com toda a sua luz e sombras. Levou-me a sítios inimagináveis, a países para além do arco-íris, fez-me conhecer pessoas inesquecíveis, deu-me momentos de prazer e glória e também de desilusão e dor, e aprendi com ele a compreender melhor o ser humano. É injusto a vida não ser como o teatro: ter tempo para ensaiar e depois para viver”.
Pois é: no teatro ensaia-se a vida, na vida ensaia-se o teatro. Entre o teatro e a vida vamo-nos todos ensaiando, uns aos outros. Essa a grande lição da arte de representar.
O elenco, bem encabeçado por Alexandra e Henrique Feist, conta ainda com a presença de Gonçalo Salgueiro, Paula Sá, Vanessa, F.F., Eva Santiago, Flávio Gil, Elsa Casanova e João Frizza, um corpo de bailado, dois acrobatas e um orquestra privativa.

No Salão Preto e Prata do Casino do Estoril. A partir de 7 de Outubro, de quarta a sábado às 21h30, e ainda sábados e domingos às 17h00.

domingo, junho 26, 2011

TEATRO: A FLOR DO CACTO


 A FLOR DO CACTO
Jean-Pierre Grédy e Pierre Barillet escreveram uma trentena de peças de teatro entre 1949 e o início da década de 90. Comédias de boulevard, sem grandes pretensões, um arzinho de crítica de costumes e algum humor, baseado em trocas e baldrocas, situações equívocas, encontros e desencontros. A herança de Georges Feydeau, Georges Courteline ou Eugène Labiche, mas sem a graça destes. Em 1964, estrearam “Fleur de Cactus”, no Théâtre des Bouffes-Parisiens, com algum sucesso e logo despertaram o interesse da Broadway americana que adaptou a peça para os seus palcos numa versão de Abe Burrows, que também a encenou. “Cactus Flower” estreou-se em Dezembro de 1965, no Royale Theatre, permaneceu dois anos en cena, passando depois para o Longacre, perfazendo um total de 1234 representações, que terminaram em Novembro de 1968. Do elenco original faziam parte Lauren Bacall, Barry Nelson, Brenda Vaccaro, Burt Brinckerhoff, Lloyd Bridges, Kevin McCarthy, e Betsy Palmer. Êxito de público, portanto.

Pouco depois, em 1969, o argumentista preferido de Billy Wilder, I.A.L. Diamond adaptou a peça a filme, que Gene Saks dirigiu de fora escorreita, com um bom conjunto de intérpretes, Walter Matthau, Ingrid Bergman, e Goldie Hawn, que iria ganhar um Óscar com esta sua estreia no cinema. Os actores vão bem, os diálogos são divertidos, escritos com alguma subtileza e graça, a adaptação do palco ao ecrã é muito aceitável. Não estamos na presença de uma comédia daquelas que figuram no palmarés das nossas boas recordações, mas não envergonhava.
Julian é dentista, solteiro e mulherengo, e para assim se manter dizia às suas conquistas que era casado e pai de três filhos. Até ao dia em que encontra Toni, uma miúda com idade para ser sua filha, por quem se apaixona a sério. Depois é o costume, mas ao contrário. Julian tem de arranjar uma mulher para mostrar a Toni e assim convencê-la de que é realmente casado e pai de filhos e de que a sua mulher está disposta e até interessada no divórcio. Quem ele vai recrutar é a sua fiel assistente de clínica, a enfermeira Stephanie que, por sua vez, está apaixonada pelo seu dentista. Estão a ver o resto? Qui pro quos para dar e vender, até à solução final. Comédia para dispor bem, mas não mais do que isso. 
Mas em 2010, surgiu uma nova adaptação para cinema, “Just Go With It” assim se chama agora, com realização de Dennis Dugan e interpretação de Adam Sandler, Jennifer Aniston e Brooklyn Decker. O resultado é triste, das piores coisinhas vistas ultimamente. O esforço dos argumentistas que adaptaram a comédia original foi no sentido de polvilharem o todo com muitas imagens vistosas de belas mulheres e entrecortá-las com diálogos grosseiros e graças escatológicas, num primarismo de cortar a respiração e tirar a pica a qualquer espectador que não seja atrasado mental. O dentista passou a cirurgião plástico (claro, para se poderem ver e se falar de mamas e outros apêndices femininos e masculinos), e o resto, que tem escala no Hawai, ajusta-se às premissas.    
Lembro-me de ter visto, no Monumental, em 1967, o original de Barillet & Grédy numa versão de Jerónimo de Bragança, encenada por Manuel Santos Carvalho, com Laura Alves na protagonista, ao lado de Paulo Renato, Carlos José Teixeira, Alina Vaz, Rui Mendes, Ângela Ribeiro, Alexandre Vieira e Alda Pinto. Os cenários eram de Pinto de Campos e do espectáculo guardo boa memória, sem que todavia a peça me tenha convencido por aí além. 
É essa mesma “Flor do Cacto” (a original) que agora Filipe La Féria recupera para o seu Politeama. Pode dizer-se que a peça continua a não deslumbrar, é uma comédia de verão, produzida em “low cost”, como o próprio encenador confessa, com uma divertida adaptação a Portugal, diálogos, personagens e situações, sem desfigurar a estrutura original. Os diálogos mantêm a graça, as figuras, caricaturais, nalguns casos, são interessantes pelos “bonecos” estereotipados que desenham, e o todo é vistoso, como manda a estética de La Féria. Mas estamos longe do melhor que o conhecido encenador já nos deu. Do elenco, que não deslumbra, dado que não tem personagens para impor, mas silhuetas, fazem parte Rita Ribeiro, Carlos Quintas, Nuno Guerreiro, e ainda os que melhor se adaptaram a esta estética de quase “cartoon”, Vítor Espadinha, Helena Rocha, Hugo Rendas, Patrícia Resende e Bruna Andrade. 


terça-feira, novembro 23, 2010

TEATRO NO POLITEAMA

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SÍTIO DO PICAPAU AMARELO
“Sítio do Picapau Amarelo” é uma criação literária de um escritor brasileiro, que deixou obra entre finais do século XIX e a primeira metade do seguinte: José Bento Renato Monteiro Lobato (nascido em Taubaté, a 18 de Abril de 1882, faleceu em São Paulo, a 4 de Julho de 1948, no Brasil), mais conhecido simplesmente por Monteiro Lobato. Tradutor prestigiado, escritor de romances (“O Presidente Negro”), crónicas, artigos, e até de um ensaio sobre o petróleo, acabaria por ser celebrizado pela sua vasta contribuição no campo da literatura infantil, onde sobressai precisamente “O Picapau Amarelo” (1939), além de outras como “Reinações de Narizinho” (1931) ou “Caçadas de Pedrinho” (1933) etc. O primeiro livro da série foi publicado em Dezembro de 1920, criando desde logo um grupo de personagens que ficaria na memória de quem os lia e impondo um clima de magia contagiante, que por vezes roçava o surrealismo.



As personagens principais moravam, ou passavam grande parte do seu tempo, no “sítio” (que no Brasil quer dizer a quinta, a casa) que pertencia a Dona Benta, baptizado com o nome de “Picapau Amarelo”, donde o título da série. As aventuras passavam-se, pois, em redor desse “Sítio do PicaPau Amarelo”, onde vive Dona Benta com a sua neta, Narizinho, uma menina de nariz empertigado que adora a sua boneca de trapos, Emília. Um dia, por artes de berliques e berloques, mais pós de perlimpimpim, esta começa a falar e ganha vida! Existem ainda muitas outras personagens, como Pedrinho, um menino, primo de Narizinho, que mora na cidade, o Marquês de Rabicó, o Conselheiro, Quindim, o Visconde de Sabugosa, a Tia Nastácia, que cozinha deliciosas guloseimas, o Tio Barnabé, a velhaca Cuca, e o diabinho Saci, etc.

O principal inspirador de Monteiro Lobato foi outro conhecido escritor brasileiro de literatura infantil, Figueiredo Pimentel (autor do também muito popular "Contos da Carochinha").

O sucesso desta série de livros infantis cedo interessou a televisão. A primeira adaptação foi exibida a partir de 3 de Junho de 1952 até 1962, na TV Tupi, 360 episódios gravados ao vivo, no programa “Teatro Escola de São Paulo”, criado por Júlio Gouveia e Tatiana Belinky. A história escolhida para inaugurar o programa foi “A Pílula Falante”, um dos capítulos do livro “Reinações de Narizinho”. O programa durou dez anos e foi um grande sucesso do canal. Com episódios de 45 minutos cada, começava cada um deles com o actor Júlio Gouveia a abrir um livro para contar uma história e terminava com o intérprete dando por completa a leitura e fechando o livro. No elenco, Lúcia Lambertini era Emília, António Silvio Lefèvre e depois David José foram Pedrinho, Lidia Rozenberg e depois Edy Cerri interpretavam a Narizinho, Rubens Molino foi o Visconde de Sabugosa, Sydneia Rossi a Dona Benta e Benedita Rodrigues a Tia Nastácia. Em Setembro de 1957, a série estreou na TV Tupi do Rio de Janeiro e passou a ser dirigida por Mauricio Sherman. Lúcia Lambertini continuou a ser Emília. O elenco: André José Adler (Pedrinho), Leny Vieira (Narizinho), Iná Malaguti (Dona Benta), Zeni Pereira (Tia Nastácia), Elísio de Albuquerque (Visconde) e Daniel Filho (Dr. Caramujo).

Em 1964, a actriz e directora Lúcia Lambertini mudou-se com a série para a TV Cultura de São Paulo. Manteve-se no ar durante seis meses, sem repetir o sucesso alcançado na TV Tupi. Os mesmos actores da versão da TV Tupi continuaram a “ser” Emília, Narizinho e Pedrinho. O Visconde era interpretado por Roberto Orosco, Dona Benta por Leonor Pacheco e Tia Nastácia por Isaura Bruno.

A gesta televisiva continuou: em 12 de Dezembro de 1967, Júlio Gouveia e Tatiana Belinky ressuscitaram o “Sítio” na TV, num novo canal, a TV Bandeirantes. A série tinha agora cenários naturais de um “sítio” autêntico e abria com um tema musical da autoria de Salatiel Coelho. Em vez de ser emitida em directo, ao vivo, passou a ser gravada e depois reproduzida, dando maior segurança e conforto aos actores. Cada episódio tinha 30 minutos e a série permaneceu no ar por dois anos, até 1969. Os actores começaram a ser substituídos por outros, Zodja Pereira assumiu o papel de Emília, Silvinha Lanes foi a Narizinho e Ewerton de Castro o Visconde de Sabugosa.
A versão mais conhecida e exportada para o mundo todo, foi a da TV Globo, iniciada 7 de Março de 1977 e prolongada até 31 de Janeiro de 1986. Foi vista e revista em Portugal e deixou boa recordação. A banda sonora era da responsabilidade de Dori Caymmi e formada por temas essencialmente brasileiros, inspirando-se na mitologia e no folclore locais. Destacava-se igualmente o tema de abertura composto por Gilberto Gil, "Sítio do Picapau Amarelo".
A TV Globo criou um estúdio especial para a gravação do programa, na Barra de Guaratiba, onde existia um “sítio”, com casa, curral e jardins de Burle Marx, onde eram gravados os exteriores e muitas cenas de interiores (sala e cozinha da casa de Dona Benta, por exemplo). As outras gravações (biblioteca, quartos, gruta da Cuca, Reino das Águas Claras etc.) eram gravadas nos estúdios da Cinédia. Nesta versão, as personagens criaram grande empatia com o seu público-alvo, mercê da qualidade do seu elenco: Zilka Salaberry (Dona Benta), Dirce Migliaccio (Emília), Jacyra Sampaio (Tia Nastácia), Rosana Garcia (Narizinho), Júlio César Vieira (Pedrinho), André Valli (Visconde de Sabugosa), Samuel Santos (Tio Barnabé), Dorinha Duval (Cuca), Romeu Evaristo (Saci), Ary Coslov (Jabuti), Germano Filho (Elias Turco), Jaime Barcellos (Coronel Teodorico), Tonico Pereira (Zé Carneiro), Canarinho (Malazarte ou Garnizé) entre outros. (1)

Esta foi a versão de maior sucesso, muito embora outra surgisse em 2001, depois da rede Golbo ter assinado um novo contrato com os herdeiros de Monteiro Lobato, para produzir um novo conjunto de episódios que teria a duração de dez anos. Começou a ir para o ar no dia 12 de Outubro de 2001, na TV Globinho, mas rapidamente passou para a programação da Globo. A primeira temporada durou até final do ano de 2002, adaptando as histórias de Monteiro Lobato, mas depois começaram a ser criadas novas aventuras idealizadas especialmente para a televisão, mantendo o espírito de Monteiro Lobato.

Nesta versão, a boneca Emília foi interpretada por uma criança, a actriz Isabelle Drummond. Acrescente-se que esta foi a primeira vez que tal aconteceu na televisão, mas não a primeira vez que Emília foi interpretada por uma "actriz criança", pois anteriormente, numa adaptação para cinema, datada de 1951, e realizada por Rodolfo Nanni, também fora uma menina chamada Olga Maria quem interpretara o papel de Emília, num filme ainda a preto e branco, intitulado “O Saci”, baseada no livro "O Saci" de Monteiro Lobato. Com estas excepções, a boneca Emília fora sempre interpretada por actrizes adultas.

Curiosidades a ter em conta: o efeito mágico do "Pó de Perlimpimpim", na versão de 1977, tinha sido transformado numa "palavra mágica" para evitar comparações com a cocaína. Os moradores do “Sítio” apenas podiam gritar: "Perlim Pim Pim" para viajarem no espaço. Nos livros de Monteiro Lobato, o Pó de Perlimpimpim era aspirado pelo nariz pelas personagens, enquanto na versão de 2001, passou a ser lançado sobre as cabeças dos personagens, numa alteração que o aparentou com o "Pó Mágico" da Sininho, na história "Peter Pan" de J.M. Barrie. Outra questão que criara problemas com a censura nos anos 70, era o facto da Emília alterar ou pronunciar erradamente algumas palavras, como "Bissurdo", "Arimética", ou "Obóvio". No século XXI isso passou a ser permitido.

Mas a história do “Sítio” na televisão não ficaria por aqui. Em 2009, o canal Futura resolveu voltar a transmitir a versão de 2001, e exibiu um “especial de Natal”, em Dezembro. Já em 2010, o canal Viva tem apresentado episódios do “Sítio” de manhã e à tarde.

É também em Novembro de 2010 que o “Sítio do Picapau Amarelo” chega aos palcos portugueses, pela mão de Filipe La Féria, que assina a encenação, os cenários e figurinos, e ainda a adaptação e condensação numa única acção de várias histórias de Monteiro Lobato, no que contou com a colaboração de Helena Rocha.

A história não se conta, vive da surpresa e da invenção das personagens que elegem a imaginação como o seu mundo preferido. Dona Benta é como sempre uma velha senhora que vive no seu “Sítio do Picapau Amarelo”, com a sua cozinheira negra, Tia Nastácia, que delicia os habitantes da casa com os seus pitéus, e a sua neta, Lúcia, mais conhecida como Narizinho Empinado. A “Narizinho” é uma miúda solitária, que resolve a questão da companhia criando um mundo muito seu, de fantasia e espanto. A sua boneca de trapos, Emília, “cozinhada” pela Tia Nastácia (que também irá inventar o Visconde Sabugosa, a partir de uma espiga de milho), é a sua principal companheira de folguedos. O Tio Barnabé, que trata da quinta, Pedrinho, o primo da cidade, o sentencioso Visconde de Milho, Saci Pereré, o diabo de uma perna só, retirado do folclore brasileiro, a famigerada Cuca, uma bruxa que inferniza quem a rodeia, a sereia Iara, e ainda caranguejos, sapos, sardinhas, tartarugas e demais companheiros de quadros escoltam as figuras centrais e dão consistência à história que vive sobretudo do seu elogio à imaginação e à magia de existir e de saber retirar da vida o seu melhor.

Com um elenco muito correcto e afinado (isto é: delirante!), de que fazem parte Cátia Garcia, Sissi Martins, Ruben Madureira, André Lacerda, Bruna Andrade, Filipe Albuquerque, Cláudia Soares, Carla Janeiro, Rosa Areia e Tiago Isidro, Filipe La Féria constrói um espectáculo ao seu jeito, repleto de luz e cor, um ritmo vivaz, uma alegria transbordante e uma moralidade irrepreensível para estes dias cinzentos que se atravessam.

Falando ainda dos actores, justo será realçar o trabalho de Cátia Garcia, nesta altura certamente a princesa dos espectáculos infantis, depois de ter sido protagonista de “A Estrela”, “Alice no País das Maravilhas” e “O Feiticeiro de Oz”, sempre com redobrado talento e entrega, e que aqui brilha na boneca de trapos. Cátia Garcia, pela sua silhueta e pela delicadeza que empresta às personagens, ajusta-se muito bem a este tipo de papel, ainda que já tenha assumido outros de cariz diverso, como em “West Side Story”. Outras duas referências justas vão para Sissi Martins, a Narizinho, também muito bem, e para a truculenta Bruna Andrade que nos oferece uma deliciosa Cuca.

A inspirada partitura musical, com alguns temas de Gilberto Gil e Caetano Veloso, foi recreada por Mário Rui, deixando entrever influências muito certeiras de diversos musicais inesquecíveis. A coreografia de Inna Lisniak, os adereços de Miguel Quina, a iluminação de João Fontes e a sonoplastia de Ricardo Ceitil ajudam à festa, que teve como assistente de encenação Frederico Corado. O “Sítio do Picapau Amarelo” fica assim como um espectáculo a não perder, quer para quem já conhecia a onda quer para quem se vai recrear com ela pela primeira vez. Uma boa e sadia onda de bem disposta magia.  

(1) Este elenco manteve-se durante um ano, mas depois foi sofrendo algumas alterações: Reny de Oliveira substituiu Dirce Migliaccio em Janeiro de 1978 e ficou até Dezembro de 1982. Ainda em 1978, a actriz Stela Freitas passou a interpretar a Cuca e Francisco Nagen o de Elias Turco. Em 1980, Rosana Garcia e Júlio César também abandonaram o programa, pois deixaram de ser crianças e transitaram para o clã dos adultos. Foram substituídos por Daniele Rodrigues (que passou a chamar-se Daniela) e Marcelo Patelli (na série Marcelo José). Por essa altura também Cuca mudou de actriz: Catarina Abdalla foi Cuca de 1981 até o final do programa. Muitos outros actores passaram pelo “Sítio”, em papéis de convidados, para participações fortuitas, como Gabriela Alves (Anjinho da Asa Quebrada), Zezé Macedo (Dona Carochinha), Dário Reis (Capitão Gancho), Mírian Rios (Branca de Neve), Mário Cardoso (Príncipe da Branca de Neve, 1978, Rapunzel, 1981, a Fera, de A Bela e a Fera, 1982), Lúcia Alves (Ariadne), Gracindo Júnior (Teseu), Lucinha Lins (Rapunzel), Bia Lessa (Cuquinha, Dona Benta, transformada em adolescente, e Ordélia), Maitê Proença (Bela), Cláudio Correia e Castro (Gepeto), Daniel Filho (Tom Mix), Cininha de Paula (tia da Bela Adormecida e Morfélia, irmã da Ordélia) ou José de Abreu (Barba Azul).

sexta-feira, julho 24, 2009

TEATRO: PIAF

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ÉDITH PIAF
Édith Piaf é indiscutivelmente um caso. Não se trata tanto de alguém com existência certa e segura, mas de um mito. Acontece àqueles que “por obras valorosas se vão da lei da morte libertando.” Uns mais do que outros. Na música, na canção, Sinatra, Presley, Amália, Callas, Caruso, Piaf são alguns exemplos a que se juntou agora Michael Jackson. A sua vida é uma, a auréola de que gozam é outra. São nomes que ficam, vozes que não se esquecem, presenças que permanecem para lá da grande ausência. Nada apaga a sua glória, os mais velhos continuam a ouvi-los, os mais novos começam a escutá-los e a amá-los. Edith Piaf continua a vender. No mundo inteiro. Quando se fala da canção francesa podem vir à memória dez ou vinte nomes, mas sobressai uma rainha, Piaf. A sua vida ajudou a construir o mito, mas não há mito que sobreviva sem algo mais, essa migalha de génio que divide os homens entre uns e outros, uma divisão que ninguém contesta, porque “uns” milhões precisam tanto de “outros” tão poucos de eleitos para sobreviver, que todos acatam a diferença e a desejam.
Édith Piaf (Édith Giovanna Gassion) nasceu a 19 de Dezembro de 1915, em Paris. Existe uma placa no nº 72 da rua de Belleville, no 20º bairro, que assinala o facto. Mas na certidão de nascimento está marcado que nasceu no nº 4 da rua da Chine, onde ficava o hospital Tenon. Parece que teve uma vida conturbada, tumultuosa, infância infeliz, adolescência nas ruas de Paris, sobrevivendo pela venda do corpo, enquanto cantava e bebia desbragadamente.
Os pais eram pobres, mas ambos ligados ao espectáculo de rua. O pai, Louis Alphonse Gassion, artista de circo, contorcionista (10. V.1881 – 3.III. 1944), a mãe, Annetta Maillard (4 .VIII.1895-6.II.1945), com o nome de artista Line Marsa, cantora, nascida em Itália. Julga-se que o nome de Edith foi escolhido como homenagem a uma enfermeira inglesa, Edith Cavell, que morreu como heroína, durante a I Guerra Mundial, fuzilada pelos alemães. Rapidamente entregue aos (raros) cuidados da avó materna, Emma Saïd Ben Mohammed, de ascendência marroquina, Édith bebia vinho tinto pelo biberão (segundo a lenda), até que o pai a resgata e a entrega aos cuidados da avó paterna, dona de uma casa de prostituição, em Bernay, na Normandia. Consta que pelos 7 ou 8 anos, cegou momentaneamente em virtude de uma doença. Segundo as biografias, curou-se porque as prostitutas da casa em que vivia a levaram a rezar junto do túmulo de Santa Teresa de Lisieux (conhecida como “Santa Teresinha”), donde resultou uma devoção profunda de Piaf para com Santa Teresinha. Junta-se então ao pai, a partir de 1922, numa miserável tournée de saltimbancos, onde começa a dar nas vistas com a sua voz e uma forma muito especial de interpretar temas populares. Aos 15 anos (1930), deixa a companhia do pai e junta-se a Simone Berteaut (a "Mômone"), com quem faz um duo, que vai sobreviver nas ruas de Paris (Quartier Pigalle, Ménilmontant e subúrbios de Paris). Vivam ambas num quarto no Grand Hôtel de Clermont (na Rua Veron, 18 de Paris). A 11 de Fevereiro de 1933, com 17 anos, tem uma filha, Marcelle, resultado de uma ligação com Louis Dupont, que tratou da criança até esta morrer, dois anos depois, vítima de meningite. Um proxeneta de nome Albert foi o seu próximo “companheiro”, que também “tomava conta” de Nadia, outra prostituta que entretanto se suicidou.

“Descoberta”, em 1935, por Louis Leplée, proprietário do cabaré “Le Gerny's”, situado na avenida Champs Élysées, em Paris. Foi Leplée quem a iniciou na vida artística, lhe começou a domar a voz, e a orientá-la no palco, foi ele quem a vestiu de preto e a baptizou como "la Môme Piaf", uma expressão francesa que significa "pequeno pardal" ou "pardalzinho", pois ela era de pequena estatura. Na sua estreia no “Le Gerny's”, contou com a presença de algumas celebridades, como por exemplo o actor-cantor Maurice Chevalier. Foi no “Le Gerby's” que Piaf conheceu o compositor Raymond Asso e a compositora Marguerite Monnot, que se tornou sua parceira e grande amiga ao longo de toda a vida. São de Marguerite composições como "Mon légionnaire", "Hymne à l'amour", "Milord" e "Les Amants d'un Jour".
Em 1936, Piaf assina contrato com a Polydor e lança o primeiro disco, "Les Mômes de la Cloche", que se torna sucesso imediato. A desdita de Piaf não pára. A 6 de Abril desse ano, Leplée é assassinado em casa e Piaf é acusada de cúmplice. Ilibada, nunca deixaria de ver pesar sobre a sua cabeça alguma responsabilidade sobre esse assassinato, dado que os carrascos de Leplée eram conhecidos de Piaf. Relança a carreira com Raymond Asso, com quem também se envolve emocionalmente. É este quem lhe muda o nome artístico de "La Môme Piaf" para "Édith Piaf" e quem encomenda a Marguerite Monnot canções que focassem sobretudo o passado de Piaf nas ruas. Raymond obriga Piaf trabalhar arduamente para se tornar uma cantora profissional de Music Hall.
Entre 1936 e 1937, Piaf apresentou-se no “Bobino”, em Montparnasse. Em Março de 1937, estreia-se no “ABC”, onde se torna rapidamente uma “diva” canção francesa, amada pelo público e difundida pela rádio. Em 1940 estreia-se no teatro, numa peça de Jean Cocteau, “Le Bel Indifférent”, escrita propositadamente para ela, onde contracenava com Paul Meurisse, seu companheiro na altura. É ainda ao lado do excelente actor Paul Meurisse, que ela aparece pela primeira vez no cinema, em 1941, no filme “Montmartre-sur-Seine”, de Georges Lacombe.
Durante a ocupação alemã em França, Piaf continua a dar que falar. Sobrevive com shows, mas é acusada de colaboracionista com as forças ocupantes. Finda a guerra, declara que trabalhou para a resistência francesa. É em 1944 que Piaf conhece o jovem Yves Montand, inexperiente cantor que torna seu amante e que ajuda a lançar no “Olympya”. No ano seguinte, Piaf escreve uma de suas primeiras canções, "La Vie en rose", que se tornará num dos seus hinos e um clássico da canção francesa. Em 1946, Montand estreia-se no cinema ao lado de Piaf, em “Étoile sans Lumière”, mas o romance entre ambos acaba. Foi Piaf que um dia disse: “Até agora os homens compraram-me, a partir de agora sou eu quem os compra.” Consta que a sua vida afectiva nunca foi muito empolgante, apesar da sua vida sexual ser imparável. Sucederam-se os amantes, muitos dos quais subiram na vida à custa do seu relacionamento com Piaf.
Em 1947, lança-se nos Estados Unidos. Em 1948, nos EUA, conhece o que se julga ter sido o grande amor da sua vida, Marcel Cerdan, francês nascido na Argélia, casado, campeão mundial de boxe. Mas, em 28 de Outubro de 1949, Marcel voa de Paris para Nova Iorque e morre num terrível acidente. Piaf sofre, e sofre igualmente de uma poliartrite aguda, que a leva à morfina. "Hymne à l'amour" e "Mon Dieu" são canções que Édith canta em memória de Cerdan. O seu grande amor pouco durou.
Em 1951 será a vez do jovem cantor Charles Aznavour, que se converte em seu secretário, assistente, motorista, confidente... Piaf volta a ajudá-lo como ajudou outros antes. Em Setembro de 1952 casa-se com um outro cantor francês, Jacques Pills, do qual se divorcia em 1956. O êxito nos EUA é finalmente total, rotundo. A popularidade leva-a a apresentar-se oito vezes no “Ed Sullivan Show” e esgota duas vezes o “Carnegie Hall”, em 1956 e 1957.
Inicia então um envolvimento com Georges Moustaki, a quem ajuda no seu lançamento como cantor. Ao seu lado sofreu um grave acidente automobilístico, em 1958, e piora o estado de saúde e sua dependência da morfina. Moustaki é o autor de um novo sucesso de Piaf, "Millord". Em 1962, com a saúde numa lástima, Piaf casa-se com Théo Sarapo (Theophanis Lamboukas), um cabeleireiro grego que vira cantor e actor, e é 20 anos mais novo do que ela.
Morreu a 10 de Outubro de 1963, com 47 anos, em Plascassier, em Grasse, nos Alpes-Marítimos (no mesmo dia em que faleceu seu amigo Jean Cocteau). O corpo foi transportado para Paris, clandestina e ilegalmente. A morte só foi anunciada oficialmente no dia seguinte e Édith ficou enterrada com honras nacionais no cemitério do Père-Lachaise (talhão 97). O seu enterro foi acompanhado por uma multidão consternada. Mas o mito Piaf apenas começava a criar-se. O seu túmulo é presentemente um dos mais procurados por turistas de todo o mundo. É a partir da vida de Édith Piaf que a dramaturga inglesa Pam Gems escreve o musical “Piaf”, o novo espectáculo estreado em Lisboa por Filipe La Féria, depois de ter passado em Angra do Heroísmo (8 de Maio) e Porto (de 28 de Maio a 9 de Julho), com Wanda Stuart e Sónia Lisboa a alternarem na composição da figura de Édith Piaf.
Pam Gems é uma autora já conhecida do público português neste tipo de empreendimento. A sua peça sobre Marlene, já tinha sido estreada em Portugal, no Mundial, com Simone de Oliveira na protagonista. Não é autora que me fascine na forma como trabalha as biografias romanceadas das vedetas que procura homenagear. Trata-se de esqueletos pouco preenchidos de emoção e vida, muito concentrados numa cronologia que se alimenta de “fait divers” e por vezes não toca no essencial. Isso se sente em “Piaf”, onde todos os pormenores escabrosos da vida de Édith Piaf são apontados, mas pouco se percebe da essência da sua arte, se retirarmos as canções. O desenrolar dos episódios trágicos e sórdidos são de tal ordem que ficamos seriamente a pensar se a autora homenageia ou não a cantora. Claro que a verdade não é para escamotear, mas não acredito, não acho muito plausível o retrato que nos é dado da cantora. Por exemplo, Édith Piaf foi uma artista que muito fez por outros artistas, que os ajudou, que desbloqueou carreiras, que os colocou no meio artístico, que lutou por muitos deles. Na peça, os que aparecem, são os que ela devorou sexualmente, dando a ideia de que os ajudou só porque tinha interesse em mantê-los sob a sua alçada. Acontece que, segundo se lê nas suas biografias, Édith Piaf mantinha em sua casa uma verdadeira tertúlia que teve uma importância decisiva na revelação de uma grande geração de músicos e cantores do pós-guerra. Por ali passaram Gilbert Bécaud, Jacques Pills, Jacques Plante, Louis Amade, Charles Aznavour, Jean Broussolle, Yves Montand, Jacques Prévert, Francis Lemarque, entre tantos outros. Leia-se Marc Robine, na sua obra “Il était une fois la chanson française : Des Trouvères à nos Jours”.
Compreende-se por outro lado a dificuldade de traçar uma biografia, enquadrar dezenas de canções, e reunir tudo num espectáculo de menos de duas horas. Filipe La Féria com a sua mestria para o género, consegue impor um ritmo excelente ao espectáculo e criar cenas de grande brilhantismo cénico e visual. Logo desde início, quando a Piaf de fim de carreira cede o lugar à Piaf das ruas de Paris, com a troca de vestuário em palco, passando por várias outras cenas muito bem defendidas, com uma inventiva cénica de sublinhar. Depois o cenário, despojado, colunas vermelhas de sangue, rasgando um fundo negro, coaduna-se perfeitamente e cria um envolvimento certeiro. Há ainda, e finalmente, a arte de Piaf que resiste a (quase) tudo. As suas canções, o seu tom, o lirismo dramático que empresta a qualquer toada de amor, que assume logo os contornos trágicos de um amor louco, ou maldito, os temas que cheiram a Paris mal se começam a ouvir as primeiras notas, a sua voz rouca com passado vivido, tudo isso faz deste reportório algo de único, a que qualquer alma sensível não pode deixar de estar sujeito. Vi por duas vezes “Piaf”, uma no Porto, com Sónia Lisboa, outra em Lisboa, com Wanda Stuart. O palco mais intimista do Porto parecia favorecer o espectáculo, mas visto no Politeama, não perde nada e, paradoxalmente, ganha amplitude. Já o elenco masculino no Porto me parecia não estar à altura do elenco feminino, todo ele muito bom. Na verdade, por virtude do que atrás já dissemos, o original de Pam Gems apenas aponta figuras, em traços rápidos, por vezes caricaturais. É quase impossível um actor dar vida a um tal estereótipo. Mas o elenco de Lisboa (quase integralmente o do Porto, com um ou outro retoque, por exemplo Rui Andrade, que faz bastante bem, em Lisboa, a figura de Theo Sarapo) sai-se bem, não destoando do conjunto. E chegamos às actrizes: Paula Sá é uma surpreendente Marlene, conseguindo criar uma personagem em duas ou três aparições, Noémia Costa deve ter a melhor representação da sua carreira, compondo uma inesquecível Toine, e Sónia Lisboa e Wanda Stuart, em registos diversos, oferecem-nos duas Piafs que vale a pena ver (em dias consecutivos). Sónia Lisboa, que não conhecia, tem uma voz notável e dá-nos uma Piaf mais realista; Wanda Stuart, que conheço bem e admiro há anos, brinda-nos com uma perfomance quase expressionista, com a voz que todos conhecemos, e um gosto excessivo pelo gesto, pelo ritus facial, pela expressividade do corpo, como uma emanação da alma. Devo confessar que de início não aderi logo, mas depois aplaudi entusiasmado.
Muito público de meia-idade em ambos os espectáculos, mas muito público jovem igualmente. O que não deixa de ser saudável.