quarta-feira, julho 30, 2008

TERCEIRA, NOTAS DE VIAGEM, I

FESTIVAL AZURE NA TERCEIRA

O pretexto foi a apresentação de uma extensão do Cine Eco, acoplada a um festival de música mesmo muito alternativa, o “Festival Azure”, que decorreu entre 24 e 26 de Julho, na zona de lazer de S. Brás, na Ilha Terceira. Nunca tinha estado na Terceira, esperava ficar em Angra do Heroísmo, de que me tinham tecido ao mais rasgados elogios, mas fui parar ao hotel “Varandas do Atlântico”, na segunda cidade da ilha, a Praia da Vitória, de que desconhecia até a existência, o que me provocou de início uma certa frustração.
Vista do hotel
A Praia da Vitória fica a 20 quilómetros de Angra, e reservei viagem para o segundo dia. No primeiro tomei contacto com o festival, a noite não era de Verão (ou seria de Verão “nos Açores”), chovia, ventava e estaria certamente “mau tempo no canal”. Mas, no autocarro que nos foi buscar ao aeroporto, vim na companhia de uma banda portuguesa “da pesada” que ia actua nessa noite, os “Kalashnikov”, e a viagem foi divertidíssima. O meu forte não é, como devem calcular, o “Hard Rock” nem o “rock da pesada”, mas eles gostavam de “Drácula” (pudera, não fossem góticos!), de cinema em geral, eram cinéfilos e simpatiquíssimos, muito contestatários, carregados de adereços a condizer e, no final, despediram-se com um cumprimento irresistível: “Somos “da pesada”, mas muito divertidos! Apareça!”.
o grande palco, com os kalashnikov
Apareci. Foi uma espécie de descida aos infernos. Ou subida, já que a carrinha que nos foi buscar ao hotel, a mim e à Eduarda, para nos levar ao local do Festival, descolou da marginal e desatou a subir ilha a cima, até um local de diurnas merendas, na freguesia de S. Brás. Aqui as merendas eram profundamente nocturnas. Era uma noite de breu, a estrada serpenteava com raro transito, depois o carro guinou para a esquerda e entrou num trilho de terra batida, e parou por detrás de um improvisado palco, onde iam actuar os grandes grupos durante as três noites, Uma clareira frente ao palco perdido na vegetação, meia dúzia de barracas de comes e bebes e umas quantas de informação e sensibilização ambiental dispersas em redor, uma tenda ao fundo, onde passavam os filmes do Cine Eco, centenas de jovens passeando enquanto esperavam que o horário (não) fosse cumprido, era quase meia noite e não tinha começado uma maratona que prometia estender-se até de manhã. Um DJ ia animando a festa, com música ensurdecedora, depois começou na Multimédia Zone a apresentação do filme de Sílvio Tendler, enquanto os Kalashnikov atacavam os primeiros temas da madrugada.
a tenda onde se projectavam os filmes do Cine Eco
"Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá" é uma obra que fala da globalização e dos seus perigos, apontando alguma das suas possíveis virtudes ainda não concretizadas ou devidamente exploradas. Acredita nalgumas transformações da sociedade, e fala com esperança do Terceiro Mundo, da Índia, do Brasil, da China… Enquanto Milton Santos sublinha o papel do China, do outro lado do terreiro, os Kalashnikov gritam contra Tianamem, contra George W. Bush, contra os acordos das Lajes (ali mesmo ao lado), fazem a (satírica, pareceu-me!) apologia do terrorismo árabe e do separatismo açoriano (“Convidem-nos para a banda sonora do filme!”). A confusão é completa. As palavras do filme cruzam-se com os “Fuck Off” do ensurdecedor estribilho dos Kalashnikov. Uma noite para recordar, uma experiência única. Creio que se Sílvio Tendler estivesse presente iria ficar entusiasmado. Quero também ouvir mais e melhor os Kalashnikov.
Não houve, todavia, muito mais tempo para estes cruzamentos criativos. Na noite seguinte, o Festival teve de interromper os trabalhos, uma chuvada torrencial fustigou o acampamento, o tecto do palco principal veio a baixo, não houve concertos nesse dia e só os houve na noite seguinte depois do concerto do palco. Nessa noite tocavam os Slimmy, que encontrei na esplanada no hotel, frente ao mar. Quando os interpelei para saber qual o nome da banda (banda era de certeza, faltava saber qual a designação), dei de caras com o vocalista e mentor do grupo, um loiro já devidamente paramentado para o espectáculo, que me disse chamarem-se “Slimmy”. Mas foram mais longe, enquanto eu tentava recordar donde conhecia aquela cara, emoldurada por um berrante cabelo amarelo vivo. Esse mesmo, perguntou-me: “Professor, já não se lembra de mim? Sou o Paulo, seu aluno do primeiro ano do TCAV, do Porto.” É sempre fabuloso encontrar um ex-aluno. E quando o vemos triunfante, mesmo que não seja no que lhe tentámos ensinar, ainda é melhor a sensação. Que bom é ver um ex-aluno feliz e com alguma felicidade por encontrar um ex-professor. Falámos um pouco enquanto do outro lado da estrada a Eduarda ia tirando umas fotos à paisagem, e ouvindo o que se dizia à volta. Contou-me depois: “Dois autóctones passaram enquanto tu falavas com os “Slimmy” e comentaram entre si: “Olha um “camone” a engatar as bichas!” As aparências iludem muitas vezes. Nem sou “camone”, nem eles “bichas”, nem alguém engatava quem quer que fosse. Só equívocos!
O "camone" à entrada de um Império na Praia da Vitória
Voltando aos alunos e professores: na noite da projecção de Milton Santos, estava eu sentado na improvisada plateia, sem uma única luz de referência a não ser a do ecrã, quando uma mão me toca no braço, e pergunta: “É o Lauro António, não é?” Olhei, era uma belíssima Filipa de vinte e poucos anos, que também tinha sido aluna na ESE do Porto, onde eram as instalações do CTAV. Aí dei aulas durante quinze anos. Ela não tinha sido minha aluna, pertencia a outro curso, mas tivera o José Vieira Marques como professor. E as aulas do José Vieira Marques fizeram-na mudar de curso, viajar até Bruxelas e tirar aí um curso de cinema. Hoje, finalista, roda e termina um projecto. Estava de férias na Terceira, bebia cerveja com uns amigos, via atentamente o filme, era feliz na escuridão do parque de merendas de S. Brás. Não foi minha aluna, foi aluna de um colega meu que estimei (apesar das muitas nossas divergências, o seu amor ao cinema sempre me fascinou, desde os primeiros anos do Festival da Figueira da Foz que ele inventou e dirigiu). Foi bonito ter conhecido a Filipa daquela forma. É sempre fabuloso ver alguém que muda de estrada por descobrir uma paixão que um professor lhe conseguiu “mostrar”. A Filipa apaixonou-se pelo cinema através das palavras e dos filmes que ouviu e viu com JVM.
-Espero, Filipa, encontrar-te outro dia, por aí, feliz por dirigires os teus próprios filmes.
A Terceira tem, todavia, muito mais para contar. Noutro dia. Assim o espero.