sexta-feira, junho 22, 2007

O CAFÉ COMO TERTÚLIA


O café, enquanto local, e não só chávena, e não só bebida, refere duas realidades, ambas de agradável evocação: a bica, que se toma, e a tertúlia de amigos com quem se fala, enquanto se bebe a primeira.
Muitos escritores têm relembrado, em saborosos textos, tertúlias célebres ao longo das décadas. Não vem ao caso historiar, mas Lisboa esteve bem provida destes locais de referência obrigatória, e não há certamente quem ignore o papel do Martinho da Arcada, da Brasileira do Chiado, do Nicola, do Café Gelo, do Monte Carlo, do Ribadouro, de tantos e tantos outros. Escritores e pintores deixaram marca num local, actores e encenadores eram habituais noutros, os cinéfilos reuniam-se sobretudo no antigo VáVá, mesas pegadas com cançonetistas e baladistas dos idos de 60, e, antes do 25 de Abril, políticos e "gente do reviralho", como então eram chamados os opositores ao regime, apareciam um pouco por todo o lado, acumulando funções na maioria dos casos.
Os cafés eram locais de encontro, logo depois do almoço, e antes de se entrar no trabalho, ou a seguir ao jantar, prolongando-se então a cavaqueira pela noite dentro, até que as portas do café fechassem, e muitas vezes até para lá do seu encerramento. Nunca antes das duas ou três da matina. Muitos artigos se escreveram, muitos romances e poemas se pensaram, muitos espectáculos se montaram, muitos filmes se idealizaram, muitos quadros adquiriram ali cores e formas, muitos governos cairam e muitos outros se formaram à mesa de um café de Lisboa, do Porto, de qualquer cidade do interior de Portugal.
Não havia ainda televisão em doses industriais, para agarrar audiências pelos processos mais singulares; não havia as drogas pesadas a influir negativamente nos horários dos donos dos cafés, que se querem ver livres de tão ingratos clientes, e fecham muito mais cedo; não havia a ameaça da violência urbana que apesar de tudo pesa sobre o comportamento de muita gente que prefere a segurança do lar à incerteza das ruas; nem havia, sobretudo, estes mercantis balcões de agora, onde as pessoas tomam apressadamente café, enquanto outras comem sofregamente uma sopa e pastelinhos de bacalhau, bifanas ou mesmo "pratinhos" de feijoada à transmontana, antes de regressarem ao seu balcão no centro comercial, ou ao escritório.
Dos meus tempos de Universidade, relembro cafés inesquecíveis. Desde logo, o bar da Faculdade de Letras, onde se estudava a vida, quando se faltava às aulas, para se discutir um filme, uma peça de teatro ou um livro, onde se tentava mudar o mundo à medida dos nossos sonhos, ou simplesmente se namorava uma colega, quando o tempo não estava de molde a poder-se sair com ela até ao verde do estádio universitário.
Depois, à tarde e à noite, estudavam-se as matérias, em mesas de outros cafés, por apontamentos emprestados por quem assistira ao verbo do Professor. Por mim, que morava então em casa de meus pais, na Av. EUA, os mais utilizados eram o Nova Iorque, hoje transformado em banco, e a Grãfina. Mas muitas noites as passava também entre o Monte Carlo e o Monumental, espreitando actores e actrizes com quem se procurava meter conversa, ou sendo lentamente prefilhado por tertúlias de escritores, jornalistas, pintores e excentricos avulso.
Pouco a pouco, fui subindo avenida acima, até ao VáVá, que então tinha bilhares e cave, e não era ainda metade banco e metade pastelaria. Ali se reunia o grupo de cinéfilos, que observava de longe, e o dos cantores, que ouvia na rádio e muito pouco na tv estatal. Com breves incursões pela Suprema, pela Sul-América e pelo Luanda, adoptei o Vává como segunda casa, ali fiz amizades e vi partir amigos, ali conheci amores e desamores, ali escrevi e li, ali pensei guiões e filmes, dali parti com equipas de filmagem para a serra da Estrela, para Sintra, para o Alentejo, ali filmei mesmo uma sequência de um deles, ali vi rodar alguns outros, ali me despedi do 24 e ali saudei o 25, há quem diga que ele é a minha sala de jantar (quanto muito seria a de almoçar, quando não está em obras), e o meu escritório.
O Vává foi mudando com os anos, deixando sempre saudades do velho Vává, de maples de cabedal castanho encostados às paredes, de luz difusa e discreta, de acolhedor conforto. Ali conheci o Manuel Guimarães, que seria meu padrinho de casamento e padrinho cinematográfico, cedendo-me umas bobines de película virgem do seu derradeiro "Cântico Final" para eu realizar uma das minhas primeiras curtas metragens; ali conheci melhor o Manuel de Azevedo, o Villas-Boas, o Rafael, o Pinto Bandeira, o Manuel Costa e Silva, o Sam, o Pedro Bandeira Freire, o João Maria Tudela, o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho, o Carlos Mendes, o Fernando Silva, o Mário Damas Nunes, a Acácia Thiele, o Camacho Costa; ali continuo a encontrar a Mary, a Isabel Lajinhas, a Manuela Pinheiro, o Fanan, o Mário, o Rangel, e tantos outros, alguns deles agora já acompanhados das respetivas e respectivos, com a prole a gatinhar por entre mesas e cadeiras, ganhando já, se calhar, o mesmo "vício" de ali se encontrarem no futuro; por ali passam também personagens bizonhas de tristes recordações, ali ficam suspensas memórias efémeras ou persistentes, ali se discute o presente do cinema, do xadrês, da televisão e da canção portuguêses, ali se dabate o futuro da TAP, ali se comentam, à segunda-feira, os "roubos" dos árbitros, invariavelmente a prejudicarem o Sporting e a beneficiarem quem se sabe, por lá passa ja feito homem o Frederico, que antigamente vinha do colégio, e aqui tomava a Cola e comia o bolo da praxe,e que agora volta para a sua casa, ali continuo a descer com a Eduarda para tomar o café, antes de ir para o cinema ou de regressar a casa, para um serão televisivo.
Os cafés de Lisboa tendem a desaparecer, e os que restam são já sombras de um passado que procuramos apesar de tudo manter vivo, contra a arremetida das leis inexoráveis do comércio, da cobiça dos bancos, do poder da televisão, da proliferação de bares e discotecas. São alias, os bares e as discotecas que, de certa forma, vieram a ocupar o lugar desempenhado pelos cafés, reunindo tertúlias de amigos, agora ao som da música de momento. Até esta tranferência é significativa da mudança dos tempos. Em lugar do café, bebe-se wishky ou vodka; em vez do esperguiçar do pensamento em redor da bica bem quente, gritam-se frases rápidas por entre dois compassos mais trepidantes. Nem melhor, nem pior.

Restam-nos, igualmente, as tertúlias recuperadas por tanto lado (como sabem também no Vává) e as novas tertúlias inventadas na blogosfera. "Tudo é feito de mudança", como dizia o poeta. "A nostalgia não é deste mundo", como explicava Signoret. E as bicas bem quentes continuam a incendiar a imaginação dos poetas.

MARIA DO CEU GUERRA

dia 27

no VÁVÁ.DIANDO

Não esquecer: a próxima tertúlia é dia 27 de Junho, jantar às 20,00, com Maria do Céu Guerra.

NOTA: Durante os últimos dias foram surgindo aqui textos que previamente deixei prontos para postar, mas eu andei por terras de Vera Cruz, pelo que não respondi a ninguém. A partir de dia 23 voltarei (se os aviões e as greves de controladores nos aeroportos brasileiros o permitiorem). Beijos e abraços, conforme os casos.

3 comentários:

Ouriço disse...

Boa viagem. Bom regresso.

Bandida disse...

cá estamos. lá estaremos.

bom regresso.

beijossssssssss

B.
______________

vague disse...

E não havia a net, que é uma forma de conviver, cada um no seu canto.

Q pode ser um ponto de partida, como nas suas tertúlias, que de uma forma tão amigável promove.

Hum, continuo a achar q isto da net e dos cafés de sempre seria po fundo para um filme simpático e actual, com alguma paixão de antigamente pelo meio sem ser demasiado moderno, entende?

Até.