Acabei de ler “Extensão do Domínio da Luta” para que me haviam alertado. Parece que o autor é uma das coqueluches do momento, não só em França, mas um pouco por todo o lado. Devo dizer que este seu romance não me apaixonou, apesar de lhe reconhecer muitas qualidades, e de muitos o consideraram o melhor do escritor até à data. É um bom sintoma do momento, mas nem todos os sintomas do momento são, só por isso, obras de excepção, ainda que possam ser referências de um tempo. Um tempo desencantado, perdido, sem sentimentos, sem emoções, vulgar, dominado pelas tecnologias e o desprezo pela humanidade. A humanidade e mais ainda a Humanidade. Misógino, reaccionário, com laivos óbvios de racista, de uma violência comportamental desmedida, este Houellebecq tem tanto de qualidade literária como de irritante pelo seu evidente desprezo pela raça humana. Mas vou ler o seu último romance "La Possibilité d'une île". Já me contaram que Daniel, um comediante-solista de sucesso, personagem principal e narrador deste quarto romance de Michel Houellebecq, tem piadas "dignas de antologia". Exemplo: Alguém pergunta: "Como chama àquela gordura à volta da vagina?" e alguém responde: "Mulher."
Há quem goste do género.
Mas escreve bem, não há duvida. Tem ideias originais. Três pequenos exemplos:
NÃO GOSTO DE GENTE
(…)
Sou forçado a virar-me para a paisagem para não ter de olhar para ele. É curioso, porque agora parece-me que o sol se transformou numa bola de fogo, como pela ocasião da minha viagem de ida. Mas estava tranquilo, podia até haver cinco ou seis bolas de fogo vermelhas que em nada iam modificar o decurso da minha meditação.
Não gosto de gente. Decididamente não gosto. A sociedade na qual vivo deprime-me; a publicidade dá-me náuseas; a informática provoca-me vómitos. Todo o meu trabalho de informático consiste em multiplicar referências, composições, aos critérios de decisão nacional. Não encontro qualquer sentido em tudo isto. É, francamente, bastante negativo; um estorvo inútil para os neurónios. Esta gente precisa de tudo, excepto de informações suplementares.
De volta a Paris, sempre sinistra. Os edifícios leprosos da ponte Cardinet por detrás dos quais imaginamos inevitavelmente os reformados a agonizarem ao lado do gato poucette que devora metade da pensão com croquetes da Friskies. Este tipo de estruturas metálicas sobrepõe-se até à indecência para formar um entrelaçado de catenárias. E a publicidade outra vez, inevitável, repugnante e confusa. “Um espectáculo alegre e diferente”. Uma bagatela. Uma bagatela sem valor.
LIBERALISMO ECONÓMICO VS LIBERALISMO SEXUAL
(…)
Estávamos no parque de estacionamento da direcção departamental da agricultura; os candeeiros espalhavam um halo amarelado bastante desagradável; a atmosfera estava fria e húmida. Ele disse: “Sabes, já fiz as minhas contas, posso pagar uma puta por semana; sábado à noite é um dia bom. É o que vou acabar por fazer. Embora saiba que alguns homens podem ter exactamente o mesmo que eu sem terem de pagar por isso, e com amor. Prefiro experimentar; agora quero experimentar”.
Não consegui, obviamente, responder-lhe nada; mas fui para o hotel bastante pensativo. Decididamente, pensava eu, nas nossas sociedades, o sexo representa o belo, segundo um sistema de diferenciação, completamente independente do dinheiro; comporta-se como um sistema de diferenciação impiedoso. Os efeitos destes dois sistemas são pelo menos estritamente equivalentes. Tal como o liberalismo económico sem entrave e por razões análogas, o liberalismo sexual produz os fenómenos de pauperização absoluta. Alguns fazem amor todos os dias; outros, cinco ou seis vezes na vida inteira, ou então nunca. Alguns fazem amor com meia dúzia de mulheres; outros com nenhuma. E aquilo a que chamamos a “lei do mercado”. No sistema económico onde o licenciamento é proibido, cada um consegue de uma maneira ou de outra encontrar o seu lugar. Num sistema sexual onde o adultério é proibido, ninguém consegue, de uma maneira ou de outra, encontrar a sua companhia na cama. Num sistema económico perfeitamente liberal, alguns acumulam fortunas consideráveis; outros improdutivos estão no desemprego e na miséria. Num sistema sexual perfeitamente liberal, alguns têm uma vida exótica e excitante; outros estão reduzidos à masturbação e à solidão. O liberalismo económico é uma extensão do domínio da luta, a sua extensão a todas as idades da vida e a todas as classes da sociedade. Do mesmo modo que o liberalismo sexual é a extensão do domínio da luta, a sua extensão acontece em todas as idades da vida e a todas as classes da sociedade. No plano económico, Raphaél Tisserand, pertence à classe dos vencedores; no plano sexual, à dos vencidos. Há quem ganhe em ambos os lados, há também quem perca nos dois. As empresas disputam entre si alguns jovens licenciados; as mulheres disputam alguns jovens homens; os homens disputam algumas mulheres; o problema e a agitação são consideráveis.
VERONIQUE
(…)
Na noite da morte de Leverrier, o pai tinha-lhe ligado para o emprego; como ele não estava, foi a Veronique que falou com ele. A mensagem consistia em retribuir-lhe a chamada com a máxima urgência; recado que se esqueceu de transmitir. Leverrier chegou a casa às seis horas da tarde sem ter tido conhecimento do recado e disparou um tiro na cabeça. Foi Veronique que me contou isto na noite em que se soube da morte na Assembleia Nacional; ela acrescentou que, passo a citar, “a presença dele a incomodava um pouco”. Ainda pensei que ela ficasse com remorsos ou uma espécie de culpabilidade, mas não: no dia seguinte já tinha esquecido o acontecimento.
Veronique andava a fazer psicanálise. Lamento tê-la conhecido. No geral, não há nada a dizer sobre mulheres sujeitas a estas sessões. Uma mulher entregue às mãos de psicanalistas fica definitivamente imprópria para uso, o que vim a constatar inúmeras vezes. Este fenómeno não deve ser considerado como um efeito secundário da psicanálise, mas sim como a causa principal. Sobre o pretexto da reconstrução do eu, os psicanalistas procedem na verdade a uma escandalosa destruição do ser humano. Inocência, generosidade, pureza... tudo isto é rapidamente triturado por entre essas mãos grosseiras. Os psicanalistas, regaladamente remunerados, pretensiosos e estúpidos, exterminam de modo conclusivo toda a aptidão para o amor nos seus pacientes, tanto mental como física; comportam-se com efeito como verdadeiros inimigos da humanidade. Impiedosa escola de egoísmo, a psicanálise está apetrechada com o maior dos cinismos à conta das corajosas raparigas miseráveis para as transformar em ignóbeis parvalhonas de egocentrismo delirante, que pode apenas suscitar a mais profunda agonia. Não se deve confiar, qualquer que seja o caso, numa mulher que tenha passado pelas mãos de um psicanalista. A mesquinhez, o egoísmo, o disparate arrogante, a completa falta de sentido moral, a incapacidade crónica de amar: eis o retrato exaustivo de uma mulher “psicanalizada”.
Veronique correspondia, diga-se, traço por traço a esta descrição. Amei-a com todas as minhas forças, o que representa em si muito amor. Foi uma pura perda, agora sei-o bem; se lhe tivesse partido os dois braços mais me valia. Ela sempre teve, sem dúvida, como todos os depressivos, a predisposição para o egoísmo e o coração de pedra; mas a psicanálise transformou-a de maneira irreversível num verdadeiro excremento; sem íntimo e consciência - um detrito envolto em folha de celofane. Lembro-me de que ela tinha um quadro branco onde apontava coisas vulgares do género “ervilhas” ou “pressing”. Um dia à noite tendo vindo de uma sessão, apontou esta frase de Lacan: “Quanto mais ignóbil, melhor”. Esbocei um sorriso; só podia mesmo sorrir. Esta frase não era ainda, nesta altura, mais do que um princípio; mas ela iria dissecá-la, ponto por ponto.
Numa noite, aproveitando a ausência de Veronique, engoli um frasco de Largactyl. Tomado pelo pânico, chamei imediatamente os bombeiros. Tiveram de me levar às urgências para uma lavagem ao estômago, etc. Enfim, estive à beira da ruptura. A grande parva (nem sei como a poderia qualificar) nem sequer me foi visitar. De regresso a “casa”, se assim lhe posso chamar, insultou-me de egoísta lastimoso, tais as palavras que encontrou para me dar as boas-vindas; a sua interpretação do acontecimento era que lhe tinha engendrado preocupações suplementares, a ela «que já tinha tanto que se preocupar com os problemas de trabalho». A parvalhona chegou mesmo a dizer-me que tudo aquilo tinha sido uma “chantagem emocional”. Sempre que me lembro lamento não lhe ter golpeado os ovários. Enfim, faz parte do passado.
In “Extensão do Domínio da Luta”, de Michel Houellebecq (Ed. Quasi).
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3 comentários:
Querido Lauro António
Venho fazer um pedido que não sei se é exequível e se não lhe dará muito trabalho. Não tenho qualquer problema em aceitar "nãos".
Gostava de fazer um post sobre um filme (a sua relação comigo) e não sei o nome do realizador nem o da artista principal: "La fête de Babette"
Ajuda-me? E o nome da personagem daquele parente rico, político. +/- a época da acção, (penso que era nos princípios do sécXX) e o país onde se passava.
Estou a abusar não é. Dê-me a nega.
Beijinho
Minha querida Marta, aqui vai o que me pediu - um link onde pode descobrir quase tudo: http://us.imdb.com/title/tt0092603/
Quase tudo, excepto a excelência desse filme magnífico, que é uma guloseima para olhos e ouvidos e também para o espírito. Eu que gosto de cozinhar (e comer!), adoro este filme.
Aqui vai o essencial:
Título original: Babettes gæstebud (1987)
Realizador: Gabriel Axel
Argumento: Gabriel Axel , segundo romance de Karen Blixen
Intérpretes: Stéphane Audran .... Babette Harsant
Birgitte Federspiel .... Old Martina
Bodil Kjer .... Old Philippa
Jarl Kulle .... Old Lorens Lowenhielm
Jean-Philippe Lafont .... Achille Papin
Um beijo e pergunte sempre que quiser.
Querido Lauro António
Nem sei como lhe hei-de agradecer, principalmente a rapidez com que me respondeu.
Gostei imenso do filme. Poderia ser, eventualmente, o filme da minha vida, se me obrigássem a escolher. Revi-me em tudo o que toca à filosofia do cozinhar.
Vamos lá a ver se consigo esgalhar alguma coisa de jeito.
Beijinho muito agradecido.
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