O REGRESSO DE “AMÁLIA” (1)
Foi em 2000 que escrevi este texto que agora aparece
de novo no programa do Teatro Politeama, numa altura em que Filipe La Fèria
repõe este enorme sucesso, com algumas novidades e um elenco ligeiramente
retocado (17 anos de diferença impõem algumas variantes. Há actrizes que
permanecem, mas em 1999 tinham 12 anos e eram Amália em miúda, agora são
mulheres de 29, obviamente num outro papel. Mas recordemos o que então escrevi, numa época
que que o meu filho Frederico dava os primeiros passos no teatro, e assinado
logo os vídeos desse belíssimo espectáculo que marcou o teatro musical em
Portugal).
“Eu sei, meu amor, que tu não chegaste a partir...”.
“Amália”, de Filipe La Féria, estreou na Madeira em
finais de Novembro de 1999. Tive a sorte de lá estar, de acompanhar momentos de
alguns dos derradeiros ensaios, e de assistir à estreia, gloriosa por aquelas
bandas. Acompanhei depois, passo a passo, ainda que de longe, a estrondosa
carreira deste musical que foi esgotando sucessivas lotações quase até à noite
de Natal, altura em que o La Féria achou por bem devolver o Frederico à
procedência, cansado mas feliz pela experiência que vivera.
Fala-se em boca de cena nos teatros. Amália Rodrigues
era a boca do Fado e foi durante anos a boca por onde Portugal cantou. No
Funchal, na sala do Casino Park, “Amália” começou por rasgar uma boca na boca
de cena do teatro, estendendo por três mega écrans o grito nostálgico da Diva.
Três écrans por onde foram passando a imagem única e as imagens múltiplas de
Amália e do Fado Português do último século. Para o bem e para o Mal, para a
consagração e para a polémica, Amália esteve ligada à História de Portugal
deste final de milénio. Ela foi a Voz, ela deu consistência à música, ela
conviveu com poetas, escritores, artistas, ela atravessou os salões do poder,
ela foi política, negando que o fosse, foi a imagem de Portugal passeando pelos
palcos mundiais, ela foi a nossa Glória e a nossa Tristeza, o nosso Portugal
dos Pequeninos e o nosso verdadeiro Quinto Império
Enquanto no palco, um elenco de muito bom nível,
ritmado pela cadência galopante de La Féria, escrevia a história de Amália
Rodrigues, desde a sua humilde infância até à consagração nacional, percorrendo
um itinerário de sucesso que se foi cruzando com a dor, como é destino dos
imortais, nos três écrans vão surgindo frases, fotos, desenhos, pinturas,
excertos de filmes ou vídeos que colocam Amália no seu tempo e o tempo de
Amália nos nossos olhos. Nascida com a 1ª República, cresceu com (e para) o
Estado Novo, foi condecorada por Marcelo Caetano, acusada de “colaboracionista”
e perseguida em 74, condecorada por Mário Soares, levada em triunfo pelos seus
50 anos de carreira, e desceu à terra acompanhada por milhões de portugueses
que a choram em Cerimónia Nacional. O filme dessa história pessoal é o filme da
nossa história colectiva e passa por detrás dos actores que cantam o melhor de
Amália, nas inspiradas melodias de Frederico Valério, Carlos Santos Gonçalves,
José Fontes Rocha, Alain Oulman e tantos outros.
E falando de filmes, deve dizer-se que Amália no
cinema também está documentada através de dois momentos importantes, “Capas
Negras”, de Armando Miranda, onde aparece ao lado de Alberto Ribeiro, e “Fado,
História de uma Cantadeira”, de Perdigão Queiroga, contracenando com Virgílio
Teixeira. Mas a contribuição da fadista no cinema nacional ficou ainda marcada
por “Fado Corrido”, de Jorge Brum do Canto, e “Ilhas Encantadas”, de Carlos
Villardebó. Em todos se confirma um pressentimento: Amália poderia ter sido uma
grande actriz, se bem dirigida, e esta certeza leva-nos a lamentar o diminuto
número de obras onde ela aparece. Mas também no cinema, Amália deixa uma presença
forte.
Os murais de Almada, o casario de Botelho, o pitoresco
boémio de Stuart, as cores puras de Mário Eloy, a filigrana policroma de Vieira
da Silva, a intimidade fechada de Maluda, o fado de Malhoa, a solitária emoção
de Lauro Corado cruzam-se com o preto e branco das fotos, com o grafismo dos
cartazes e anúncios marcando a passagem da cantora pelo Retiro da Severa, pelo
Parque Mayer, pelo Olympia de Paris, por Nova Iorque, Tóquio ou Rio de Janeiro,
pelo mundo. Por momentos, a imagem são os olhos de Amália, onde nos revemos.
Olhos nos olhos, quem foste tu, Amália, quem somos nós, portugueses? Fado do
mesmo fado, angústia da mesma angústia, pecado do mesmo pecado, paixão que nos
consome, com a grandeza das coisas pequenas e íntimas.
O segredo deste musical que Filipe La Féria concebeu e
encenou com brilhantismo, e que marca talvez um dos pontos mais altos da sua
carreira, está na unidade conseguida, na coerência da proposta, na conjugação
de todos os elementos em redor de uma figura, e na força poderosa e
avassaladora desta evocação. Uma personagem que são vários rostos: agora,
Alexandra, Liana, Patrícia Resende ou Marline Costa, em Lisboa. O mesmo
princípio do caleidoscópio que, através da diversidade, restitui a unidade. Um
puzzle que se organiza à nossa frente, convidando à intervenção do espectador.
Um mosaico no empedrado das ruas de Lisboa que nos traz ecos de uma mulher
singular. Afinal, o Fado cumpre-se. “Eu sei, Meu Amor, que tu não chegaste a
partir...” Os imortais, não partem. Viajam e regressam continuamente. Como
Amália Rodrigues, que agora vemos comovidamente em “Amália”. ( Lauro António, 2000).
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