quarta-feira, janeiro 26, 2011

CINEMA: HEREAFTER

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HEREAFTER - OUTRA VIDA


Aos oitenta anos, Clint Eastwood assina uma obra-prima e um dos seus filmes mais perfeitos. A idade aqui parece ter ajudado, dando-lhe uma clarividência e uma proximidade do tema que aborda que muito terão contribuído para o sucesso deste melodrama contido e sofrido sobre a morte e o que estará para lá dela.
“Hereafter - Outra Vida” parte de um argumento de Peter Morgan, o mesmo que estivera por detrás de “A Rainha”, “Frost/Nixon” ou “Maldito United”, inspirado escritor que aqui aborda um assunto novo de uma forma até aqui não experimentada por si. Parece que quem teve primeiramente nas mãos o argumento foi Steven Spielberg, que o terá aconselhado a Clint, aproveitado por ele e por Kathleen Kennedy para se colocaram na condição de produtores. Clint leu e gostou, sobretudo da forma como se entrelaçavam três histórias, e como se abordava um tema que é da sua especial predilecção, a morte.
Quem afirma que esta questão da morte e do que sobrevém depois dela não é tema de Clint Eastwood não deve ter visto nada deste autor, desde “Um Mundo Perfeito” a “Million Dollar Baby”, de “Imperdoável” a “Gran Torino”, de “Mystic River” a “A Troca”, não esquecendo o díptico sobre Iwo Jima. Estes sempre foram temas que abasteceram o universo de Clint Eastwood e o enformaram. Com o avançar da idade e a proximidade dessa viagem para o desconhecido é seguro que mais o preocupam e inquietam, provocando obras de uma serenidade e de um rigor que não deixam de ser surpreendentes.
Clint Eastwood é um cineasta de um classicismo fulgurante, desde que o conhecemos. Uma lição que vem certamente de David W. Griffith e John Ford e passa por mestres pessoais como Donald Siegel ou Sergio Leone. Mas que assume nele uma voz muito própria. “Hereafter - Outra Vida” demonstra tudo isso de forma sublime, confirmando, se necessário fosse, que ele é indiscutivelmente um dos maiores realizadores vivos. E um dos maiores da História do Cinema das últimas décadas.
“Hereafter - Outra Vida” parte de três histórias que se iniciam em três pontos de diferentes continentes e que acabam por reunir-se em Londres. Marie LeLay (Cécile De France), jornalista francesa, a passar férias numa paradisíaca praia do Índico, salva-se miraculosamente de morrer afogada no tsunami de 2004 que varreu as costas da Indonésia e da Tailândia, entre muitos outros países, provocando milhares de mortos. Ela atravessou o limbo entre a vida e a morte e recorda esse momento quando regressa ao trabalho no canal de televisão onde trabalha. Mas a perturbação é muita e a sua actividade profissional ressente-se. Irá tirar uns meses de folga e procurar esquecer escrevendo um livro sobre Mitterand. Mas o livro acaba por ser sobre fenómenos para-psicológicos, sobretudo relatando experiencias de quem conviveu de perto com o Além. Seja ele o que for.
Na América, George Lonegan (Matt Damon) foi um médium muito requisitado, que poderia fazer choruda carreira de vidente, explorando as suas potencialidades. Mas um médium autêntico vive atormentado pelos poderes que possui. A sua vida é um tormento e por isso abandona tudo e torna-se operário. Uma vez por outra, o seu irmão, que não perde a esperança de poder voltar a explorar o filão, obriga-o a aceitar um caso. Lonegan prefere, porém, aprender culinária. Nessas aulas encontra Melanie (Bryce Dallas Howard), por quem se começa a apaixonar, até que os seus dotes o voltam a atraiçoar. Melanie desaparece da sua vida quando este aceita revelar aspectos secretos da sua antiga existência. Lonegan volta a sentir a solidão e, inspirado pelo seu autor de eleição, Charles Dickens, viaja até Londres e visita a casa do escritor, onde um quadro famoso retém a sua atenção: os sonhos de Dickens, uma gravura povoada pelas personagens dos seus romances. Esta referência a Dickens parece-me essencial para a compreensão do filme, que se coloca sob o seu signo. Curiosamente, Dickens era o escritor de eleição de David W.Griffith.
Entretanto, em Londres, dois gémeos adolescentes, resistem a uma vida de desespero, com uma mãe drogada e alcoólica (Lyndsey Marshal), que pouca atenção lhes dá. Digamos que é uma actualização do universo londrino de Dickens e das suas personagens mais frágeis, as crianças e as mulheres. Marcus (Frankie McLaren) tem uma enorme admiração pelo irmão Jason (George McLaren), mais velho que ele alguns minutos, e não consegue suportar bem a acidental morte deste. Não mais irá abandonar o boné de Jason e procura por todas as formas saber o que se passa depois da morte. Na internet vasculha tudo o que encontra sobre o tema e descobre como as religiões o procuram manipular e os ditos videntes do oportunismo o tentam explorar. O Além é um bom negócio.
Será numa feira do livro em Londres que o destino destas três personagens se irá cruzar. Inquieto quanto ao que virá depois da morte, se depois da morte algo virá, Clint Eastwood não toma partido, não resolve o enigma, não indica soluções, mas transforma este pesadelo de uma Humanidade perdida em solidões e angústias num hino à esperança da solidariedade. O melodrama quase roça o cor-de-rosa mas Clint Eastwood é mestre a controlar emoções e a narrativa.
O filme é um exemplo de narrativa escorreita e enxuta de efeitos. Nada está ali a mais, nem a brutalidade da reconstituição do tsunami, que ostenta dos melhores efeitos visuais vistos até hoje no cinema, mas que cumprem uma função e rapidamente cedem lugar a uma progressão intimista e secreta. O mesmo se passa com a breve evocação do atentado terrorista do Metro de Londres em 2006. Ambos assinalam a violência natural e a brutalidade humana, mas não passam de sinais que marcam a progressão da narrativa, sem serem explorados abusivamente. De resto, a delicadeza do olhar de Eastwood é infinita, a sua emoção contida pode ver-se na maneira como enquadra cada plano, como os encadeia de forma seca, como dirige os actores com segurança e rigor. O seu olhar é sempre pessoal e original, seja a enquadrar um avião a levantar voo, seja a segurar um diálogo entre Lonegan e Marcus (veja-se a subtileza como o médium aceita mentir, para salvar o futuro de uma criança, que tem de se libertar do fantasma do irmão). Seja a conseguir de Cécile De France, Bryce Dallas Howard, Lyndsey Marshal ou Marthe Keller desempenhos sublimes. Cécile De France é absolutamente deslumbrante. Matt Damon é extraordinário numa composição aparentemente rígida mas, no fundo, possuidora das pequenas nuances que fazem um grande actor.
Um filme comovente e excepcional que entra directamente para a minha lista de eleitos. Raras vezes se viu falar de algo tão difícil de localizar como esse abismo negro donde ninguém regressou para contar como é, com imagens de tal forma materializadas e sensíveis como o faz Clint Eastwood. Sem entrar na exploração do sensacionalismo, sem cair no pecado de apontar saídas, apenas colocando o problema e confrontando-o com o espectador. Uma obra de génio.
Um filme que transcendeu obviamente as nomeações para os Oscars. Ficará ao lado de outros que marcaram a História do Cinema.

HEREAFTER - OUTRA VIDA
Título original: Hereafter
Realização: Clint Eastwood (EUA, 2010); Argumento: Peter Morgan; Produção: Clint Eastwood, Kathleen Kennedy, Robert Lorenz, Frank Marshall, Tim Moore, Peter Morgan, Steven Spielberg; Música: Clint Eastwood; Fotografia (cor): Tom Stern; Montagem: Joel Cox, Gary Roach; Casting: Fiona Weir; Design de produção: James J. Murakami; Direcção artística: Tom Brown, Dean Clegg, Anne Seibel, Patrick M. Sullivan Jr., Frank Walsh; Decoração: Lisa Chugg, Hélène Dubreuil, Gary Fettis; Guarda-roupa: Deborah Hopper; Maquilhagem: Frédérique Arguello, Paul Engelen; Direcção de Produção: Gilles Castera, Jeremy Johns, Tim Moore; Assistentes de realização: David M. Bernstein, Ryan Craig, Vanessa Djian, Robert Karn; Departamento de arte:Katie Gabriel, Chris Kitisakkul, Laura Whitehead; Som: Bub Asman, Alan Robert Murray; Efeitos especiais: Steve Riley; Efeitos visuais: Charley Carlat, Chad Finnerty, Craig Kief, Michael Owens; Companhias de produção: Amblin Entertainment, The Kennedy/Marshall Company, Malpaso Productions; Intérpretes: Matt Damon (George Lonegan), Cécile De France (Marie LeLay), Bryce Dallas Howard (Melanie), Frankie McLaren (Marcus / Jason), George McLaren (Marcus / Jason), Lyndsey Marshal (Jackie), Marthe Keller (Dr. Rousseau), Derek Jacobi (ele próprio), Thierry Neuvic (Didier), Steve Schirripa (professor de culinária), Cyndi Mayo Davis, Lisa Griffiths, Jessica Griffiths, Ferguson Reid, Derek Sakakura, Jay Mohr, Richard Kind, Charlie Creed-Miles, Rebekah Staton, Declan Conlon, Marcus Boyea, Franz Drameh, Tex Jacks, Taylor Doherty, Mylène Jampanoï, Stéphane Freiss, Laurent Bateau, Calum Grant, Joe Bellan, Jenifer Lewis, Tom Beard, Andy Gathergood, Helen Elizabeth, Jean-Yves Berteloot, Niamh Cusack, George Costigan, Claire Price, Surinder Duhra, Sean Buckley, Paul Antony-Barber, Selina Cadell, Céline Sallette, Joanna Croll, Jack Bence, Tim Fitzhigham, etc. Duração: 129 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 20 de Janeiro de 2011.

1 comentário:

Lisa disse...

Lauro querido, o olhar é mesmo cultural. Você conseguiu que eu enxergasse melhor o filme.Particularmente achei as imagens da Tsunami belíssimas comoventes e admirei a sutileza do atentado no metrô de Londres, mas pra mim faltou vida aos personagens. Com exceção do núcleo da criança. Tive dúvida no início se a persoangem da Lisa já não estava morta. Tudo parecia artificial, inclusive as cenas daquela bela clínica na Suiça. Gostei mais dos outros filmes dele, mas sua crítica engrandece muito o filme. Um beijo, Lisa.