Uma das peças mais carismáticas de Tennessee Williams sobe agora ao palco do Teatro Mirita Casimiro, no Teatro Experimental de Cascais. Uma encenação de Thiago Justino, com a surpresa de se ver Lili Caneças a interpretar o principal papel, o da decadente actriz Alexandra Del Lago. Antes de falar da peça, e da sua estreia na noite do dia 3, recordemos o filme.
"CORAÇÕES NA PENUMBRA"
Richard Brooks dirigiu, em 1962, “Corações na Penumbra” (título português, no cinema, para “Sweet Bird of Youth”), uma das duas adaptações de peças teatrais de Tennessee Williams que o cineasta levou para o écran (a outra tinha sido, poucos anos antes, “Gata em Telhado de Zinco Quente”, igualmente com Paul Newman, mas aí contracenando com Elisabeth Taylor). Uma adaptação que trouxe igualmente para o cinema grande parte do genial elenco que havia interpretado a peça na Broadway: Paul Newman, Geraldine Page, Madeleine Shewood e Rip Torn repetem a criação de personagens que haviam sido dirigidas pelo encenador Elia Kazan. O espectáculo teatral estreara-se a 10 de Março de 1959, no Martin Beck Theatre, onde permaneceu durante 375 representações.
O início de carreira de Richard Brooks como jornalista e a sua profunda formação literária, levaram naturalmente o cineasta a aproximar-se de obras literárias, por diversas vezes, ao longo de toda a sua filmografia. Desde Scott Fitzgerald, Evan Hunter, Paddy Chayefsky, Dostoievsky, Sinclair Lewis, Joseph Conrad, Truman Capote até Tennessee Williams, vários foram os autores que Brooks se encarregou se adaptar ao cinema, com resultados desiguais, mas sempre com seriedade de processos e uma dupla preocupação bem patente: ser fiel à obra de que partia, sendo fiel a si próprio e ao novo meio expressivo.
O caso de “Corações na Penumbra” é muito significativo. Aí está o universo do dramaturgo, carregado de fantasmas e obsessões muito próprias, numa análise psicanalítica e muito freudiana do comportamento do americano médio, mas aí está também o tema da "segunda oportunidade" tão caro a Brooks, aí está igualmente uma forte componente social e política, aliás um aspecto que se é normal em Tennessee Williams, raras vezes o é com a acutilância crítica e o tom vigoroso aqui manifestados.
Há, aliás, situações e figuras que passam de filme para filme, demonstrando bem que Brooks é um verdadeiro autor, um artista com um universo próprio. Por exemplo, a personagem interpretada por Ed Begley, em “Corações na Penumbra”, um americano que se faz a si próprio e se transforma num ditador sem escrupulos, é prolongada obviamente noutros retratos, em obras posteriores, como o de James Mason, em “Lord Jim”, ou de Ralph Bellamy, em “Os Profissionais”. O tema da "segunda oportunidade" aparece inscrito igualmente em qualquer destes três filmes, de forma mais ou menos evidente.
Chance Wayne, o protagonista, deixou a sua cidade natal, por ordem do potentado local, que não via com bons olhos o seu "romance" com a filha. Mas Chance regressa, tempos depois, como protector de Alexandra Del Lago, uma actriz em declínio, encharcada em álcool e drogas. O que será o bastante para incendiar aquela pequena comunidade sulista, sufocada pelo calor e pelo entrelaçar de paixões, ditas e interditas, clima de um fascismo quotidiano muito semelhante ao de uma outra onde, dois anos depois deste filme se ter estreado, John Fitzgerald Kennedy seria baleado.
Para lá da imposição dos ambientes bem representativos de Tennessee Williams, a violência nas relações, as frustrações sexuais, há, em “Corações na Penumbra”, um clima geográfico e uma densidade humana notáveis, surpreendendo pela convicção com que são descritos e restituídos em imagens.
Richard Brooks estava nesta altura no apogeu do seu talento de narrador, um talento que curiosamente seria "descoberto" por John Huston, para quem Brooks, no início da carrreira, escreveu vários argumentos e com quem mantém muitas e curiosas afinidades temáticas e de estilo.
“O DOCE PÁSSARO DA JUVENTUDE”
Passemos agora à versão estreada agora no Teatro Mirita Casimiro, numa concretização do Teatro Multiculturas, que surgiu em 1998, por iniciativa do actor Thiago Justino (ao lado de Alexandra Solnado), baseado na sua experiência profissional como actor, formador, animador cultural e nos seus 25 anos de carreira dedicados ao Teatro, Cinema e Televisão. Citando a companhia: “Para esse efeito contou com o apoio de diversas personalidades do meio cultural português, de onde se destacam Raul Solnado, Eunice Muñoz, Diogo Infante, Maria do Céu Guerra e Bárbara Guimarães. Todos deram o seu contributo artístico para a concretização de um projecto que visa dar voz ao ideal da lusofonia como linguagem artística e processo de integração dos povos e culturas que residem actualmente em Portugal.”Com este novo espectáculo, o Teatro Multiculturas apresenta “a estreia da Companhia Performática, formada não só por actores, mas também por pessoas comuns que buscam através do teatro contribuir culturalmente para a sociedade.” E explicam: “Esta versão da peça de Tennessee Williams sofreu uma desconstrução, misturando teatro e música e dança, aproximando-se de uma linguagem mais apelativa para a juventude actual. “Doce Pássaro da Juventude” (ou “Ensaio sobre a Juventude”) reune num plateau de cinema uma velha actriz em decadência e um jovem aspirante a actor, que, para convencê-la do seu talento, transforma o espectáculo numa grande audição, na qual a realidade se mistura com a ficção.”
Ora bem, um dos aspectos que me agrada no teatro de texto, é precisamente a qualidade do texto e “desconstruir” por “desconstruir” o texto de uma peça não vejo que interesse extra possa trazer. Neste caso, e pela minha perspectiva, nenhuma virtude se acrescentou, e muitos defeitos surgiram desta “modernice” sem intenção. Eu que já vira espectáculos com o actor Thiago Justino de que gostara muito (“Miss Daisy”, por exemplo), acho que este, tanto quanto ao texto, como quanto à encenação, nada me trouxe de especial.
Parece que era intenção, “depois de oito meses de ensaios”, descobrir e explorar “partituras, dinâmicas, canções, teatro-dança, monólogos e recentemente a ideia de um DJ e um VJ, mais dois percussionistas”, na ideia de que “todas as artes podem ser aproveitadas para passar a mensagem que se pretende com esta encenação ousada do “Doce Pássaro da Juventude”. Importava “que essa linguagem fosse próxima dos tempos de hoje, da juventude. Importava que cada um se revisse em algum elemento, em alguma cena, em alguma problemática, em algum ritmo. Essa é a força da performance, a sua versatilidade.”
Se as intenções eram essas, porque não escolher outra peça e deixar “Sweet Bird of Youth” sossegadinha e em paz? A peça de Tennessee Williams claro que aborda o tema da juventude, mas não é esse o essencial da obra que centraliza a sua atenção sobre duas figuras de actores, uma velha actriz em declínio, um jovem candidato a actor em ascensão, que se confrontam numa cidade sulista, dominada por um fascista que põe e dispõe das pessoas a seu belo prazer. Muita desta temática esfarela-se nessa tal “desconstrução” da peça, que me parece totalmente descabida.
Depois, há excelentes vídeos a acompanhar o espectáculo, mas muitas vezes deslocados (por quê Luter King e “I have a Dream”?, por quê a homenagem a Paul Newman, por ter falecido e ter sido o actor do filme? Haveria muitos outros a homengear então). Há um cenário e adereços curiosos, num conujnto negro, branco, vermelho, de curiosos efeitos, mas que nada tem a ver com o sol sulista, o suor a escorrer, o tresandar do sexo, as palmeiras e a ondulação do mar. No elenco, a destacar a presença e a voz da actriz cantora, o esforço do actor que interpreta a figura de Chance Wayne, e finalmente a estreia de Lili Caneças, em Alexandra Del Lago. Confesso que ia com medo de uma catástrofe, ainda que desde sempre Lili Caneças seja uma actriz. Uma mulher que compôs uma personagem há anos e que alimenta a imprensa rosa com essa figura. Sempre achei Lili Caneças muito mais interessante e inteligente do que o comum das pessoas julga. E tiro o chapéu à sua coragem e à forma como responde a desafios. Este foi um desafio que galhardamente aceitou e ganhou. Não é, obviamente, Geraldine Page, não, não é. Mas compõe com algum fulgor e talento uma personagem e alimenta com a sua chama o palco do TEC. É uma mulher de fibra, com 64 anos, a alimentar um sonho. Palmas. Agora quero vê-la a fazer de Gloria Swanson a descer as escadas de “Sunset Boulevard”. Adorava dirigi-la com um bom elenco e respeitando o texto. Sem “desconstruções”.
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