sábado, fevereiro 18, 2017

"AMÁLIA", O REGRESSO (1)



O REGRESSO DE “AMÁLIA” (1)
Foi em 2000 que escrevi este texto que agora aparece de novo no programa do Teatro Politeama, numa altura em que Filipe La Fèria repõe este enorme sucesso, com algumas novidades e um elenco ligeiramente retocado (17 anos de diferença impõem algumas variantes. Há actrizes que permanecem, mas em 1999 tinham 12 anos e eram Amália em miúda, agora são mulheres de 29, obviamente num outro papel.  Mas recordemos o que então escrevi, numa época que que o meu filho Frederico dava os primeiros passos no teatro, e assinado logo os vídeos desse belíssimo espectáculo que marcou o teatro musical em Portugal). 


“Eu sei, meu amor, que tu não chegaste a partir...”.

“Amália”, de Filipe La Féria, estreou na Madeira em finais de Novembro de 1999. Tive a sorte de lá estar, de acompanhar momentos de alguns dos derradeiros ensaios, e de assistir à estreia, gloriosa por aquelas bandas. Acompanhei depois, passo a passo, ainda que de longe, a estrondosa carreira deste musical que foi esgotando sucessivas lotações quase até à noite de Natal, altura em que o La Féria achou por bem devolver o Frederico à procedência, cansado mas feliz pela experiência que vivera.
Fala-se em boca de cena nos teatros. Amália Rodrigues era a boca do Fado e foi durante anos a boca por onde Portugal cantou. No Funchal, na sala do Casino Park, “Amália” começou por rasgar uma boca na boca de cena do teatro, estendendo por três mega écrans o grito nostálgico da Diva. Três écrans por onde foram passando a imagem única e as imagens múltiplas de Amália e do Fado Português do último século. Para o bem e para o Mal, para a consagração e para a polémica, Amália esteve ligada à História de Portugal deste final de milénio. Ela foi a Voz, ela deu consistência à música, ela conviveu com poetas, escritores, artistas, ela atravessou os salões do poder, ela foi política, negando que o fosse, foi a imagem de Portugal passeando pelos palcos mundiais, ela foi a nossa Glória e a nossa Tristeza, o nosso Portugal dos Pequeninos e o nosso verdadeiro Quinto Império
Enquanto no palco, um elenco de muito bom nível, ritmado pela cadência galopante de La Féria, escrevia a história de Amália Rodrigues, desde a sua humilde infância até à consagração nacional, percorrendo um itinerário de sucesso que se foi cruzando com a dor, como é destino dos imortais, nos três écrans vão surgindo frases, fotos, desenhos, pinturas, excertos de filmes ou vídeos que colocam Amália no seu tempo e o tempo de Amália nos nossos olhos. Nascida com a 1ª República, cresceu com (e para) o Estado Novo, foi condecorada por Marcelo Caetano, acusada de “colaboracionista” e perseguida em 74, condecorada por Mário Soares, levada em triunfo pelos seus 50 anos de carreira, e desceu à terra acompanhada por milhões de portugueses que a choram em Cerimónia Nacional. O filme dessa história pessoal é o filme da nossa história colectiva e passa por detrás dos actores que cantam o melhor de Amália, nas inspiradas melodias de Frederico Valério, Carlos Santos Gonçalves, José Fontes Rocha, Alain Oulman e tantos outros.
E falando de filmes, deve dizer-se que Amália no cinema também está documentada através de dois momentos importantes, “Capas Negras”, de Armando Miranda, onde aparece ao lado de Alberto Ribeiro, e “Fado, História de uma Cantadeira”, de Perdigão Queiroga, contracenando com Virgílio Teixeira. Mas a contribuição da fadista no cinema nacional ficou ainda marcada por “Fado Corrido”, de Jorge Brum do Canto, e “Ilhas Encantadas”, de Carlos Villardebó. Em todos se confirma um pressentimento: Amália poderia ter sido uma grande actriz, se bem dirigida, e esta certeza leva-nos a lamentar o diminuto número de obras onde ela aparece. Mas também no cinema, Amália deixa uma presença forte.
Os murais de Almada, o casario de Botelho, o pitoresco boémio de Stuart, as cores puras de Mário Eloy, a filigrana policroma de Vieira da Silva, a intimidade fechada de Maluda, o fado de Malhoa, a solitária emoção de Lauro Corado cruzam-se com o preto e branco das fotos, com o grafismo dos cartazes e anúncios marcando a passagem da cantora pelo Retiro da Severa, pelo Parque Mayer, pelo Olympia de Paris, por Nova Iorque, Tóquio ou Rio de Janeiro, pelo mundo. Por momentos, a imagem são os olhos de Amália, onde nos revemos. Olhos nos olhos, quem foste tu, Amália, quem somos nós, portugueses? Fado do mesmo fado, angústia da mesma angústia, pecado do mesmo pecado, paixão que nos consome, com a grandeza das coisas pequenas e íntimas.
O segredo deste musical que Filipe La Féria concebeu e encenou com brilhantismo, e que marca talvez um dos pontos mais altos da sua carreira, está na unidade conseguida, na coerência da proposta, na conjugação de todos os elementos em redor de uma figura, e na força poderosa e avassaladora desta evocação. Uma personagem que são vários rostos: agora, Alexandra, Liana, Patrícia Resende ou Marline Costa, em Lisboa. O mesmo princípio do caleidoscópio que, através da diversidade, restitui a unidade. Um puzzle que se organiza à nossa frente, convidando à intervenção do espectador. Um mosaico no empedrado das ruas de Lisboa que nos traz ecos de uma mulher singular. Afinal, o Fado cumpre-se. “Eu sei, Meu Amor, que tu não chegaste a partir...” Os imortais, não partem. Viajam e regressam continuamente. Como Amália Rodrigues, que agora vemos comovidamente em “Amália”. (Lauro António, 2000). 

                                                                                                              

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