domingo, julho 08, 2012

AMÁLIA (1)


 UMA TARDE EM CASA DE AMÁLIA (1)
Foi entre 1985 e 1986 que filmei uma série de 16 documentários, para a RTP, a que dei o nome de “A Paródia” (em honra de Rafael Bordalo Pinheiro), e dedicados aos grandes nomes da comédia portuguesa doa anos 30 a 50 do século XX. A série tem passado, depois da sua estreia, com alguma regularidade em vários canais da RTP, 1 e 2, agora na RTP – Memória.
Para recordar muitos desses monstros sagrados da representação teatral e cinematográfica, entrevistei dezenas de colegas, amigos, companheiros de percurso, familiares. Sobre alguns deles, entrevistei Amália, precisamente na sua casa, na rua de São Bento, 193.
Fui eu que pessoalmente lhe telefonei a marcar uma entrevista, fui eu que me desloquei a casa dela para lhe explicar o propósito da entrevista e acertar pormenores. Calculava encontrar uma Amália desconfiada e furtiva. Fui recebido por uma das suas colaboradoras, que me conduziu ao longo de uma escadaria de pedra, ladeada por belos azulejos azuis, e me introduziu no salão onde eu sabia que, em muitas noites, Amália recebia os seus amigos em tertúlias animadas que se prolongavam até de madrugada.
Confesso que me sentia inquieto. Amália tinha fama de ser uma óptima companhia para amigos, mas estar perante a perspectiva eminente de me cruzar pela primeira vez com a diva que eu admirava desde miúdo me desorientava.
Amália surgiu daí a pouco, apertou-me a mão e atirou num ápice:
-Parece que você fez um filme muito bonito…
-Muito obrigado. A Amália viu?
-Disseram-me, e tenho confiança em quem me disse…
O desconforto foi ainda maior. Amália estava lindíssima. As suas palavras confundiam-me.
Continuou:
-Lembro-me de que escreveu sobre mim, num filme que interpretei, “As Ilhas Encantadas”, e parece que gostou de me ver… sem eu cantar…
-Gostei muito, sim, e escrevi realmente. Mas gosto muito de a ouvir.
-Então diga lá o que quer de mim?
E eu desbobinei ao que ia: que estava a fazer vários documentários sobre actores portugueses de comédia, António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho, Maria Matos, etc. e que gostava de recolher testemunhos de quem com eles tinha privado, o que era o caso de Amália, que até tinha contracenado com alguns, quer no teatro, quer no cinema.
Amália aceitou, combinámos datas e horas e no dia aprazado compareci com a minha pequena equipa, imagem, som, iluminação.
O mesmo percurso e a chegada ao mesmo salão. “A Dona Amália já vem”, avisaram-me.
Escolhi o local que me parecia mais conveniente para a filmar, ligeiramente do lado esquerdo da lareira, tendo por cima o retrato de Medina. Amália apareceu pouco depois, vinha lindíssima de novo, com uma blusa alaranjada, um enorme colar de ouro que lhe descia pelo peito, e uma saia de tons verdes escuros entrelaçando vários motivos.
-Onde é que você me quer?
Indiquei-lhe o cadeirão dourado que escolhera e já colocara no lugar onde previamente acertara as luzes, ela anuiu, os tons do seu trajar contrastavam como o azul dos azulejos que lhe ficavam por detrás. Amália ria-se com um sorriso bonito, fresco, genuíno, e começou a recordar tempos antigos, o Vasco Santana com quem jantara um dia e que deixara cair uma fatia de fiambre nas calças e lhe dissera “É o que se chama umas calças afiambradas!”, sorria, encolhia ambas as mãos entre as pernas, e sorria. Um sorriso bonito.
Este foi o meu fim de tarde em casa de Amália. Uma boa recordação que agora o espectáculo de Filipe La Féria me fez evocar com nostalgia.

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