Gosto de ler biografias, mas prefiro-lhes ainda os livros de memórias. Por quê? A biografia contada pelo próprio é duplamente interessante. Porque, além de ser uma biografia, ou se aproximar disso, relatando aspectos relevantes de uma vida, momentos críticos, situações que merecem, ser recordadas, é ainda particularmente interessante porque revela o que o autor pensa de si próprio e o que quer que os outros pensem dele. Nada numa "memória" é simples, linear, directo. Por que se escolhe para falar de um episódio e se esquece outro?, por que se recorda uma frase e se abafa outra?, porque se relata uma atitude tomada e se não fala de outra? Tudo tem a sua razão de ser. As memórias são selectivas, por muito imparciais que os seus “donos” procurem, honesta e deliberadamente, ser. As "memórias" remetem sempre para uma "pose". É essa pose que me interessa mais. É a faceta mais reveladora de uma personalidade. A pose no retrato. A pose na escrita. A forma como queremos que os outros nos vejam e nos julguem. Muito interessante. Um dia, se tiver tempo, hei-de escrever um livro de "memórias".
Mas por agora refiro-me a um que acabei de ler, “Navegação Ponto por Ponto”, de Gore Vidal. Excelente escritor, excelente memorialista, cheio de um charme muito especial que muitas vezes só os gays sabem ter. Porque são um pouco mais exuberantes, porque tem normalmente uma língua viperina e uma "maldade" crítica sui generis. Estas memórias são para saborear ponto por ponto, sobretudo para quem gosta de cinema, teatro, literatura ou política norte americana.
Gore Vidal teve uma vida agitada e nesta obra aborda os mais variados temas e analisa com um olhar crítico, por vezes fatal, personalidades as mais diversas, desde Jacqueline Kennedy, Tennessee Williams, Eleonor Roosevelt, Orson Welles, Johnny Carson, Greta Garbo, Federico Fellini, Rudolf Nureyev, até Elia Kazan ou Francis Ford Coppola. Homossexual assumido, enfrenta a perca de um amigo (Howard Auster, o seu companheiro de sempre, o homem com quem viveu mais de cinquenta anos) com delicadeza, pudor e subtileza. Com uma escrita elegante, mas nunca de elogio fácil, oferece-nos um retrato brilhante de uma certa época e de uma certa sociedade norte-americana, envolta em humor, ironia e um toque pessoal inimitável. Um belíssimo livro de memórias.
Eduardo Pitta, numa resenha aparecida no “Público”, afirmou certeiramente: “Abarcando os mais de quarenta anos que o escritor viveu em Itália, país onde se fixou em 1963, o frequente recurso ao flashback ilumina algumas zonas de sombra. Num ápice, somos transportados da Roma do imediato pós-guerra para a descoberta precoce do cinema. É hilariante a passagem em que Vidal descreve o dia de 1929 (aos 4 anos, portanto) em que, sentado ao lado dos pais num cinema de St Louis, responde em voz alta à pergunta que uma actriz faz no ecrã... O ritmo mnemónico não poupa nada nem ninguém: o arrivismo da mãe, a zanga com Jackie Kennedy, os engates de rua (onde cabe a explicação do motivo que levou Paul Bowles a fugir para Marrocos), o rapto e assassínio de Aldo Moro em 1978 (mero pretexto para falar das Brigadas Vermelhas), a dor sentida pela morte de amigos muito queridos (entre outros: Susan Sontag, Saul Bellow e Barbara Epstein), o desprezo pela Junta que governa a América - Vidal refere sempre como Junta a tríade formada por Bush, Cheney e Rumsfeld -, as guerras monitorizadas pela CNN a partir dos anos 1990, e assim sucessivamente.”
6 comentários:
Está registada a sugestão...
Votos de uma boa semana!
meu querido amigo... hoje avivei também Eu a memória de tempos idos, envolto também de todo este nevoeiro... as memórias e lisboa. e porque o nada não surge efectivamente do nada!...hoje vou ligar-lhe para acertar o dito detalhe do 5º Império. saudades suas... maria.
Bons Dias
Só para referir a existência de um Blog dedicado ao cineasta Pedro Costa, passe por lá,
http://pedrocosta-heroi.blogspot.com/
Bem - Vindo e muitos cumprimentos
Cordialmente,
José Oliveira
Também gosto de ler "memórias", porque aprendemos bastante, sobre o autor, sobre o mundo e as pessoas que o rodeiam...
Além disso, há sempre algo que surge de novo, sobre determinado acontecimento ou pessoa, que nos deixa espantado...
Só li dois livros dele...
"Criação" e "Em directo do Calvário".
E gostei MESMO muito.
CSD
Dele ainda só li dois livros...
"Criação" e "Em directo do Calvário".
E gostei mesmo muito.
Espero não ficar por aqui.
CSd
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