ANGEL CITY
“Angel City”, do norte-americano Sam Shepard (nascido em 1943), tinha tudo para ser uma peça para me agradar a cem por cento. O universo de Hollywood e do seu cinema, um argumentista, dois produtores, um técnico de som, uma secretária com aspirações a vedeta, um saxofonista, uma discussão em “huis clos” sobre a indústria, a febre do lucro que atraiçoa a criação artística, e uma metafórica poluição que invade o “lá fora”, Los Angeles, ou Culver City, e começa a corroer a pele dos que por lá se aventuram.
Sam Shepard escreveu dezenas de peças (entre elas uma muito conhecida, “Fools for Love”, que passou ao cinema pela mão de Robert Altman, “Loucos por Amor”), colaborou no argumento de filmes como “Paris Texas”, de Wim Wenders, ou “Zabriskie Point”, de Antonioni, e interpretou ainda dezenas de filmes onde deixou a marca do seu talento de actor, austero e nervoso.
Falando da sua obra de autor teatral, esta não costuma ter uma narrativa realista, preferindo invadir terrenos experimentalistas, passando pelo absurdo, a vanguarda e o simbolismo. É o caso de “Angel City” (1976) que, optando por uma aproximação metafórica, de um humor negro que joga com a mitologia norte-americana, ataca com violência e sarcasmo o espírito voraz de quem apenas pensa no lucro e na rentabilidade imediata do “produto”. Tudo certo e assunto que Sam Shepard deve conhecer e dominar como poucos, ele que, apesar disso, ou por causa disso, raramente entrou abertamente no campo da indústria e preferiu sempre trabalhar em obras onde prevaleceram os aspectos artísticos e culturais.
Mas a verdade é que “Angel City”, apesar das muitas qualidades, se me afigura obra não totalmente conseguida e algo desequilibrada. Por exemplo, a segunda parte parece-me muito mais lograda do que a primeira, para o que também deve ter contribuído em muito a montagem a que se pode assistir em “A Barraca”, com encenação de Rita Lello. Acontece que, como não conheço o original, difícil se torna uma avaliação em termos absolutos. Posso então apenas falar do espectáculo visto.
Num palco quase vazio e descarnado, uma larga janela/ecrã delimitada por néons, é a referência que imediatamente se impõe. Acrescente-se-lhe uma mesa, uma ou duas cadeiras que vão mudando de lugar e seis actores. Dois são produtores, têm entre mãos um hipotético filme que querem “de catástrofe”, e falta-lhes personagens e situações, para o que convidam um argumentista, dito “artista”, para iluminar essa ausência. O argumentista vem do Oeste de carroça, com indumentária de Buffalo Bill e muitos amuletos de índios presos ao cinto. Julgo que esta caricatura é o lado menos conseguido do espectáculo, não representa uma alternativa, mas apenas um continuar do caos que pré-existia e apenas se avoluma com a sua chegada. Depois, assistimos a uma dança da morte grotesca, com o fim que se adivinha.
Se o arranque da peça pressagia um desastre, a verdade é que no decorrer da representação o clima vai-se entrosando, e a segunda parte é mesmo bastante boa, com actores a imporem-se em personagens que vão adquirindo força e consistência no seu recorte caricatural. A encenação de Rita Lello, que tem excelentes apontamentos, cresce com o andamento, ou vai fazendo crescer o curso dos acontecimentos, e torna-se particularmente sugestiva na segunda metade. O palco divide-se em dois planos, com a janela/ecrã a adquirir uma importância e um significado cada vez mais preponderante, estabelecendo um contraponto entre a realidade do palco e a ficção da representação.
Os actores também ganham com o avançar da peça, sobressaindo os excelentes Ruben Garcia e Pedro Borges, muito bem acompanhados por Vânia Naia. Menos certos me parecem Sérgio Moras e Sérgio Moura Afonso (sobretudo pela excessiva gritaria que imprimem na primeira parte e que torna difícil perceber o texto). Boa a composição do saxofonista Paulo Curado, que é igualmente um dos autores da música original (de colaboração com Ricardo Santos e Pedro Freixo).
A Barraca,
Quintas, sextas e sábados, às 21,30 horas, domingos, às 16,00 horas.
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