segunda-feira, junho 11, 2007

A CONSTRUÇÃO DO OLHAR, I


Uma imagem constroi-se, todos o sabem. Há mesmo quem se refira a uma arquitectura da imagem. "Uma imagem pode ser construída, possuindo uma arquitectura que se revela pelas linhas horizontais, verticais, oblíquas e diagonais que a sustenta." (1) Esse suporte arquitectural, esse esqueleto invisível, muitas vezes, senão mesmo a maioria delas, organizado de forma instintiva pelo autor, é um dos processos que ele tem à mão para conferir um significado, um sentido, à imagem.
A este trabalho de construção da imagem, corresponde depois, por parte do seu espectador, um outro trabalho, que se pode aqui designar como de "construção do olhar" para através desse olhar se poder mentalmente "dês_construir" a imagem, descodificá-la, analisá-la, criticá-la ou mesmo deixar-se levar pela sua sedução.
"Ler uma imagem" é, de certa forma, compreender como ela foi concebida, como ela foi orientada desde a sua génese e com que intenções. É procurar acompanhar o processo de criação, desvendar o sentido desse processo, mas é mais ainda. Cada novo olhar é um olhar novo, e por isso ler uma imagem é também recriá-la segundo o nosso olhar.
Toda a obra de arte é diferente porque representa um sentir e um olhar singulares. Que lhe são oferecidos pela complexidade da personalidade de quem a realiza. Mas cada olhar sobre essa obra é igualmente um olhar original e irrepetível. Cada espectador é um espectador diferente, como cada leitor de um livro é um leitor diferente. Ninguém realiza a mesma obra de forma semelhante. Por exemplo, de um mesmo romance é impossível extrair duas adaptações iguais, dirigidas por autores diferentes. Mas também ninguém interpreta (lê) da mesma forma um romance ou um filme. Cada olhar é um olhar com história pessoal, sensibilidade diversa, experiências culturais e estéticas diferentes, que irão interferir, moldar, essa leitura.
A mais simples fotografia é uma imagem construída: basta enquadrar para se intervir no motivo que está a nossa frente. Quando temos uma paisagem perante nós, e optamos por enquadrar uma árvore, estamos a isolar um tema, logo a influenciar a visão de quem irá futuramente ver essa foto. Mas também a distância a que nos colocamos da árvore é outra forma de influenciar o olhar, bem assim como o facto de colocarmos a árvore mais para a direita, para a esquerda ou no centro da foto. Cada opção, representa um olhar distinto. Uma opção de sentido. Se escolhemos muito céu ou muito terra, é outro tipo de escolha, deliberada ou inconsciente, que irá definir um olhar - o de quem foca - e posteriormente influenciar a visão de quem observa a fotografia.


No cinema, que são 24 fotogramas por segundo, ou no vídeo que são 25 frames por segundo, tudo se passa de forma idêntica, mas ainda mais acentuada, dado existirem outras maneiras de sugestionar, de manipular o espectador, para lá das já referidas. Basta escolher filmar um plano fixo ou fazer um movimento. Um movimento, que pode ser uma aproximação ou um afastamento do tema, ou uma deslocação “a varrer” da paisagem da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita. Tudo tem o seu significado, quer se saiba ou não que se está a mexer com matéria muita susceptível em termos de significado.
A ignorância da lei, também aqui não é desculpa. Ainda que haja diferentes graus de responsabilização.
Nenhum gesto humano é inocente. Fotografar o casamento da filha ou o baptizado do sobrinho, pode parecer uma actividade sem segundos sentidos, mas eles estão todos lá, ainda que de forma muito incipiente. Agora imagine-se uma outra situação. Numa viagem de turismo, um par de namorados quer ser fotografado em Londres com o Tamisa ao fundo. Pede a um inglês que vai a passar para fazer o favor de carregar no botão, depois de enquadrar. O inglês limita-se a ser o mais eficaz possível, e muitas vezes corta as cabeças, degolando logo ali o promissor futuro daquele provável idílio. Ou então coloca o par tão à direita ou à esquerda do enquadramento que se arrisca a ficar só o bem amado Tamisa no centro da fotografia. Mas não importa. O que gostaria de referir é que esta fotografia é uma obra desinteressada (quem fotografa não está ligado emocionalmente ao tema), mas mesmo assim há quem esteja e vá influir no resultado final.
Para já o casal de namorados escolheu o Tamisa como fundo para a foto - referência geográfica, é certo, mas também referência sentimental. Depois, irá certamente colocar-se em frente à câmara de uma determinada forma, estudada - enlaçados, beijando-se, olhando-se olhos nos olhos, etc. Quer dizer: o tema é encenado, antes de ser fotografado. Temos assim, que de uma forma muito rápida e sucinta, uma fotografia, ou um filme, podem ser manipulados em frente da câmara - no que chamamos encenação do motivo, mise-en-scéne, dizem os franceses com inteira propriedade - e manipulados também na própria câmara de fotografar ou filmar ou gravar.
Não há fotografias inocentes. Nem filmes. Nem vídeos. Todos eles, de uma forma ou de outra, manipulam a realidade.
E estamos ainda no momento de construir a fotografia (ou o filme). A simples passagem pelo laboratório não é inocente, ainda que por vezes tudo se passe no domínio do puro arbítrio. Mas, volte-se à foto do casal de namorados em Londres, com o Tamisa por cenário. Se o laboratório escurecer a foto, adensando as nuvens, conferirá à foto um dramatismo que certamente os seus protagonistas não pretendiam. Se o tempo de revelação for menor, a cor sairá muito mais clara, senão mesmo esbranquiçada. Num laboratório industrial de uma qualquer casa de fotografia, muitas vezes estes efeitos, quase sempre indesejáveis, são fortuitos. Num laboratório especializado para revelação de película de cinema, nada é deixado ao acaso, desde a etalonagem que procura criar uma continuidade cromática, até aos efeitos visuais mais sofisticados.
Vemos assim que muitas são as maneiras por que se constrói a imagem. Essa construção da imagem é uma das funções do artista e da arte. Quer ele seja pintor, fotógrafo, realizador ou desenhador de banda desenhada. E se muitas são as formas de construir a imagem, de erguer a obra, muitas serão também as formas como ela pode ser usufruída pelo espectador que a ela tem aceso. Falamos já do olhar de quem a vê.

Fotos: "Citizen Kane", de Orson Welles


(continua)

1 comentário:

Ana Paula Sena disse...

Uma óptima reflexão sobre a construção do olhar, repleta de dados interessantes.
De facto, esta construção de toda a imagem, mais ou menos premeditada, envolve o imenso fascínio da possibilidade, entre outras, da criação artística. Por outro lado, parece cada vez mais difícil e irreal a espontaneidade na imagem...
:) Reflexões acerca das suas reflexões...