UMA NOITE EM CASA DE AMÁLIA
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Em 1968, por iniciativa de David Mourão Ferreira, a
Valentim de Carvalho gravou uma noite histórica em casa de Amália, que reuniu,
além da cantora, Vinicius de Moraes, Natália Correia, Ary dos Santos, Maluda,
Alain Oulman e o próprio David Mourão Ferreira. Vinicius ia partir para Roma e
depois o Brasil, Oulman ia exilar-se em Paris, e esses eram os pretextos para
uma noite poética e musical, como tantas outras, mas esta registada em banda
sonora para futura reprodução.
Filipe La Féria agarra neste acontecimento e
resolve conceber um espectáculo com base nele. Uma boa ideia, que resulta em
duas horas por onde perpassam mais de trinta canções, que vão do fado ao samba,
passando por temas espanhóis e franceses, incluindo o “Summertime”, evocados
pelas vozes de quase todos os intervenientes. E onde se recordam não só as
personalidades presentes nessa noite, como a época então vivida em Portugal, em
pleno marcelismo, com guerra, censura e polícia politica, perseguições e medo.
Pela reacção do público pagante (não o da estreia,
mas o de uma vulgar “soirée”) que saiu visivelmente satisfeito no final do
evento, tudo indica que La Féria acertou na “mouche”, o que bem precisa, pois a
situação do teatro em Portugal, nestes anos negros de penúria, é péssima, e a
disposição do cidadão não é melhor, e uma evocação de algumas glórias
nacionais, com muitas canções à mistura, sempre ajuda a levantar o moral.
Não existe o que se possa chamar uma história,
dramaticamente a estrutura é muito linear, o que conta é o encontro desses
escritores, poetas, músicos, pintores e cantores, e as conversas que entre eles
se estabelecem, e que permitem dar entrada a temas musicais. Mas julgo que
haveria alguns aspectos a melhorar no seu conjunto. Penso que o cenário é
demasiado vasto para criar o tipo de intimidade que a reunião requeria e julgo
que a iluminação, excessiva quase sempre, também impede essa cumplicidade. De
resto, o clima dramático sobe quando se encontram em cena apenas duas
personagens, caso de Oulman e Amália, ou de Amália e Maluda, mesmo quando surge
o militar que se apresta a partir para África e se vem despedir da sua quimérica
paixão e entregar-lhe um ramo de rosas vermelhas.
Quanto ao elenco, onde se nota algum desequilíbrio,
conta com uma boa presença de Vanessa Silva, na figura de Amália, o que para
ela, fisicamente tão distante do modelo, constituiu um enorme desafio, que
suporta com grande dignidade, quer a cantar, quer a recuperar alguns dos traços
e gestos da fadista. Marcos de Góis (Vinicius), Paula Fonseca (Natália),
Ricardo Castro (Ary), Hugo Rendas (Oulman), Nuno Guerreiro (David), Cláudia
Soares (Maluda), Rui Andrade (militar), Rosa Areia (Casimira) e Pedro Martinho
(Hugo Ribeiro) compõem o grupo de convidados, a empregada de Amália e o
engenheiro de som. Apetece-me destacar Hugo Rendas, contido e frágil, como se
impunha, e Rosa Areias e Pedro Martinho que, com curtas aparições, marcam as
cenas. Também Rui Andrade consegue um bom momento com a sua passagem por cena.
Já a escolha do brasileiro Marcos de Góis me parece a menos acertada para o
papel.
“Uma Noite em Casa de Amália” cozinhado com os
sabidos temperos de La Féria, apesar da crise geral, que também aqui se nota,
prepara-se, todavia, para ser um grande sucesso de público. Trata-se efectivamente
de um espectáculo popular, que não agride a inteligência nem a sensibilidade do
espectador, e que, para lá de recordar grandes sucessos musicais, nos relembra
parte da nossa história recente. O que faz pensar.
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