O elevador é um tema excelente para exercitar a escrita e a imaginação. O tempo de férias também pode ser um convite para escrever. Estão todos convidados a participar nesta viagem ao mundo da imaginação. Passem por "O Elevador" para saber como funciona. Depois... é só escrever um conto, um poema, um texto ao vosso gosto! Ou simplesmente passar por lá para ler...! Também podem contribuir com imagens, desenhos, pinturas, etc...
MORTE NO ELEVADOR
Há quase vinte anos que andava para cima e para baixo naquele elevador, subindo e descendo para regressar a casa ou partir para qualquer destino, já estivera parado entre andares diversas vezes, já sentira a angústia do espaço fechado, já saíra, escorregando através de frechas abertas entre patamares pelos técnicos salvadores, já estava, por isso, mais ou menos “formado” nesta matéria, mas só agora olhara realmente para a verdadeira constituição física deste elevador, todo revestido a metal, metal cinzento recoberto de uma tinta de cor esverdeada, porta igualmente metálica, da mesma cor, com uma curta abertura a meio, onde tinha sido incrustado um estreito rectângulo, disposto ao alto, de vidro lapidado com uma estrutura de fios de arame no interior, que não permitia que o olhar o atravessasse.
Sentiu-se mal, obviamente quando o elevador estancou de súbito, balouçando ligeiramente. Nunca estudara nada sobre elevadores, mas sabia que estavam suspensos por cabos, movidos por roldanas, conhecia de ver por fora a “casa do motor”, lá em cima, no décimo terceiro andar, ao lado da porta que conduzia ao terraço. A situação não tinha nada de surpreendente, num prédio com mais de cinquenta anos, que raramente entrara em obras, apesar da robustez da sua construção, nos bons velhos tempos em que os construtores civis não roubavam tanto no material e os donos dos prédios faziam questão de erguer obras que os perpetuassem. Hoje nada disso acontecia, os prédios eram o que eram, abanavam as paredes quando se batia com a porta, e ouviam-se claramente os gemidos de prazer ou de dor do outro lado da parede. No sétimo direito todos ouviam e sabiam, palavra por palavra, os arrufos do casal de masoquistas que habitava o sétimo esquerdo, contara-lhe a Sílvia, uma noite. Mas aqui não, as paredes eram robustas, as portas de sólida madeira, os elevadores de aço inoxidável, resistentes a toda a prova. O que teria sido excelente noutras eras, mas que era agora algo inquietante.
A mulher que estava a seu lado olhou para ele, interrogando-se. Com os olhos. Não ousou uma palavra.
Ele respondeu que não havia perigo, que já conhecia de longa prática os usos e costumes do elevador, podia ter sido apenas uma paragem ligeira, tocou nos vários botões mas o elevador não disse nem que sim nem que não, permaneceu não tão ledo quanto seria desejável e muito quedo para o seu gosto.
Havia um botão para fazer ouvir a sirene, e tocou-o.
- “Vai ver que é rápido, o senhor Augusto, o porteiro, não demora a aparecer.”
Esquecera-se que era domingo de Páscoa, o senhor Augusto fora com a mulher a casa do cunhado, nos arredores de Lisboa, e o prédio era predominantemente de escritórios, logo vazios neste dia do ano. Lá para cima havia uns inquilinos velhotes, que estavam ali desde a fundação do imóvel, uns saíram para casa dos filhos, levados como robots obrigados a divertirem-se, outros não iam para lado nenhum, e também não ouviam a sirene do elevador a gritar. Surdos como pedras.
Voltou a tocar no botão de alarme, mas os únicos alarmados eram eles os dois, presos no interior daquele elevador metálico que não os conduzia a lado nenhum. Estavam fechados ali, e sabia-se lá quando alguém os viria libertar de tamanho cativeiro em domingo de Páscoa.
- Não mora aqui?, perguntou ele, e acrescentou: Nunca a vi por aqui.
- Não moro, não. Venho visitar a minha tia-avó que mora no décimo terceiro, num daqueles ateliers, sabe?
- Claro que sei. Você é então família da Dona Felícia? Conheço-a bem, mas não a tenho visto ultimamente.
- Pois, está acamada com um violento ataque de reumático. Já tem mais de setenta anos e não quer sair daqui, diz que “é a sua casa”. Por isso a venho visitar. Mas não sabe de nada, é surpresa.
Queria aparentar um ar despreocupado, mas nada disso transparecia quer da expressão do rosto, quer da agitação do corpo. Estava nervosa. Via-se. Sentia-se.
- Não se pode fazer mais nada?
- Temo que não, disse ele. Esperar que alguém passe nas escadas, ou ouça o pedido de socorro do alarme. Mas não se ouve nada nas escadas, não vale a pena tocar mais. Ninguém nos vai ouvir… Por enquanto.
Ela tinha cerca de trinta e cinco, quarenta anos, vestia de forma discreta, secretária de administração, professora, algo assim… Solteira, sem aliança, talvez divorciada. Bonita? Vistosa, mas atraente. Ele olhava-a de alto a baixo, o cabelo escuro, próximo do preto, o rosto quase sem pinturas, um leve toque de batom nos lábios, uma camisa creme com os botões de cima displicentemente abertos, até se descobrirem os seios, ia jurar que sem soutien, um casaco castanho escuro por cima dos ombros, uma saia rodada da mesma cor, as pernas torneadas e tostadas pelo sol ou por drogas de farmácia, uns bonitos sapatos de saltos altos.
Ela sentiu-se olhada, e perguntou:
- Mora aqui?
- Há quarenta anos, certos. Os meus pais inauguraram o prédio, eu apareci dez anos depois. Vivo aqui desde sempre…
- Com os pais?
- Não, agora sozinho. Os meus pais já morreram. Herdei a casa. Casei, divorciei. Sem filhos. Chamo-me Ernesto…
- A importância de ser Ernesto… e sorriu. Um sorriso bonito, pensou ele, e ela:
- Eu chamo-me Lara…
- O tão conhecido “tema de Lara”… Do “Doutor Jivago”, a minha mãe adorava-o. A conversa levou-os a esquecer o elevador durante uma fracção de minutos, mas a angústia instalara-se. Isto está preto. Não vamos desesperar, o pior que pode acontecer são os nervos, não vamos entrar em histerias, o que é preciso é manter a calma… Levou a mão ao bolso e retirou um maço de tabaco. Ela colocou a mão sobre a mão dele…
- Não pode fumar agora… O que me preocupa mais é o facto deste elevador ser tão pouco ventilado. Só entra ar pelas frestas… Não temos ar respirável por muito tempo…
Ele voltou a colocar o maço no bolso do casaco. Verdade, a falta de ar… Agora que ela falara disso, lembrou-se que era dado a ataques de falta de ar, frequentes, sobretudo nas mudanças de estação, entre a Primavera e o Verão, entre o Outono e Inverno, rinite alérgica, por vezes quase parecia asfixiar, a tosse seca invadia-o, tinha de correr ao centro de enfermagem e levar uma injecção de cortisona, para acalmar, para a garganta perder o inchaço, para o ar circular, para os pulmões se abrirem ao ar limpo… A falta de ar era um problema, realmente. Os médicos diziam-lhe que grande parte do problema era psicológico, era o pavor que desbloqueava a crise aguda, era a ideia da falta de ar que criava a falta de ar…
O ideal seria pensar noutra coisa. Naquela bonita mulher, ali a seu lado. Ele começava a suar. Não se dava bem em lugares fechados. Tirou o casaco (Dá-me licença?”, “Faz favor, está calor!”), dobrou-o e colocou-o a um canto do elevador.
- Esqueci o telemóvel em casa, senão…, disse ele.
- Nunca uso, não preciso, disse Lara.
Silêncio pesado entre ambos.
Ela perguntou então:
- Que faz na vida quando não está fechado num elevador?
- Jornalista, escrevo, sobre a cidade. Pequenas notas sobre o dia a dia na cidade.
- Sobre lisboetas presos em elevadores?
- Também. Se houver uma boa história associada…
- Amanhã “poderia” ter uma boa história para contar sobre esta paragem de elevador…
- Quem sabe. Mas gostaria mesmo de não ter nada para contar sobre esta paragem de elevador entre o terceiro e o quarto …
Ela olhou para ele com um olhar trocista, ou seria provocador?
- Preferia ter chegado ao quarto?
- Muito melhor certamente, respondeu e sorriu. E você que faz na vida quando não vem visitar a tia-avó?
- Hum, não acredita, se eu lhe disser: adivinhação.
- Feiticeira? A bruxa da “Branca de Neve”?
- Chamemos-lhe vidente.
- Estamos salvos então. A que horas chegará o porteiro, ou alguém que nos tire daqui?
- Hummm, não se deve brincar com coisas sérias. Pode dar mau resultado…
- Mas não prevê nada?
- Sim, estou descansada, nada de mau me trará esta paragem. Será uma fracção de tempo onde aparentemente nada acontecerá… Cada um seguirá o seu rumo, o seu destino.
Olhou fixamente Ernesto. Despiu o casaco castanho, que dobrou e colocou sobre o casaco do jornalista. Abriu mais um botão da blusa, e os seios pareciam soltar-se igualmente. A pele era ali clara, leitosa, dir-se-ia macia. Os olhos de Ernesto denunciavam a direcção. Não sei estar assim, à espera, sem nada que fazer… Há sempre tanto que fazer, disse ela, e aproximou-se dele. Ele olhou-a nos olhos, desceu até ao peito, ela aproximou-se mais, ele abraçou-a, ela deixou-se abraçar, ele beijou-a, ela abriu a boca para o deixar entrar, ele desceu a boca pelo pescoço, a língua percorreu os ombros desnudados, a camisa meia caída, os seios libertos, o mamilo na boca, duro, a língua que o rodeia com lassidão, ela a descer as mãos pelos quadris dele, a acariciar as ancas, a virar súbito de percurso e seguir até às virilhas, a mão a agarrar-lhe o sexo, ele a sentir o seu desejo e o desejo dela, ambos num mesmo abraço, a mão dela que sobe até ao cinto, que destramente o abre, que corre o fecho “éclair“, a mão dele que procura a bainha da saia, que levanta até à cintura, para depois descer novamente em busca de um calor húmido mais intenso, por onde abre caminho e penetra, escorregando lentamente para o interior desse poço, onde o desejo os enrola. No chão do elevador, corpos, mãos, sexos, o arfar da paixão que se satisfaz, a sofreguidão dos amantes, as bocas coladas sorvendo-se um ao outro, o ar que se inspira, o ar que falta, a sensação de asfixia que se instala, a necessidade de gritar, de pedir auxilio, socorro, a cabeça que volteia, sem tino, a garganta apertada, o ar que falta, as portas fechadas, as unhas que tentam rasgar superfícies metálicas intransponíveis, os pés a bater desordenados na porta metálica, o silêncio em redor, as unhas a estalarem em sangue, arranhando as paredes esverdeadas, a garganta a sufocar, o ar cada vez mais pesado, já sem o brilho da vida, apenas com o peso da morte.
Ao fim da noite, o senhor Augusto, enfim regressado, percebeu que o elevador estava parado entre o terceiro e o quarto andar. Subiu lentamente a pé até ao terceiro, bateu na metade da porta descoberta e perguntou:
- Está aí alguém?
Ninguém lhe respondeu, mas ele ia jurar que vira vultos estendidos no chão. Desceu a sua casa para ir buscar a chave que permite destravar a porta do elevador, e assim o fez. Descobriu, enroscado no chão, o corpo sem vida de Ernesto, o inquilino do quinto direito. Tinha a roupa em desalinho, o casaco dobrado a um canto, a camisa uma rodilha à volta das costas, as calças abertas, meio descidas, um sapato descalço, os olhos desmesuradamente fora das órbitas, a boca escancarada num esgar que deixou o senhor Augusto impressionado.
No dia seguinte, a Dona Felícia, dobrada sobre o seu reumatismo crónico, perguntou-lhe o que havia acontecido no elevador no domingo de Páscoa. Ele contou-lhe tudo, com requintes de masoquismo nas descrições mais dramáticas e acrescentou que vira sair do elevador uma borboleta de asas negras quando abrira a porta.
- Coitado do senhor Ernesto. Tão novo. E eu que brincava tanto com ele quando o vai no elevador. “A importância de ser Ernesto”?
A Dona Felícia fora toda a vida bibliotecária e continuava a gostar muito de Oscar Wilde.
Sentiu-se mal, obviamente quando o elevador estancou de súbito, balouçando ligeiramente. Nunca estudara nada sobre elevadores, mas sabia que estavam suspensos por cabos, movidos por roldanas, conhecia de ver por fora a “casa do motor”, lá em cima, no décimo terceiro andar, ao lado da porta que conduzia ao terraço. A situação não tinha nada de surpreendente, num prédio com mais de cinquenta anos, que raramente entrara em obras, apesar da robustez da sua construção, nos bons velhos tempos em que os construtores civis não roubavam tanto no material e os donos dos prédios faziam questão de erguer obras que os perpetuassem. Hoje nada disso acontecia, os prédios eram o que eram, abanavam as paredes quando se batia com a porta, e ouviam-se claramente os gemidos de prazer ou de dor do outro lado da parede. No sétimo direito todos ouviam e sabiam, palavra por palavra, os arrufos do casal de masoquistas que habitava o sétimo esquerdo, contara-lhe a Sílvia, uma noite. Mas aqui não, as paredes eram robustas, as portas de sólida madeira, os elevadores de aço inoxidável, resistentes a toda a prova. O que teria sido excelente noutras eras, mas que era agora algo inquietante.
A mulher que estava a seu lado olhou para ele, interrogando-se. Com os olhos. Não ousou uma palavra.
Ele respondeu que não havia perigo, que já conhecia de longa prática os usos e costumes do elevador, podia ter sido apenas uma paragem ligeira, tocou nos vários botões mas o elevador não disse nem que sim nem que não, permaneceu não tão ledo quanto seria desejável e muito quedo para o seu gosto.
Havia um botão para fazer ouvir a sirene, e tocou-o.
- “Vai ver que é rápido, o senhor Augusto, o porteiro, não demora a aparecer.”
Esquecera-se que era domingo de Páscoa, o senhor Augusto fora com a mulher a casa do cunhado, nos arredores de Lisboa, e o prédio era predominantemente de escritórios, logo vazios neste dia do ano. Lá para cima havia uns inquilinos velhotes, que estavam ali desde a fundação do imóvel, uns saíram para casa dos filhos, levados como robots obrigados a divertirem-se, outros não iam para lado nenhum, e também não ouviam a sirene do elevador a gritar. Surdos como pedras.
Voltou a tocar no botão de alarme, mas os únicos alarmados eram eles os dois, presos no interior daquele elevador metálico que não os conduzia a lado nenhum. Estavam fechados ali, e sabia-se lá quando alguém os viria libertar de tamanho cativeiro em domingo de Páscoa.
- Não mora aqui?, perguntou ele, e acrescentou: Nunca a vi por aqui.
- Não moro, não. Venho visitar a minha tia-avó que mora no décimo terceiro, num daqueles ateliers, sabe?
- Claro que sei. Você é então família da Dona Felícia? Conheço-a bem, mas não a tenho visto ultimamente.
- Pois, está acamada com um violento ataque de reumático. Já tem mais de setenta anos e não quer sair daqui, diz que “é a sua casa”. Por isso a venho visitar. Mas não sabe de nada, é surpresa.
Queria aparentar um ar despreocupado, mas nada disso transparecia quer da expressão do rosto, quer da agitação do corpo. Estava nervosa. Via-se. Sentia-se.
- Não se pode fazer mais nada?
- Temo que não, disse ele. Esperar que alguém passe nas escadas, ou ouça o pedido de socorro do alarme. Mas não se ouve nada nas escadas, não vale a pena tocar mais. Ninguém nos vai ouvir… Por enquanto.
Ela tinha cerca de trinta e cinco, quarenta anos, vestia de forma discreta, secretária de administração, professora, algo assim… Solteira, sem aliança, talvez divorciada. Bonita? Vistosa, mas atraente. Ele olhava-a de alto a baixo, o cabelo escuro, próximo do preto, o rosto quase sem pinturas, um leve toque de batom nos lábios, uma camisa creme com os botões de cima displicentemente abertos, até se descobrirem os seios, ia jurar que sem soutien, um casaco castanho escuro por cima dos ombros, uma saia rodada da mesma cor, as pernas torneadas e tostadas pelo sol ou por drogas de farmácia, uns bonitos sapatos de saltos altos.
Ela sentiu-se olhada, e perguntou:
- Mora aqui?
- Há quarenta anos, certos. Os meus pais inauguraram o prédio, eu apareci dez anos depois. Vivo aqui desde sempre…
- Com os pais?
- Não, agora sozinho. Os meus pais já morreram. Herdei a casa. Casei, divorciei. Sem filhos. Chamo-me Ernesto…
- A importância de ser Ernesto… e sorriu. Um sorriso bonito, pensou ele, e ela:
- Eu chamo-me Lara…
- O tão conhecido “tema de Lara”… Do “Doutor Jivago”, a minha mãe adorava-o. A conversa levou-os a esquecer o elevador durante uma fracção de minutos, mas a angústia instalara-se. Isto está preto. Não vamos desesperar, o pior que pode acontecer são os nervos, não vamos entrar em histerias, o que é preciso é manter a calma… Levou a mão ao bolso e retirou um maço de tabaco. Ela colocou a mão sobre a mão dele…
- Não pode fumar agora… O que me preocupa mais é o facto deste elevador ser tão pouco ventilado. Só entra ar pelas frestas… Não temos ar respirável por muito tempo…
Ele voltou a colocar o maço no bolso do casaco. Verdade, a falta de ar… Agora que ela falara disso, lembrou-se que era dado a ataques de falta de ar, frequentes, sobretudo nas mudanças de estação, entre a Primavera e o Verão, entre o Outono e Inverno, rinite alérgica, por vezes quase parecia asfixiar, a tosse seca invadia-o, tinha de correr ao centro de enfermagem e levar uma injecção de cortisona, para acalmar, para a garganta perder o inchaço, para o ar circular, para os pulmões se abrirem ao ar limpo… A falta de ar era um problema, realmente. Os médicos diziam-lhe que grande parte do problema era psicológico, era o pavor que desbloqueava a crise aguda, era a ideia da falta de ar que criava a falta de ar…
O ideal seria pensar noutra coisa. Naquela bonita mulher, ali a seu lado. Ele começava a suar. Não se dava bem em lugares fechados. Tirou o casaco (Dá-me licença?”, “Faz favor, está calor!”), dobrou-o e colocou-o a um canto do elevador.
- Esqueci o telemóvel em casa, senão…, disse ele.
- Nunca uso, não preciso, disse Lara.
Silêncio pesado entre ambos.
Ela perguntou então:
- Que faz na vida quando não está fechado num elevador?
- Jornalista, escrevo, sobre a cidade. Pequenas notas sobre o dia a dia na cidade.
- Sobre lisboetas presos em elevadores?
- Também. Se houver uma boa história associada…
- Amanhã “poderia” ter uma boa história para contar sobre esta paragem de elevador…
- Quem sabe. Mas gostaria mesmo de não ter nada para contar sobre esta paragem de elevador entre o terceiro e o quarto …
Ela olhou para ele com um olhar trocista, ou seria provocador?
- Preferia ter chegado ao quarto?
- Muito melhor certamente, respondeu e sorriu. E você que faz na vida quando não vem visitar a tia-avó?
- Hum, não acredita, se eu lhe disser: adivinhação.
- Feiticeira? A bruxa da “Branca de Neve”?
- Chamemos-lhe vidente.
- Estamos salvos então. A que horas chegará o porteiro, ou alguém que nos tire daqui?
- Hummm, não se deve brincar com coisas sérias. Pode dar mau resultado…
- Mas não prevê nada?
- Sim, estou descansada, nada de mau me trará esta paragem. Será uma fracção de tempo onde aparentemente nada acontecerá… Cada um seguirá o seu rumo, o seu destino.
Olhou fixamente Ernesto. Despiu o casaco castanho, que dobrou e colocou sobre o casaco do jornalista. Abriu mais um botão da blusa, e os seios pareciam soltar-se igualmente. A pele era ali clara, leitosa, dir-se-ia macia. Os olhos de Ernesto denunciavam a direcção. Não sei estar assim, à espera, sem nada que fazer… Há sempre tanto que fazer, disse ela, e aproximou-se dele. Ele olhou-a nos olhos, desceu até ao peito, ela aproximou-se mais, ele abraçou-a, ela deixou-se abraçar, ele beijou-a, ela abriu a boca para o deixar entrar, ele desceu a boca pelo pescoço, a língua percorreu os ombros desnudados, a camisa meia caída, os seios libertos, o mamilo na boca, duro, a língua que o rodeia com lassidão, ela a descer as mãos pelos quadris dele, a acariciar as ancas, a virar súbito de percurso e seguir até às virilhas, a mão a agarrar-lhe o sexo, ele a sentir o seu desejo e o desejo dela, ambos num mesmo abraço, a mão dela que sobe até ao cinto, que destramente o abre, que corre o fecho “éclair“, a mão dele que procura a bainha da saia, que levanta até à cintura, para depois descer novamente em busca de um calor húmido mais intenso, por onde abre caminho e penetra, escorregando lentamente para o interior desse poço, onde o desejo os enrola. No chão do elevador, corpos, mãos, sexos, o arfar da paixão que se satisfaz, a sofreguidão dos amantes, as bocas coladas sorvendo-se um ao outro, o ar que se inspira, o ar que falta, a sensação de asfixia que se instala, a necessidade de gritar, de pedir auxilio, socorro, a cabeça que volteia, sem tino, a garganta apertada, o ar que falta, as portas fechadas, as unhas que tentam rasgar superfícies metálicas intransponíveis, os pés a bater desordenados na porta metálica, o silêncio em redor, as unhas a estalarem em sangue, arranhando as paredes esverdeadas, a garganta a sufocar, o ar cada vez mais pesado, já sem o brilho da vida, apenas com o peso da morte.
Ao fim da noite, o senhor Augusto, enfim regressado, percebeu que o elevador estava parado entre o terceiro e o quarto andar. Subiu lentamente a pé até ao terceiro, bateu na metade da porta descoberta e perguntou:
- Está aí alguém?
Ninguém lhe respondeu, mas ele ia jurar que vira vultos estendidos no chão. Desceu a sua casa para ir buscar a chave que permite destravar a porta do elevador, e assim o fez. Descobriu, enroscado no chão, o corpo sem vida de Ernesto, o inquilino do quinto direito. Tinha a roupa em desalinho, o casaco dobrado a um canto, a camisa uma rodilha à volta das costas, as calças abertas, meio descidas, um sapato descalço, os olhos desmesuradamente fora das órbitas, a boca escancarada num esgar que deixou o senhor Augusto impressionado.
No dia seguinte, a Dona Felícia, dobrada sobre o seu reumatismo crónico, perguntou-lhe o que havia acontecido no elevador no domingo de Páscoa. Ele contou-lhe tudo, com requintes de masoquismo nas descrições mais dramáticas e acrescentou que vira sair do elevador uma borboleta de asas negras quando abrira a porta.
- Coitado do senhor Ernesto. Tão novo. E eu que brincava tanto com ele quando o vai no elevador. “A importância de ser Ernesto”?
A Dona Felícia fora toda a vida bibliotecária e continuava a gostar muito de Oscar Wilde.
4 comentários:
Pela parte que me toca, agradeço a ideia que me parece magnífica! :)
Fico desde já muito curiosa em relação a todos os contos escritos tendo como mote o espaço fechado de um elevador. E gostaria de colaborar, tal como sugere.
Gostei imenso de ler o seu excelente conto de desenlace fatídico!
Muito obrigada por esta ideia que me parece muito estimulante e produtiva!
Beijinhos para ambos :)
Já agora, não se esqueçam de visitar o meu novo blogue Emma 49:
www.emma49.blogspot.com
Se o filme "The Lift", obscura obra dos anos 80, de produção holandesa, tivesse metade da definição "escatológica" como a que foi apresentada, seria, sem dúvida, uma obra prima.
No entanto, o que se há-de dizer? Para um miúdo como eu, de 8 aninhos, que a viu, provavelmente até seria.
Obrigado pela recordação, se bem que saiba que este texto nada tem a ver com o que é proposto. No entanto, as memórias funcionam por caminhos travessos.
Abraço.
Olá Lauro!
[Excelente ideia/iniciativa...........]
(assim eu encontre uns minutos livres de trabalho - não está fácil - e tento participar também!)
abraço
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