Algumas (novas) leituras de férias
Nos últimos tempos a minha atenção em relações a livros anda como sempre dispersa. Li um excelente Ivo Andric (nascido em Travnik, 9 de Outubro de 1892; falecido em Belgrado, 13 de Março de 1975), “O Pátio Maldito” (e tenho na mesinha de cabeceira, entre duzentos outros volumes, “A Ponte Sobre o Drina” para atacar). É um Nobel (1961), nascido na Bósnia, romancista e poeta, com apetências políticas que se notam bem em quem o lê. “O Pátio Maldito” fala-nos de uma prisão na Istambul Otomana que tem uma péssima reputação, só comparável à sua realidade. Ali vai parar Frei Petar, um franciscano bósnio, preso por engano e que, de certa forma, é um alter ego do escritor. O que se descobre neste universo concentracionário onde sobrevivem, lado a lado, inocentes e assassinos do pior jaez, violadores, criminosos, conspiradores, adversários políticos e servidores de religiões caídas em desgraça, é de molde a dar uma ideia do que pensa Ivo Andric da condição humana, da possível ou improvável harmonia entre os homens, e da própria região dos Balcãs que tem servido de berço a tanto conflito. Diz Andric: “Se quiseres saber o que vale um Estado e o seu governo, e qual é o seu futuro, é só ver quantos homens honestos e inocentes há nas prisões desse país e quantos criminosos e delinquentes em liberdade”. A escrita de Andric é de uma soberba clareza e de intensidade invulgar. Edição Cavalo de Ferro.
Heinrich Himmler, o comandante das SS, da Gestapo e principal organizador do Holocausto, um dos baluartes do Nacional-Socialismo, pode considerar-se um dos maiores “monstros” que a Humanidade produziu. É verdade, mas quem se ficar por aí fica-se por uma semi-verdade. Esse tal Heinrich Himmler, que mandava “limpar” o “lixo polaco” (mas só os que não podiam trabalhar nas fábricas militares para glória do III Reich, desses era aproveitada a sua força de trabalho, e só depois seriam “limpos”), esse mesmo Heinrich Himmler tinha irmãos, Gebhard e Ernest, tinha mulher e amante, tinha pais e demais família, não descurava os deveres familiares, era amigo dos seus (raros) amigos, de uma lealdade férrea ao seu Fuher, e teve uma sobrinha-neta de nome Katrin Himmler (nascida em 1967), que resolveu investigar a vida da sua família, e escrever um livro sobre “Os Irmãos Himmler”. Quem aprecia livros de terror não deve perder, como também quem gosta de História. Quem se deleita com histórias de grandes famílias com moralidade final a condizer também não dará por mal empregue o seu tempo. Na verdade, a leitura desta obra é terrível: verificar que um homem, mesmo uma família, que acariciava os caracóis nas cabeças dos seus filhos e se sentava com eles à mesa na noite de Natal, que dava grandes passeios pelas montanhas aos domingos, era o mesmo que mandava gazear milhões de seres iguais a ele em campos de extermínio, é algo que ultrapassa o terror gótico. É muito edificativo ler um livro onde um homem igual a qualquer um de nós (enfim, com uma “pancada a mais”, é certo, mas quantos de nós não poderemos ter essa pancada?) se pode transformar num monstro. Os monstros não existem enquanto tal. Não nascem “monstros”. Fabricam-se em laboratórios sociais. Uma mezinha daqui, uma ideiazinha malsã dali, uma frustraçãozinha mais, um pozinho que anda no ar, e um homem vulgar passa a génio do crime.
Diz Katrin: “Sabia sobre Heinrich Himmler, o meu tio. Sabia sobre “o grande assassino do século”, responsável pela exterminação dos judeus na Europa e assassino de milhões de outras pessoas. Identifico-me com as vítimas e sinto vergonha do meu apelido e, de certa forma, uma inexplicável culpa. Mas sempre evitei olhar para a história da minha própria família.” Até ao dia em que resolveu investigar e publicar o que descobriu. Honra lhe seja feita. Com uma família daquelas, haver uma descendente com esta coragem é de sublinhar. Como de sublinhar é a má tradução e a péssima revisão da Edição Caleidoscópio. Era bom que a revissem numa segunda edição (a haver!).
Nunca fui um entusiasta de Yukio Mishima. Não me inspirava nenhuma confiança aquele japonês que se matou num harakiri em honra do seu Imperador, e que tinha um exército particular. Havia o belíssimo filme de Paul Schrader (“Mishima: A Life in Four Chapters”), mas nem esse me convencia muito. Há dias, a Eduarda começou a traduzir uma correspondência entre Mishima e um outro génio da literatura nipónica, Yasunary Kawabata, e deu-nos aos dois um “coup de foudre”. Desatámos a ler Mishima e Kawabata e empolgámo-nos. Eu continuo com reservas quanto ao militarismo e ao lado auto-destrutivo de Mishima, mas “Confissões de uma Máscara” é uma obra-prima (Edições Assírio & Alvim). Por isso comprei, de livraria em livraria, tudo o que havia para ler de Mishima em português e mandei vir mesmo da Amazon uma biografia, um ensaio de Marguerite Yourcenar, e não fiquei por Mishima, alonguei-me por Kawabata, deliciei-me com a elegância da escrita e a sensibilidade de “Terra de Neve” (Edições Dom Quixote) e o atordoante “A Casa das Belas Adormecidas” (Edições Assírio & Alvim). Enfim, refastelado com muita e muito boa literatura.
Como os génios andam por aí à solta, mais do que se julga, em conversa com o entusiástico embaixador brasileiro Lauro Moreira, veio à baila o duplo centenário de Machado de Assis que eu já não lia há muito (desde os meus tempos de universidade). A conversa foi de tal forma empolgante que o apetite foi instantâneo. Regressado a casa, rebusquei uma lindíssima edição antiga de “Quincas Borba” e não a larguei até agora. É uma escrita tremendamente inventiva, irónica, moderna na sua construção. Uma volta pelas livrarias trouxe-me mais algumas relíquias para saborear durante as noites (por isso há pouca produção por estes lados – desculpem os leitores, mas entre ler génios e escrever para o blogue, ainda por cima com o trabalho que tenho entre mãos, não há que hesitar). Mas sobre Mishima e Assis, voltaremos a falar, certamente.
Nunca fui um entusiasta de Yukio Mishima. Não me inspirava nenhuma confiança aquele japonês que se matou num harakiri em honra do seu Imperador, e que tinha um exército particular. Havia o belíssimo filme de Paul Schrader (“Mishima: A Life in Four Chapters”), mas nem esse me convencia muito. Há dias, a Eduarda começou a traduzir uma correspondência entre Mishima e um outro génio da literatura nipónica, Yasunary Kawabata, e deu-nos aos dois um “coup de foudre”. Desatámos a ler Mishima e Kawabata e empolgámo-nos. Eu continuo com reservas quanto ao militarismo e ao lado auto-destrutivo de Mishima, mas “Confissões de uma Máscara” é uma obra-prima (Edições Assírio & Alvim). Por isso comprei, de livraria em livraria, tudo o que havia para ler de Mishima em português e mandei vir mesmo da Amazon uma biografia, um ensaio de Marguerite Yourcenar, e não fiquei por Mishima, alonguei-me por Kawabata, deliciei-me com a elegância da escrita e a sensibilidade de “Terra de Neve” (Edições Dom Quixote) e o atordoante “A Casa das Belas Adormecidas” (Edições Assírio & Alvim). Enfim, refastelado com muita e muito boa literatura.
Como os génios andam por aí à solta, mais do que se julga, em conversa com o entusiástico embaixador brasileiro Lauro Moreira, veio à baila o duplo centenário de Machado de Assis que eu já não lia há muito (desde os meus tempos de universidade). A conversa foi de tal forma empolgante que o apetite foi instantâneo. Regressado a casa, rebusquei uma lindíssima edição antiga de “Quincas Borba” e não a larguei até agora. É uma escrita tremendamente inventiva, irónica, moderna na sua construção. Uma volta pelas livrarias trouxe-me mais algumas relíquias para saborear durante as noites (por isso há pouca produção por estes lados – desculpem os leitores, mas entre ler génios e escrever para o blogue, ainda por cima com o trabalho que tenho entre mãos, não há que hesitar). Mas sobre Mishima e Assis, voltaremos a falar, certamente.
2 comentários:
Machado é absolutamente imperdível e viciante. Tens toda razão para ausências. Mas tens que reportar, depois. E não quesqueças de Dom Casmurro, please! É uma obra prima. Os contos tb são interessantissimos. Já tens algum livro deles?
Bjs
Cara Lori, obrigado pelas estimulantes palavras. É sempre bom receber apoio de pessoas como tu, que não andam aqui para o elogio fácil, mas só dizem o que lhes vai no coração. è por isso sempre bom receber notícias tuas. Melhor ainda quando ando embrenhado no Rio de mil oitocentos e muitos, e não deixo de recordar o Rio de 2008. Tenho muitos Machados de Assis, a recolha pelas livrarias de Lisboa foi proveitosa. A maioria edições brasileiras, algumas muito bonitas. Quando me faltar algum aviso-te. Até lá um beijo, sob o olhar de Quincas Borba.
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