sábado, setembro 23, 2006

RUY BELO

«Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me.
Suicido-me nas palavras.»
NA MORTE DE MARILYN

Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quern a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse a governanta não me acorde amanha
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou

Ruy Belo, in “Nau de Corvos”,
“Tranporte do Tempo”, Lisboa, 1973

Nomeei-te no meio dos meus sonhos

chamei por ti na minha solidão

troquei o céu azul pelos teus olhos

e o meu sólido chão pelo teu amor
poemas de Ruy Belo; foto de Teresa Belo

1 comentário:

Hugo disse...

É bom ver Ruy Belo, um poeta por vezes esquecido e ignorado por muitos, a ser recordado. Alguns dos seus poemas deviam ser de leitura obrigatórias nas escolas. Acho eu.