segunda-feira, julho 14, 2008

TEATRO: PEER GYNT, BERLINER ENSEMBLE


FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA

Uma tarde em Almada, no teatro. Uma tarde em cheio.
Antes de mais, um Festival com 25 anos de existência, uma companhia residente com 30 temporadas de actividade constante. A CTA incorporou o Grupo de Teatro de Campolide que iniciara a sua actividade, sob a direcção de Joaquim Benite, em 1971, em Lisboa, apresentando nesse ano a peça “O Avançado Centro Morreu ao Amanhecer”, de Agustin Cuzzani, que marcou a estreia do seu director como encenador. Eu vi, foi um sucesso entusiástico. De 1972 a 1976 seguiram-se peças de António José da Silva, Pablo Neruda e Virgílio Martinho, sempre encenadas por Joaquim Benite, com centenas de representações por todo o país. A partir de 77, a companhia profissionaliza-se ainda em Lisboa, agora no Trindade. Sem apoios, mas com público, criou raízes e, em Janeiro de 1978, instalou-se em Almada, no teatro da Academia Almadense, integrando-se no movimento da Descentralização Teatral que então se iniciava pelo País. Passa a designar-se Companhia de Teatro de Almada. Em 1988, após dez anos de actividade teatral intensa em Almada e no seu concelho, a Companhia, convidada pela Câmara local, torna-se residente do Teatro Municipal de Almada.
Desde Julho de 2007, a Companhia de Teatro de Almada é a companhia residente do novo Teatro Municipal de Almada (magnifica obra dos arquitectos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira), considerado com razão um das mais bem equipadas salas do país. Das mais bem dirigidas e dinamizadas também. O Festival de Teatro de Almada, por seu turno, é uma organização conjunta da Companhia de Teatro de Almada e da Câmara Municipal de Almada, e realiza-se todos os anos entre 4 e 18 de Julho. Esta é a sua 25ª edição e continua, cada vez mais, a fazer jus à merecida fama de ser o nosso melhor festival de teatro, e um dos melhores da Europa (no âmbito dos países de pequenas dimensões, é claro!).

"PEER GYNT"


Este ano, no Festival de Almada, precisamente na noite de sábado e tarde de domingo, passou um dos melhores espectáculos de teatro que vi na minha vida. “Peer Gynt”, de Henrik Ibsen (1828-1906), um dos três grandes da dramaturgia mundial de inicio do século XX, um dos meus autores preferidos (os outros são Strinberg e Tchekov, outras preferências minhas óbvias!). Obra de juventude, inicialmente poema dramático, depois peça de teatro, “Peter Gynt” não terá talvez o fulgor, a intensidade, a complexidade das suas peças de maturidade (“Os Pilares da Sociedade”, “Casa de Bonecas”, “Fantasmas”, “A Dama do Mar”, “Hedda Gabler”, “Um Inimigo do Povo” ou “O Pato Selvagem”). Mas é cada vez mais valorizada.
Peer Gynt é o protagonista e a peça acompanha, numa toada com muito de fantástico, uma dose certa de ironia e sátira de costumes, e um pouco de poética surreal, as aventuras deste personagem que é egoísta, vive “segundo a sua maneira de ser”, insensível ao que os outros pensam e desejam, não vendo senão o que lhe interessa. Filho de uma viúva pobre que tudo fez para o sustentar, mentiroso, aldrabão, explorador, troca-tintas, começou por ser conhecido na aldeia como um bom narrador de histórias que contava como se de facto lhe tivessem acontecido, mas que mais não eram do que lendas ouvidas anteriormente, onde apareciam Trolls, duendes, demónios e outras figuras míticas, tudo passado no alto de montanhas, à caça de veados. Será a cobiça do dote de uma noiva rica que o leva a raptá-la, violá-la e fugir depois para a floresta, A mãe e a jovem Solveig, uma paixão nunca seriamente correspondida, são as únicas que o esperam, Solveig mesmo grávida de um filho que educa sozinha.
Quando a mãe morre, as verdadeiras aventuras de Peter Gynt iniciam-se com passagem por África, onde ultrapassa ladrões, ataques de macacos, travessia de inquietantes clínicas psiquiátricas, passando por profeta, concebendo alta engenharia para irrigar o deserto, conseguindo mesmo resolver sozinho o enigma da Esfinge, e fazendo fortuna na América. Acaba, porém, pobre e solitário, na terra natal, com a morte a enviar mensageiro que vai adiando a data definitiva para futuras encruzilhadas, até chegar à “Pietá” derradeira, nos braços da cândida Solveig.

Peter Zadek, o encenador, nasceu em 1926 em Berlim e em 1933 emigrou com a família para Londres, estudando na Old-Vic-School. Entre Londres e Berlim (depois de 1958) fez encenações brilhantes e muito pessoais, que o colocaram na lista dos melhores encenadores europeus actuais. Em 2007 foi mesmo considerado “Prémio Europa de Teatro” do ano, depois de ter estreado, em Abril de 2004, no celebrado “Berliner Ensemble” (de Bertold Brecht), a nova e radicalmente diferente versão de Peer Gynt”, com um sucesso absolutamente fulgurante.
O trabalho da direcção de Zadek é surpreendente, estilhaçando aparentemente o lado naturalista da obra de Ibsen, mantendo, todavia, as características de um fantástico poético, de inspiração nórdica, impondo-lhe uma estética a roçar o surrealismo, de “Ubu” a “Alice no País das Maravilhas” (ainda que aqui fosse mais “Peer no Mundo dos Pesadelos”), e vogando ao sabor de uma inteligente e sensível imaginação, com ora cintilantes, ora sombrias cores, e sons, num movimento e numa alegria contagiante que tornam o espectáculo um deleite para os olhos, para a emoção, sem descurar a razão. Fascinante, brilhante, fulgurante, interpretado por uma companhia de eleição, com um truculento e genial Uwe Bohm (Peer Gynt) e uma tocante Angela Winkler (uma das actrizes da minha paixão, sobretudo depois de “A Honra Perdida de Katharine Blum”). Outros actores: Benjamin Çabuk, Gerd David, Peter Donath, Ninon Held, Ruth Glöss, Ursula Höpfner-Tabori, Deborah Kaufmann, Alice Kornitzer, Ann-Marie von Löw, Annett Renneberg, Steffen Roll, Dorothea Gebhardt, Judith Strößenreuter, Marko Schmidt, Veit Schubert, Oliver Urbanski, Axel Werner, Ronald Zehrfeld. Os cenários e figurinos de Karl Kneidl, são sumptuosos, mas de uma simplicidade desarmante e de eficaz efeito (aqui e ali, num outro registo, relembram o universo plástico de Bob Wilson), a coreografia de Reinhild Hoffmann é excelente, sobretudo em momentos de multidão no palco, a música de Georg Klein perfeita, enquadrando-se no clima sugerido por Grieg. São três horas que passam num ápice e numa avalanche de sensações, que muitos encenadores e directores de companhia portugueses deviam ver. E recordam, quando concebem algumas monótonas e intelectualoides encenações que só afastam o público do Teatro. Em Almada, as casas transbordaram. Em dois espectáculos, contabilizaram-se mais espectadores do que num mês nalgumas companhias que por ai pululam. Nem sempre o muito público é sinal de perfeição, mas às vezes acerta. Foi o caso.

ANGELA WINKLER

Não era a figura principal, era a mãe, a segunda figura da companhia, mas não resisto a colocar aqui uma nota pessoal. Desde que a vi no dealbar do Novo Cinema Alemão, em finais da década de 60, nunca mais a esqueci. Um rosto de menina, uma indómita decisão, uma das presenças mais notadas por essa altura. Uma mulher que me tocou particularmente no cinema da década de 70. Fez “Cenas de caça na Baixa Baviera”, de Peter Fleschemann (1969), uma versão que nunca vi deste mesmo “Peer Gynt”, para televisão, sob direcção de Peter Syein (1971), o inesquecível “A Honra Perdida de Katherine Blum”, segundo romance de Henrich Boll, numa realização conjunta de Volker Shlondorff e Marguereth Von Troya (1975), apareceu em “A Mulher Canhota”, de Peter Handke (78) e “O Tambor”, de novo de Volker Shlondorff. Passou pela Suiça de Claude Goeretta, em “La Provinciale”, por “Danton”, do polaco Andrzej Wajda, e protagonizou “Heller Wahn”, de Margareth Von Trota. Alemã, nascida a 22 de Janeiro de 1944, passou por várias companhias de teatro, por França, Inglaterra, e protagonizou, em 1999, sob as ordens de Peter Zadek uma versão que nos dizem brilhante de “Hamlet”, trabalho pelo qual ganhou um dos seus prémios como actriz ("Actress of The Year" atribuído pela revista "Theater Heute").

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