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VERGÍLIO FERREIRA: ESPAÇOS E CIRCUITOS
Nos dias 7 e 8 de Maio, em Gouveia, numa iniciativa conjunta da Câmara Municipal de Gouveia e da Universidade de Évora, decorreram os Ciclos Vergilianos, integrando conferências e debates, concertos e um passeio pelas terras de Vergilio Ferreira. Foi-me socilitado um depoimento de tom memorialista sobre as minhas recordações do escritor de "Manhã Sumersa". Aqui fica o registo:
Há na minha versão cinematográfica de “Manhã Submersa” algumas cenas em que António dos Santos Lopes, o protagonista, sentindo-se encurralado fisicamente nas paredes do seminário, onde se encontra contra a sua vontade, se “ausenta”, através do olhar, para o exterior, em direcção à sua aldeia, à sua serra da Estrela, que aqui prefigura a liberdade e a vida natural. Para Vergílio Ferreira a liberdade é nitidamente um dos seus temas dilectos, ao lado de outros que fazem a essência do homem e da sua misteriosa passagem pela terra: o que somos, por que o somos, somo-lo em finitude, apenas em função de nós próprios ou em direcção a que desconhecido? E a solidão do homem, perante o mistério da vida e da morte.
Para Vergílio Ferreira, a liberdade individual é algo que não se pode restringir, e que, quando é condicionada por um qualquer mecanismo opressor ou censório, se revolta por todos os meios, inclusive pela imaginação que se revela indomável.
A imaginação e a memória interagem agora comigo, da mesma forma por que António dos Santos Lopes se libertava das condições adversas que encontrara no seminário do Fundão: escrevo num computador equipado com Windows Vista, mas a minha imaginação percorre o caminho em direcção à Serra, mais precisamente à cidade de Seia, uma esplanada num primeiro andar do largo central da cidade, cai a tarde num dia de Outono de 1974. Acabara de conhecer pessoalmente Vergílio Ferreira.
Lera as primeiras obras dele era eu ainda adolescente e vivia ocasionalmente em Portalegre. Foi aí que tomei o primeiro contacto com “Manhã Submersa”, publicada em 1953, quando o escritor vivia em Évora, onde era professor. O meu pai, seu colega, professor em Portalegre, onde eu era aluno de José Régio. Por alguma dessas razões, e pelo meu gosto compulsivo de ler, o livro me veio parar às mãos e, ao lê-lo, para sempre fiquei ligado a esta obra. Depois veio “Aparição”, alguns outros pelo caminho, até chegar a 1974, quando Manuel Guimarães, cineasta e padrinho do meu casamento, da parte de minha mulher, me convidou a ir à serra da Estrela, assistir às filmagens da sua versão de “Cântico Final”.
Lembro bem as filmagens de noite, em Melo, e os primeiros contactos com o escritor, nos intervalos das filmagens, a que nesse fim-de-semana tinha ido assistir, com a mulher, a dr. Regina. A conversa foi partida, por entre mudança de interlocutores, ora Ruy de Carvalho, ora Varela Silva, ora a jovem Ana Helena. E sempre Vergílio Ferreira, que assistia, aparentemente distante, mas entusiasmado por ver um romance seu concretizar-se em imagens, ali à sua frente. Com o clarão dos projectores a incendiar a escuridão mágica da serra.
Vergílio Ferreira não era homem para intervir na arte ou no trabalho dos outros, mesmo quando essa arte ou trabalho derivavam de arte ou trabalho seus. Sempre aceitou comigo a total divisão de concepções. Um dia me disse, em fase de preparação de “Manhã Submersa”: “O romance é meu, o filme é seu. Cada um vai valer por si. Se o filme for uma merda (sic), não irá alterar em nada o que o livro valer.” Deu-me todas as indicações solicitadas, foi desenterrar o livrinho das regras do Seminário, para eu citar algumas, mas nunca sequer me sugeriu uma alteração ao guião que eu escrevera, cortando e acrescentando segundo o que eu sentia serem as necessidades de uma nova narrativa. Apenas leu o guião, quando estava terminado, e, como professor atento, corrigiu a lápis alguns erros de ortografia. O romance era dele, o filme era meu.
Queria isto dizer que Vergílio Ferreira nunca impôs qualquer directiva, não que eu a notasse na sua relação com Manuel Guimarães, não que eu a sentisse no nosso profícuo relacionamento. Manuel Guimarães cavaqueava com ele sempre que as filmagens eram interrompidas para preparação de novo plano, ao lado tinha a sua companheira de sempre e anotadora, a Dona Clarice. Eram conversas de circunstância que me permitiram confessar a Vergílio Ferreira a minha particular estima por algumas obras suas, nomeadamente “Manhã Submersa”. Foi por essa altura que me abalancei a sugerir aos dois rodar um documentário sobre o escritor, para anteceder a longa-metragem de Guimarães, quando o “Cântico Final” fosse estreado. E logo ali ficou estabelecido o título: “Prefácio a Vergílio Ferreira”. Uma introdução rápida, de quinze minutos, à sua vida e obra, tentando recuperar um universo e restituí-lo em imagens.
Foi na tarde do dia seguinte que aparece a cena da esplanada em Seia, a conversa a quatro, registada pela câmara fotográfica da Maria Eduarda Colares. Ali está o Vergílio Ferreira, sorridente e descontraído, irónico e sedutor, as bicas e os meus livros do escritor sobre a mesa, certamente idos de Lisboa em busca de uma dedicatória, e uma ou outra vez o perfil furtivo da bela e muito jovem Ana Helena. Foi uma conversa com tema já definido, o “prefácio” que acalentara durante a noite, e que o Guimarães generosamente tornara possível, oferecendo-me uns resto de película, e “emprestando” o Abel Escoto, o seu director de fotografia, nos intervalos das filmagens.
Esse foi o meu primeiro trabalho tendo como base Vergílio Ferreira. Inicialmente rodado em Melo, tem como cenário as paredes graníticas das casas, a paisagem vigorosa e áspera, e os rostos tisnados pelo sol e a chuva e a passagem dos anos. Coloco a câmara numa das extremidades do corredor da casa da família do escritor e espero com respeito e uma ternura muito especial que a mãe se aproxime da objectiva vinda lá do fundo de um contraluz inesquecível. Na sala de jantar, mãe e tia do escritor, olham a câmara, tendo preso por cima das suas cabeças, um velho relógio que assinala anos e anos de memória. Muito tempo depois, Vergílio Ferreira dir-me-á que nunca revê esses planos da mãe sem uma comoção profunda. Eu rejubilo pelo carinho revelado, sabendo eu que aquele homem é-o de poucas palavras e de emoções exasperadamente contidas.
Lera algures numa das suas obras, “Alegria Breve”, onde recordava a sua infância, uma referência a uma rampa. “Entro em casa, demoro-me um instante à janela para a montanha, mas acabo por sair, subindo a rampa que leva ao adro da igreja. A minha biografia começa aqui – na rampa.” “Prefácio a Vergílio Ferreira” começa ali – na rampa. Peço a Vergílio Ferreira para subir a rampa, passo sereno, esforçado, decidido, ritmado, camisa branca aberta e casaco dobrado no braço. Ele sobe a rampa, uma e outra vez, até chegar à “take” considerada ideal e que depois será repetida, uma, duas, três vezes no filme, como refrão de um reinício. O filme não acaba ali, mas volta ao princípio, depois de passar por Évora e as salas de aula, por Lisboa, a casa do escritor, a avenida de Roma, a livraria Barata, o liceu Camões. Vergílio Ferreira dá ali uma aula para a qual eu lhe pedi que abordasse o tema da arte. “Para que serve a arte?”, pergunta-se. E responde: “Esta pergunta está desde logo viciada, porque perguntar para que serve a arte é dar-lhe um carácter utilitário, prático, que naturalmente a arte só genericamente tem. As relações da arte com o real, e sobretudo as relações da arte com um ponto de vista de utilidade, vêm de longo tempo, vêm de há muito tempo.” Malraux disse: “A Arte é a música da história.” Sartre disse: “Não há obra nenhuma de arte, grande, que se possa fundar sobre a injustiça.”
Assim se explica Vergílio Ferreira que, a rematar o filme, concluía: “Há uma voz obscura no homem, mas essa voz é a sua. Há um apelo ao máximo, mas vem do máximo que ele é. Há um limite impossível, mas é do excesso que é o próprio homem.”
O escritor explicava assim a sua querela com os neo-realistas, de quem foi companheiro de estrada no início da carreira, dos quais se afastou, quando escolheu um caminho autónomo, com influencias directas e confessadas de existencialistas, de Malraux, do “nouveau roman”. Por esta altura, em pleno PREC, Vergílio Ferreira era um homem feliz pela liberdade finalmente conquistada, pelas injustiças e violências que começavam a ser corrigidas, mas inquieto quanto ao futuro da democracia. Muitas conversas tivemos sobre este tema, quando a amizade se aprofundou entre nós e a confiança nasceu. Ele, que fora perseguido e censurado pelo Estado Novo, e que se sentira marginalizado pela política cultural de uma certa esquerda instalada nessa altura na oposição e que depois procurou instrumentalizar o poder, após o 25 de Abril, ele sentia-se não só inquieto, como igualmente afastado, olhado como um fardo incómodo. A política activa nunca o fascinou em demasia, mas assinou manifestos, protestou, escreveu, polemizou.
Há quem o veja como homem amargo e de difícil convívio. Nada de mais enganoso para quem bem o conhecia de perto. Era dócil e terno, de olhar macio e voz branda, cigarro acariciado numa das mãos, irónico e mordaz quando a isso o convidava o humor. Toda a sua ficção é filosófica, toda a sua vida um exemplo de um pensamento vivido sem deriva. Um dia, quando nasceu o meu filho Frederico, perguntou-me ao telefone: “como se vai chamar o rapaz?” Frederico, respondi. “Isso é lá nome para se dar a um filho.” Mais tarde o Frederico, quando tinha cerca de 16 anos, adaptou a vídeo o seu conto “A Estrela”, e enviou-lhe o filmezinho em cassete, para ele ver. Respondeu-lhe numa muito simpática mensagem, que se conserva registada em fita magnética. Hoje o Frederico namora com a Cátia Garcia, cantora e actriz, que interpretou no palco do Politeama, “a estrela”, a versão teatral do Filipe La Féria. Na estreia, na primeira fila, a Dr. Regina soluçava enternecida pelo que acabara de ver. Malhas que o império tece, neste mundo que dá voltas sobre si próprio.
Voo em direcção à Serra, numa panorâmica que a memória consente. Alguns anos depois de ter rodado, em Linhares da Beira, “Manhã Submersa”, sou convidado a dirigir o Cine Eco, um festival de “cinema e ambiente” em Seia, que dura há quinze anos. Todos os anos viajo até à serra, e invariavelmente, percorro com amigos e convidados, nacionais e estrangeiros, os caminhos dessa rodagem.
Calcorreamos as ruas graníticas dessa aldeia perdida nos cumes, bebemos um café na tasca onde no inverno impiedoso de 1979 a equipa técnica e os actores se acoitavam da tempestade, do vento, da chuva e da neve que carregavam de lado, e deambulamos entre o castelo e a igreja, entre esses dois símbolos de poder que tanto me atraíram ao escolher esta aldeia como cenário preferencial para o meu filme.
Lembro a Adelaide João a lavar roupa, num fiozinho de água, que escorria, qual regato, entre o castelo e a igreja. Mais tarde confessou-me que chorara de dor com as mãos geladas, e nada me dissera quando eu pedia para repetir o plano. Lembro a Eunice Muñoz, nas austeras vestes de Dona Estefânia, conversando no adro da igreja com um improvisado padre (que o pintor Mário Botas se prestou a interpretar por doença do actor convidado, e que não pode aparecer). Ambos traçavam o futuro do jovem seminarista, sem a este prestarem a mínima atenção.
Desço a Melo, paro defronte da casa da família, olho a rampa (a sua biografia continua a começar ali), e muitas vezes vou até ao cemitério, onde, voltada para a serra, se encontra a sepultura de Vergílio Ferreira. Nova viagem no tempo, e ouço a voz da Dr. Regina, numa manhã maldita, num telefonema sem cor, dizer-me: “O Vergílio morreu.” Soube depois, contado por ela, que morrera durante a noite, e que ela ficara sozinha com ele em casa, vestindo-o, colocando-o na cama, retocando-lhe as feições, em permanente vigília, até o dia nascer, e então telefonar ao filho e aos amigos. A Eduarda escreveu sobre esta mulher tenaz e este amor temperado por anos de diário convívio, um conto, “Retrato de Senhora com Flores ao Fundo”, que eu tentei filmar, sem conseguir apoios para tal. Fica a intenção e agora aqui a revelação. Talvez um dia, quem sabe? Eunice seria a Senhora.
Sinto-me próximo de Vergílio Ferreira nesta serra que o viu nascer e onde jaz. Disse-me numa entrevista: “Na província em que nasci aprendi a sensibilidade que tenho. Mesmo o Alentejo (e vivi lá 14 anos) só afinal o entendi como um eco da Beira. Porque a planície e a montanha falam a mesma voz primordial. Espaços, origens, vento, neve, solidão, e a cor escura das gentes, e a sua presença espectral, e a sua trágica rudeza, e o silencio de tudo, e a própria alegria furtiva quando é a hora das concessões para isso, e o signo de eternidade que a tudo marca, e o halo genesíaco que a tudo envolve – são inexoravelmente os sinais com que me entendi através da terra em que me criei.” Texto lindíssimo de alguém que tinha o dom da palavra exacta, que construía sabiamente a frase antes de a enunciar, entre duas fumaças espaçadas.
Antes de iniciar as filmagens de “Manhã Submersa”, que rodei, em simultâneo, em 35 milímetros para cinema, e em 16 milímetros para televisão, filmei o documentário de quase uma hora, “Vergílio Ferreira numa “Manhã Submersa”, que funcionou como “episódio zero” da série para a RTP. Viajei com o escritor pelas serras, a da Estrela, onde nasceu, a de Sintra, onde tinha uma casa de campo, em Fontanelas. No Fundão visitámos as (quase) ruínas do velho seminário, então ocupado por retornados, que Vergílio Ferreira entrevistou particularmente interessado no destino daquelas gentes que subitamente trocavam de vida e de continente.
Divisão a divisão, foi-me descrevendo o seminário da sua infância e do seu sufoco. Contou-me que durante muitos anos vivia assombrado pela recordação daqueles tempos, até ter escrito o romance, o que lhe trouxe posteriormente uma enorme calma e paz interior. Voltámos a Melo e à casa familiar, à rampa, ao pelourinho da aldeia, onde nos sentámos a conversar enquanto o Vítor Estêvão, director de fotografia, captava a imagem. Subimos a Linhares, onde descobriu um padre que havia sido seu colega no seminário. O restante, digamos que o lado reflexivo sobre a sua evolução literária, a génese de “Manhã Submersa”, romance, o seu posterior interesse por Malraux e pelo existencialismo, e por novas formas de narrativa que o “nouveau roman” abriu, tudo isso fui captar nos jardins da sua casa em Fontanelas. Enquanto a Drª Regina regava as plantas. Ou preparava um chá. Sentados em redor de uma mesa de pedra, sob o frondoso das árvores, o gravador no meio, a câmara de filmar discretamente recuada, Vergílio Ferreira falou. Lição de mestre, que ficou registada para a eternidade.
“Conta Corrente”, “20-0utubro (sábado). No dia 18, quinta, a TV-2 iniciou a emissão de “Manhã Submersa”. Transmitiu a "Introdução" com várias conversas minhas em vários sítios, entre eles o Seminário do Fundão. Emocionou-me particularmente a presença de minha mãe. Em certo plano, ela aparece a percorrer o corredor da casa, num envolvimento de sombras como um espectro. No silêncio absoluto ouvia-se, a aprofundá-lo, as pancadas dos tacões e da bengala no soalho. O seu percurso levava-a para a porta da rua, onde se imobilizou num halo de luz difusa.”
Corte para Lisboa. O café Vavá onde tantas e tantas vezes nos encontrámos. De inicio com o Manuel Guimarães. Depois com a Lídia Jorge. Um dia falámos sobre Agustina, outro dos grandes nomes das letras portuguesas, de que eu gostava (e gosto) muito. Rivalidades e mal entendidos levavam Vergílio Ferreira a não a ter entre as preferidas. Ela correspondia, ao que suponho. Passados meses, de novo numa das mesas do Vavá, depois de uma viagem a Paris que reuniu Agustina e Vergílio, este confessa-me a sua enorme admiração pela escritora. Ambos se tinham tornado grandes amigos.
Ainda Lisboa. Um telefonema ao fim da tarde. “Que fazem vocês? Vamos comer uns bifes de javali num restaurante que conheço?” Era dia 28 de Janeiro, Vergílio Ferreira fazia anos, e lá fomos até às Olaias, onde o escritor conhecia um restaurante especializado em javali. Melhor que o javali, que eu degustava pela primeira vez, era a companhia. A torrente das palavras, moldada em afectos. Um dia disse, e confirmo, que Vergílio Ferreira foi para mim com um segundo pai. O meu faleceu abruptamente em 1977. Vergílio Ferreira não ocupou o lugar, insubstituível, mas atenuou a perca com a sua presença amiga e a sua voz patriarcal.
“Flash back”: Casa de Vergílio Ferreira. Interior. Noite.
Morava muito perto da minha casa, ambas situadas na Avenida EUA.
Sentados frente a frente, falo-lhe na hipótese de interpretar a figura do reitor. A reacção inicial foi chamar-me louco ou algo parecido. Depois sorriu. Um bom professor é um actor, digo eu. E sabe latim. Elogio-lhe o rosto, a postura, o rigor, a austeridade, certamente resquícios do próprio seminário. “Já viu o que era, “ser” agora o reitor que tanto o flagelou em adolescente? Não só o reitor do seminário, mas também o Salazar do País?” Deixou de me chamar louco e continuou a sorrir. Um sorriso de criança que intimamente elabora uma malandrice bem urdida. “Amanhã voltamos a falar disso”, digo eu. No dia seguinte, pela hora do almoço, telefono-lhe excitado, esperando um não rotundo, sai um sim em busca de comprovativo. Claro que reforço o convite. É preciso encomendar um fato de reitor no guarda-roupa Anahory. Com as suas medidas.
Vergílio Ferreira não foi dos primeiros a entrar em cena. As filmagens começaram por Linhares da Serra, exteriores, inverno inclemente, já o disse. Acabadas as filmagens na serra da Estrela, regressámos a Lisboa, para filmagens na Madre de Deus, num edifício da Casa Pia nessa altura desocupado. Improvisado um gabinete do reitor, colocadas as câmaras, instalada a iluminação, espera-se por Vergílio Ferreira para a primeira “take” do dia e para a sua estreia como actor. Devidamente paramentado aparece. Troco com ele frases de ocasião sobre o texto a dizer nessa altura. Um dos alunos do seminário vai ser expulso, e o reitor executa a sentença, perante os pais revoltados com a conduta do filho. Vergílio Ferreira sabe o diálogo, está no entanto inquieto. Coloca-se no local escolhido, em pé, atrás da secretária. “Acção!”: “Entre!” e os pais entram com o aluno e um empregado do seminário. Vergílio Ferreira inicia um diálogo grandiloquente, quase gritado, muito gesticulado. Parece récita de amadores do pior. A equipa técnica rebolava-se de riso e escondia-se por detrás de tudo o que pudesse impedir ser vista. Teme-se o pior. “Corta!” Vergílio Ferreira não está satisfeito, mas está sobretudo inseguro. “Não correu bem, pois não?” “Não, Vergílio, não correu, não é esse o tom.” Falámos cinco minutos, afastados dos demais. “Isto é cinema, não é teatro. O público está muito perto de si, olha-o nos olhos, não precisa de exteriorizar muito, mas pelo contrário de interiorizar. Basta sentir o que se diz, a câmara fará o resto, vai lá buscar a emoção e transmiti-la ao espectador.” “Vamos repetir!” E assim foi. Sai muito bem. Volta a repetir-se o plano, por uma questão de segurança. Vergílio Ferreira protesta: “Não ficou ainda bem desta vez?”. “Sim, mas temos de ter mais do que uma “take” boa, por questão de segurança!”. “Que chatice! Não sabia que isto era tão chato, tanta repetição!” Mas a partir daí foi sempre a somar: encontrado o tom próprio, foi dos mais seguros actores da companhia. Sempre prestável.
Na “Conta Corrente”, no dia 14 de Janeiro de 1980 (domingo): “Vi há dias as filmagens que já fiz para “Manhã Submersa”. Lá estava o Reitor a enredar o miúdo e a recusar o perdão a um outro que não queria ser expulso. O Lauro António e toda a equipa acharam a actuação "brilhante". Nunca ninguém me disse isso em relação a nada que tenha feito. E aí está como o meu destino devia era estar no Parque Mayer.”
Na mesma “Conta Corrente”, agora no dia 3 de Novembro (sábado): “Espantoso. Tenho sido cumprimentadíssimo pela minha actuação na TV, na série da “Manhã Submersa”. Faço o papel de Reitor, tenho sido felicitadíssimo. No restaurante onde hoje fomos, vários olhares fixos em mim a identificarem. Há quarenta anos a escrever livros. Pouca gente deu conta. Mas só com duas intervenções na TV, sou quase tão célebre como um futebolista. Tenho-o pensado: o meu destino estava em Hollywood ou no Parque Mayer. Agora é tarde para emendar o destino. O curioso é que eu não correspondo por dentro a estas homenagens. Quando me dizem de um livro que é "bom", qualquer coisa mexe por dentro, no sítio das vísceras em que está o contentamento. Mas ser "actor" – que blague. Uma brincadeira da responsabilidade do Lauro António, o realizador. Que tenho "boa figura" e "boa voz" e "boa presença". E esta? Mas é desta maneira externa e acidental e lúdica que se faz uma reputação e uma "personalidade". Modo de se ser de fora para os outros e de os outros o serem. O que é de dentro não tem uma pessoa a que se fixe, não tem visibilidade a que nos fixemos.”
Alguma incompreensão de Vergílio Ferreira para com a força das imagens: uma interpretação, em cinema, vale sobretudo pelo que sugere do interior da personagem. A "boa figura", "boa voz" e "boa presença" são igualmente signos que nos permitem chegar à essência, precisamente ao mais profundo de um ser, de uma situação. O “casting” é precisamente isso: escolher a pessoa certa para o papel.
“Travelling” na auto-estrada para o Porto, onde se repõe “Manhã Submersa”, eu e Vergílio Ferreira na sala do cinema, julgo que uma das salas o “Charlot”, em amena cavaqueira sobre o filme, após a projecção. Há quem fale da influência de Buñuel, de Bergman, de não sei quantos mais cineastas. Vergílio Ferreira regista o episódio na sua “Conta Corrente”: 20-Abril (terça). (…) uma ida ao Porto com o Lauro António para uma nova "estreia" do “Manhã Submersa”. Com Lauro António tem acontecido uma coisa que sei por mim e é a atribuição variada de "influências". A esse propósito, teve ele no colóquio, após a exibição do filme, uma observação curiosa: não há mal que nos atribuam muitas influências; mal é quando nos atribuem só uma. Ponho-me a reflectir, acho que tem certa razão. Comigo, aliás, no que se refere a influências, é uma fartura.”
Claro que haverá influências. No mundo nada se cria, tudo se transforma. Uma influência manifesta, pode ser cópia, plágio. Muitas, é a vida, ao longo da qual nos vamos alimentando do que vemos, do que lemos, do que ouvimos, do que nos toca a pele, do que nos molda. Somos o produto de tudo o que fica em nós, quando tudo o mais desaparece. Cada personalidade é o resultado dessa mistura sincrética.
Volto à sua casa em Lisboa. Anos depois da estreia de “Manhã Submersa”, confesso-lhe que gostaria muito de adaptar “Até ao Fim”. Ele acha que eu faria um filme magnífico de “Em Nome da Terra”, livro de que gosto muito, mas não me seduz para cinema. Já experimentei o “beco sem saída” com adolescentes, não me apetece entrar noutro “huit clot”, agora da terceira idade. “Até ao Fim”, sim. Mas há um cineasta alemão que o quer adaptar. Vergílio Ferreira hesita em ceder os direitos, “muito bem pagos”, porque eu punha a hipótese de o adaptar. Liberto-o de qualquer compromisso ou constrangimento. Afinal a minha carreira de cineasta, depois do relativo sucesso de “Manhã Submersa”, tem sido muito difícil. Contaram-me que colegas meus, uma vez reunidos em conciliabo, haviam jurado: “Este gajo nunca mais há-de filmar!”, o que quase se concretizou. Não quero ser empecilho, afinal nem tinha pago nada para reter os direitos. Vergílio Ferreira, que nunca me deixara sequer ler os seus dois primeiros romances, que considera obras de juventude, sem grande préstimo, vai desencantar uma primeira edição de “O Caminho Fica Longe” e escreve com a letra miudinha que o caracterizava, “o imbricado da escrita”, como lhe chamava, uma dedicatória significativa: “Ao Lauro António esta maneira desculpável (?) de se ser infantil, com um abraço amigo do Vergílio Ferreira. Junho de 1982.”
Falando de dedicatórias, uma que me tocar particularmente. Uma primeira edição de “Manhã Submersa”: “Ao Lauro António que fez deste livro uma razão para eu ter algum orgulho nele. Com uma abraço do Vergílio Ferreira. Março de 90.”
Em 1983 realizei para a RTP uma série, “Histórias de Mulheres”, que agrupou quatro histórias, uma delas retirada de um conto de Vergílio Ferreira, “Mãe Genoveva”. Transpus o cenário da Beira para o Alentejo, rodei-o em Terena, uma aldeia perto de Estremoz. O conto de Vergílio Ferreira dava hipótese de fazer uma experiência narrativa que me interessava, dado que se prestava bem ao estilo, rigoroso e conciso, do escritor, e à sua propensão para conter a emoção e evitar todo o sentimentalismo fácil. Procurei, portanto, que tudo o que de dramaticamente importante sucedesse, acontecesse fora do enquadramento. As imagens seriam apenas um reflexo, um indício, do que realmente ocorre. Era uma história de clandestinidade e polícia política, já de si nebulosa, pouco clara. Subversiva, furtiva, oculta. Desenrolando-se pela calada da noite, por entre sombras e vestígios. Penso que se apropriava bem o tom escolhido, que eu julgava inquietante E soturno.
É um filme de que gosto muito, mas difícil para o público, reconheço. Temi pela reacção de Vergílio Ferreira, que quase não acompanhou nem a preparação, nem as filmagem ou a montagem. Apenas viu o filme terminado, já em Lisboa, depois de ter passado pelo festival da Figueira da Foz. Não tínhamos falado muito, anteriormente, sobre este pequeno filme de uma hora, rodado durante uma semana num Alentejo escaldante. Afinal, Vergílio Ferreira foi dos que melhor entenderam esta tentativa, pelo menos tendo em conta as suas considerações expressas numa das páginas do volume IV da sua "Conta-Corrente", referindo-se globalmente à série “Histórias de Mulheres”, e em particular a “Mãe Genoveva”: " São filmes depurados à essência narrativa, despojados de pormenores, lentos, mas sempre na expectativa do que daí acontecerá (...) "Mãe Genoveva" quase não tem falas, só a pureza da sequência de imagens, sem alterar a tonalidade emotiva, mesmo quando seria caso disso. Filme transparente, discreto, quase absoluto. (...) Gostei bastante deles e muito ainda de gostar por essas razões."
Perto do “the end”, apenas mais uma recordação: em 1993, no Porto, na Fundação Eng. António de Almeida, Vergílio Ferreira foi o centro de um “Colóquio Interdisciplinar”, por altura das comemorações dos seus cinquenta anos de vida literária. Lá estiveram, durante três dias, a coincidirem com a data de nascimento do escritor, alguns dos maiores vultos nacionais e estrangeiros, que se tinham dedicado ao estudo da sua obra. Nesse colóquio fui convidado a intervir de duas formas, através de uma comunicação, onde tentava dar uma ideia das relações do escritor com o cinema, e através da exibição de três filmes meus, dois passados numa sala de cinema, à noite, um, “Vergílio Ferreira numa “Manhã Submersa”, a encerrar a sessão do colóquio. O filme passou perante uma sala repleta, e no final assisti a uma das ovações mais calorosas que me foi dado ouvir. Mas o melhor de tudo, não foram sequer as palavras de Óscar Lopes ou Eduardo Lourenço, enaltecendo o significado do filme, mas o abraço estimulante do Vergílio, e as palavras segredadas quase ao ouvido, nesse momento: “Já sabia que este filme era bom, mas só agora percebi quanto ele é importante. Sabe que lhe disse, nesses depoimentos, coisas que nunca antes tinha revelado?”
Não pude deixar de ficar orgulhoso. Como hoje ainda o estou por permitir que alguns dos meus filmes tenham eternizado não só as palavras e as ideias do escritor, como ajudado a imortalizar o rosto e a figura do homem. Quando a saudade aperta, ponho a rodar o dvd, e ouço: “A minha biografia começa aqui – na rampa.” E sei que Vergílio Ferreira continua presente. Como presente e vivo se encontra no túmulo que olha a serra. Ele é um pouco da nossa imortal identidade. Cultural, artística, literária, geográfica, antropológica.
“Fade out” ou “fusão em negro”, enquanto se ouve em off o orador agradecer: “Muito obrigado a todos pela vossa simpática atenção, mas creiam que para mim é sempre um prazer recordar e falar de Vergílio Ferreira. Muito obrigado.”
Lauro António, Gouveia, 7 de Maio de 2009.
Há na minha versão cinematográfica de “Manhã Submersa” algumas cenas em que António dos Santos Lopes, o protagonista, sentindo-se encurralado fisicamente nas paredes do seminário, onde se encontra contra a sua vontade, se “ausenta”, através do olhar, para o exterior, em direcção à sua aldeia, à sua serra da Estrela, que aqui prefigura a liberdade e a vida natural. Para Vergílio Ferreira a liberdade é nitidamente um dos seus temas dilectos, ao lado de outros que fazem a essência do homem e da sua misteriosa passagem pela terra: o que somos, por que o somos, somo-lo em finitude, apenas em função de nós próprios ou em direcção a que desconhecido? E a solidão do homem, perante o mistério da vida e da morte.
Para Vergílio Ferreira, a liberdade individual é algo que não se pode restringir, e que, quando é condicionada por um qualquer mecanismo opressor ou censório, se revolta por todos os meios, inclusive pela imaginação que se revela indomável.
A imaginação e a memória interagem agora comigo, da mesma forma por que António dos Santos Lopes se libertava das condições adversas que encontrara no seminário do Fundão: escrevo num computador equipado com Windows Vista, mas a minha imaginação percorre o caminho em direcção à Serra, mais precisamente à cidade de Seia, uma esplanada num primeiro andar do largo central da cidade, cai a tarde num dia de Outono de 1974. Acabara de conhecer pessoalmente Vergílio Ferreira.
Lera as primeiras obras dele era eu ainda adolescente e vivia ocasionalmente em Portalegre. Foi aí que tomei o primeiro contacto com “Manhã Submersa”, publicada em 1953, quando o escritor vivia em Évora, onde era professor. O meu pai, seu colega, professor em Portalegre, onde eu era aluno de José Régio. Por alguma dessas razões, e pelo meu gosto compulsivo de ler, o livro me veio parar às mãos e, ao lê-lo, para sempre fiquei ligado a esta obra. Depois veio “Aparição”, alguns outros pelo caminho, até chegar a 1974, quando Manuel Guimarães, cineasta e padrinho do meu casamento, da parte de minha mulher, me convidou a ir à serra da Estrela, assistir às filmagens da sua versão de “Cântico Final”.
Lembro bem as filmagens de noite, em Melo, e os primeiros contactos com o escritor, nos intervalos das filmagens, a que nesse fim-de-semana tinha ido assistir, com a mulher, a dr. Regina. A conversa foi partida, por entre mudança de interlocutores, ora Ruy de Carvalho, ora Varela Silva, ora a jovem Ana Helena. E sempre Vergílio Ferreira, que assistia, aparentemente distante, mas entusiasmado por ver um romance seu concretizar-se em imagens, ali à sua frente. Com o clarão dos projectores a incendiar a escuridão mágica da serra.
Vergílio Ferreira não era homem para intervir na arte ou no trabalho dos outros, mesmo quando essa arte ou trabalho derivavam de arte ou trabalho seus. Sempre aceitou comigo a total divisão de concepções. Um dia me disse, em fase de preparação de “Manhã Submersa”: “O romance é meu, o filme é seu. Cada um vai valer por si. Se o filme for uma merda (sic), não irá alterar em nada o que o livro valer.” Deu-me todas as indicações solicitadas, foi desenterrar o livrinho das regras do Seminário, para eu citar algumas, mas nunca sequer me sugeriu uma alteração ao guião que eu escrevera, cortando e acrescentando segundo o que eu sentia serem as necessidades de uma nova narrativa. Apenas leu o guião, quando estava terminado, e, como professor atento, corrigiu a lápis alguns erros de ortografia. O romance era dele, o filme era meu.
Queria isto dizer que Vergílio Ferreira nunca impôs qualquer directiva, não que eu a notasse na sua relação com Manuel Guimarães, não que eu a sentisse no nosso profícuo relacionamento. Manuel Guimarães cavaqueava com ele sempre que as filmagens eram interrompidas para preparação de novo plano, ao lado tinha a sua companheira de sempre e anotadora, a Dona Clarice. Eram conversas de circunstância que me permitiram confessar a Vergílio Ferreira a minha particular estima por algumas obras suas, nomeadamente “Manhã Submersa”. Foi por essa altura que me abalancei a sugerir aos dois rodar um documentário sobre o escritor, para anteceder a longa-metragem de Guimarães, quando o “Cântico Final” fosse estreado. E logo ali ficou estabelecido o título: “Prefácio a Vergílio Ferreira”. Uma introdução rápida, de quinze minutos, à sua vida e obra, tentando recuperar um universo e restituí-lo em imagens.
Foi na tarde do dia seguinte que aparece a cena da esplanada em Seia, a conversa a quatro, registada pela câmara fotográfica da Maria Eduarda Colares. Ali está o Vergílio Ferreira, sorridente e descontraído, irónico e sedutor, as bicas e os meus livros do escritor sobre a mesa, certamente idos de Lisboa em busca de uma dedicatória, e uma ou outra vez o perfil furtivo da bela e muito jovem Ana Helena. Foi uma conversa com tema já definido, o “prefácio” que acalentara durante a noite, e que o Guimarães generosamente tornara possível, oferecendo-me uns resto de película, e “emprestando” o Abel Escoto, o seu director de fotografia, nos intervalos das filmagens.
Esse foi o meu primeiro trabalho tendo como base Vergílio Ferreira. Inicialmente rodado em Melo, tem como cenário as paredes graníticas das casas, a paisagem vigorosa e áspera, e os rostos tisnados pelo sol e a chuva e a passagem dos anos. Coloco a câmara numa das extremidades do corredor da casa da família do escritor e espero com respeito e uma ternura muito especial que a mãe se aproxime da objectiva vinda lá do fundo de um contraluz inesquecível. Na sala de jantar, mãe e tia do escritor, olham a câmara, tendo preso por cima das suas cabeças, um velho relógio que assinala anos e anos de memória. Muito tempo depois, Vergílio Ferreira dir-me-á que nunca revê esses planos da mãe sem uma comoção profunda. Eu rejubilo pelo carinho revelado, sabendo eu que aquele homem é-o de poucas palavras e de emoções exasperadamente contidas.
Lera algures numa das suas obras, “Alegria Breve”, onde recordava a sua infância, uma referência a uma rampa. “Entro em casa, demoro-me um instante à janela para a montanha, mas acabo por sair, subindo a rampa que leva ao adro da igreja. A minha biografia começa aqui – na rampa.” “Prefácio a Vergílio Ferreira” começa ali – na rampa. Peço a Vergílio Ferreira para subir a rampa, passo sereno, esforçado, decidido, ritmado, camisa branca aberta e casaco dobrado no braço. Ele sobe a rampa, uma e outra vez, até chegar à “take” considerada ideal e que depois será repetida, uma, duas, três vezes no filme, como refrão de um reinício. O filme não acaba ali, mas volta ao princípio, depois de passar por Évora e as salas de aula, por Lisboa, a casa do escritor, a avenida de Roma, a livraria Barata, o liceu Camões. Vergílio Ferreira dá ali uma aula para a qual eu lhe pedi que abordasse o tema da arte. “Para que serve a arte?”, pergunta-se. E responde: “Esta pergunta está desde logo viciada, porque perguntar para que serve a arte é dar-lhe um carácter utilitário, prático, que naturalmente a arte só genericamente tem. As relações da arte com o real, e sobretudo as relações da arte com um ponto de vista de utilidade, vêm de longo tempo, vêm de há muito tempo.” Malraux disse: “A Arte é a música da história.” Sartre disse: “Não há obra nenhuma de arte, grande, que se possa fundar sobre a injustiça.”
Assim se explica Vergílio Ferreira que, a rematar o filme, concluía: “Há uma voz obscura no homem, mas essa voz é a sua. Há um apelo ao máximo, mas vem do máximo que ele é. Há um limite impossível, mas é do excesso que é o próprio homem.”
O escritor explicava assim a sua querela com os neo-realistas, de quem foi companheiro de estrada no início da carreira, dos quais se afastou, quando escolheu um caminho autónomo, com influencias directas e confessadas de existencialistas, de Malraux, do “nouveau roman”. Por esta altura, em pleno PREC, Vergílio Ferreira era um homem feliz pela liberdade finalmente conquistada, pelas injustiças e violências que começavam a ser corrigidas, mas inquieto quanto ao futuro da democracia. Muitas conversas tivemos sobre este tema, quando a amizade se aprofundou entre nós e a confiança nasceu. Ele, que fora perseguido e censurado pelo Estado Novo, e que se sentira marginalizado pela política cultural de uma certa esquerda instalada nessa altura na oposição e que depois procurou instrumentalizar o poder, após o 25 de Abril, ele sentia-se não só inquieto, como igualmente afastado, olhado como um fardo incómodo. A política activa nunca o fascinou em demasia, mas assinou manifestos, protestou, escreveu, polemizou.
Há quem o veja como homem amargo e de difícil convívio. Nada de mais enganoso para quem bem o conhecia de perto. Era dócil e terno, de olhar macio e voz branda, cigarro acariciado numa das mãos, irónico e mordaz quando a isso o convidava o humor. Toda a sua ficção é filosófica, toda a sua vida um exemplo de um pensamento vivido sem deriva. Um dia, quando nasceu o meu filho Frederico, perguntou-me ao telefone: “como se vai chamar o rapaz?” Frederico, respondi. “Isso é lá nome para se dar a um filho.” Mais tarde o Frederico, quando tinha cerca de 16 anos, adaptou a vídeo o seu conto “A Estrela”, e enviou-lhe o filmezinho em cassete, para ele ver. Respondeu-lhe numa muito simpática mensagem, que se conserva registada em fita magnética. Hoje o Frederico namora com a Cátia Garcia, cantora e actriz, que interpretou no palco do Politeama, “a estrela”, a versão teatral do Filipe La Féria. Na estreia, na primeira fila, a Dr. Regina soluçava enternecida pelo que acabara de ver. Malhas que o império tece, neste mundo que dá voltas sobre si próprio.
Voo em direcção à Serra, numa panorâmica que a memória consente. Alguns anos depois de ter rodado, em Linhares da Beira, “Manhã Submersa”, sou convidado a dirigir o Cine Eco, um festival de “cinema e ambiente” em Seia, que dura há quinze anos. Todos os anos viajo até à serra, e invariavelmente, percorro com amigos e convidados, nacionais e estrangeiros, os caminhos dessa rodagem.
Calcorreamos as ruas graníticas dessa aldeia perdida nos cumes, bebemos um café na tasca onde no inverno impiedoso de 1979 a equipa técnica e os actores se acoitavam da tempestade, do vento, da chuva e da neve que carregavam de lado, e deambulamos entre o castelo e a igreja, entre esses dois símbolos de poder que tanto me atraíram ao escolher esta aldeia como cenário preferencial para o meu filme.
Lembro a Adelaide João a lavar roupa, num fiozinho de água, que escorria, qual regato, entre o castelo e a igreja. Mais tarde confessou-me que chorara de dor com as mãos geladas, e nada me dissera quando eu pedia para repetir o plano. Lembro a Eunice Muñoz, nas austeras vestes de Dona Estefânia, conversando no adro da igreja com um improvisado padre (que o pintor Mário Botas se prestou a interpretar por doença do actor convidado, e que não pode aparecer). Ambos traçavam o futuro do jovem seminarista, sem a este prestarem a mínima atenção.
Desço a Melo, paro defronte da casa da família, olho a rampa (a sua biografia continua a começar ali), e muitas vezes vou até ao cemitério, onde, voltada para a serra, se encontra a sepultura de Vergílio Ferreira. Nova viagem no tempo, e ouço a voz da Dr. Regina, numa manhã maldita, num telefonema sem cor, dizer-me: “O Vergílio morreu.” Soube depois, contado por ela, que morrera durante a noite, e que ela ficara sozinha com ele em casa, vestindo-o, colocando-o na cama, retocando-lhe as feições, em permanente vigília, até o dia nascer, e então telefonar ao filho e aos amigos. A Eduarda escreveu sobre esta mulher tenaz e este amor temperado por anos de diário convívio, um conto, “Retrato de Senhora com Flores ao Fundo”, que eu tentei filmar, sem conseguir apoios para tal. Fica a intenção e agora aqui a revelação. Talvez um dia, quem sabe? Eunice seria a Senhora.
Sinto-me próximo de Vergílio Ferreira nesta serra que o viu nascer e onde jaz. Disse-me numa entrevista: “Na província em que nasci aprendi a sensibilidade que tenho. Mesmo o Alentejo (e vivi lá 14 anos) só afinal o entendi como um eco da Beira. Porque a planície e a montanha falam a mesma voz primordial. Espaços, origens, vento, neve, solidão, e a cor escura das gentes, e a sua presença espectral, e a sua trágica rudeza, e o silencio de tudo, e a própria alegria furtiva quando é a hora das concessões para isso, e o signo de eternidade que a tudo marca, e o halo genesíaco que a tudo envolve – são inexoravelmente os sinais com que me entendi através da terra em que me criei.” Texto lindíssimo de alguém que tinha o dom da palavra exacta, que construía sabiamente a frase antes de a enunciar, entre duas fumaças espaçadas.
Antes de iniciar as filmagens de “Manhã Submersa”, que rodei, em simultâneo, em 35 milímetros para cinema, e em 16 milímetros para televisão, filmei o documentário de quase uma hora, “Vergílio Ferreira numa “Manhã Submersa”, que funcionou como “episódio zero” da série para a RTP. Viajei com o escritor pelas serras, a da Estrela, onde nasceu, a de Sintra, onde tinha uma casa de campo, em Fontanelas. No Fundão visitámos as (quase) ruínas do velho seminário, então ocupado por retornados, que Vergílio Ferreira entrevistou particularmente interessado no destino daquelas gentes que subitamente trocavam de vida e de continente.
Divisão a divisão, foi-me descrevendo o seminário da sua infância e do seu sufoco. Contou-me que durante muitos anos vivia assombrado pela recordação daqueles tempos, até ter escrito o romance, o que lhe trouxe posteriormente uma enorme calma e paz interior. Voltámos a Melo e à casa familiar, à rampa, ao pelourinho da aldeia, onde nos sentámos a conversar enquanto o Vítor Estêvão, director de fotografia, captava a imagem. Subimos a Linhares, onde descobriu um padre que havia sido seu colega no seminário. O restante, digamos que o lado reflexivo sobre a sua evolução literária, a génese de “Manhã Submersa”, romance, o seu posterior interesse por Malraux e pelo existencialismo, e por novas formas de narrativa que o “nouveau roman” abriu, tudo isso fui captar nos jardins da sua casa em Fontanelas. Enquanto a Drª Regina regava as plantas. Ou preparava um chá. Sentados em redor de uma mesa de pedra, sob o frondoso das árvores, o gravador no meio, a câmara de filmar discretamente recuada, Vergílio Ferreira falou. Lição de mestre, que ficou registada para a eternidade.
“Conta Corrente”, “20-0utubro (sábado). No dia 18, quinta, a TV-2 iniciou a emissão de “Manhã Submersa”. Transmitiu a "Introdução" com várias conversas minhas em vários sítios, entre eles o Seminário do Fundão. Emocionou-me particularmente a presença de minha mãe. Em certo plano, ela aparece a percorrer o corredor da casa, num envolvimento de sombras como um espectro. No silêncio absoluto ouvia-se, a aprofundá-lo, as pancadas dos tacões e da bengala no soalho. O seu percurso levava-a para a porta da rua, onde se imobilizou num halo de luz difusa.”
Corte para Lisboa. O café Vavá onde tantas e tantas vezes nos encontrámos. De inicio com o Manuel Guimarães. Depois com a Lídia Jorge. Um dia falámos sobre Agustina, outro dos grandes nomes das letras portuguesas, de que eu gostava (e gosto) muito. Rivalidades e mal entendidos levavam Vergílio Ferreira a não a ter entre as preferidas. Ela correspondia, ao que suponho. Passados meses, de novo numa das mesas do Vavá, depois de uma viagem a Paris que reuniu Agustina e Vergílio, este confessa-me a sua enorme admiração pela escritora. Ambos se tinham tornado grandes amigos.
Ainda Lisboa. Um telefonema ao fim da tarde. “Que fazem vocês? Vamos comer uns bifes de javali num restaurante que conheço?” Era dia 28 de Janeiro, Vergílio Ferreira fazia anos, e lá fomos até às Olaias, onde o escritor conhecia um restaurante especializado em javali. Melhor que o javali, que eu degustava pela primeira vez, era a companhia. A torrente das palavras, moldada em afectos. Um dia disse, e confirmo, que Vergílio Ferreira foi para mim com um segundo pai. O meu faleceu abruptamente em 1977. Vergílio Ferreira não ocupou o lugar, insubstituível, mas atenuou a perca com a sua presença amiga e a sua voz patriarcal.
“Flash back”: Casa de Vergílio Ferreira. Interior. Noite.
Morava muito perto da minha casa, ambas situadas na Avenida EUA.
Sentados frente a frente, falo-lhe na hipótese de interpretar a figura do reitor. A reacção inicial foi chamar-me louco ou algo parecido. Depois sorriu. Um bom professor é um actor, digo eu. E sabe latim. Elogio-lhe o rosto, a postura, o rigor, a austeridade, certamente resquícios do próprio seminário. “Já viu o que era, “ser” agora o reitor que tanto o flagelou em adolescente? Não só o reitor do seminário, mas também o Salazar do País?” Deixou de me chamar louco e continuou a sorrir. Um sorriso de criança que intimamente elabora uma malandrice bem urdida. “Amanhã voltamos a falar disso”, digo eu. No dia seguinte, pela hora do almoço, telefono-lhe excitado, esperando um não rotundo, sai um sim em busca de comprovativo. Claro que reforço o convite. É preciso encomendar um fato de reitor no guarda-roupa Anahory. Com as suas medidas.
Vergílio Ferreira não foi dos primeiros a entrar em cena. As filmagens começaram por Linhares da Serra, exteriores, inverno inclemente, já o disse. Acabadas as filmagens na serra da Estrela, regressámos a Lisboa, para filmagens na Madre de Deus, num edifício da Casa Pia nessa altura desocupado. Improvisado um gabinete do reitor, colocadas as câmaras, instalada a iluminação, espera-se por Vergílio Ferreira para a primeira “take” do dia e para a sua estreia como actor. Devidamente paramentado aparece. Troco com ele frases de ocasião sobre o texto a dizer nessa altura. Um dos alunos do seminário vai ser expulso, e o reitor executa a sentença, perante os pais revoltados com a conduta do filho. Vergílio Ferreira sabe o diálogo, está no entanto inquieto. Coloca-se no local escolhido, em pé, atrás da secretária. “Acção!”: “Entre!” e os pais entram com o aluno e um empregado do seminário. Vergílio Ferreira inicia um diálogo grandiloquente, quase gritado, muito gesticulado. Parece récita de amadores do pior. A equipa técnica rebolava-se de riso e escondia-se por detrás de tudo o que pudesse impedir ser vista. Teme-se o pior. “Corta!” Vergílio Ferreira não está satisfeito, mas está sobretudo inseguro. “Não correu bem, pois não?” “Não, Vergílio, não correu, não é esse o tom.” Falámos cinco minutos, afastados dos demais. “Isto é cinema, não é teatro. O público está muito perto de si, olha-o nos olhos, não precisa de exteriorizar muito, mas pelo contrário de interiorizar. Basta sentir o que se diz, a câmara fará o resto, vai lá buscar a emoção e transmiti-la ao espectador.” “Vamos repetir!” E assim foi. Sai muito bem. Volta a repetir-se o plano, por uma questão de segurança. Vergílio Ferreira protesta: “Não ficou ainda bem desta vez?”. “Sim, mas temos de ter mais do que uma “take” boa, por questão de segurança!”. “Que chatice! Não sabia que isto era tão chato, tanta repetição!” Mas a partir daí foi sempre a somar: encontrado o tom próprio, foi dos mais seguros actores da companhia. Sempre prestável.
Na “Conta Corrente”, no dia 14 de Janeiro de 1980 (domingo): “Vi há dias as filmagens que já fiz para “Manhã Submersa”. Lá estava o Reitor a enredar o miúdo e a recusar o perdão a um outro que não queria ser expulso. O Lauro António e toda a equipa acharam a actuação "brilhante". Nunca ninguém me disse isso em relação a nada que tenha feito. E aí está como o meu destino devia era estar no Parque Mayer.”
Na mesma “Conta Corrente”, agora no dia 3 de Novembro (sábado): “Espantoso. Tenho sido cumprimentadíssimo pela minha actuação na TV, na série da “Manhã Submersa”. Faço o papel de Reitor, tenho sido felicitadíssimo. No restaurante onde hoje fomos, vários olhares fixos em mim a identificarem. Há quarenta anos a escrever livros. Pouca gente deu conta. Mas só com duas intervenções na TV, sou quase tão célebre como um futebolista. Tenho-o pensado: o meu destino estava em Hollywood ou no Parque Mayer. Agora é tarde para emendar o destino. O curioso é que eu não correspondo por dentro a estas homenagens. Quando me dizem de um livro que é "bom", qualquer coisa mexe por dentro, no sítio das vísceras em que está o contentamento. Mas ser "actor" – que blague. Uma brincadeira da responsabilidade do Lauro António, o realizador. Que tenho "boa figura" e "boa voz" e "boa presença". E esta? Mas é desta maneira externa e acidental e lúdica que se faz uma reputação e uma "personalidade". Modo de se ser de fora para os outros e de os outros o serem. O que é de dentro não tem uma pessoa a que se fixe, não tem visibilidade a que nos fixemos.”
Alguma incompreensão de Vergílio Ferreira para com a força das imagens: uma interpretação, em cinema, vale sobretudo pelo que sugere do interior da personagem. A "boa figura", "boa voz" e "boa presença" são igualmente signos que nos permitem chegar à essência, precisamente ao mais profundo de um ser, de uma situação. O “casting” é precisamente isso: escolher a pessoa certa para o papel.
“Travelling” na auto-estrada para o Porto, onde se repõe “Manhã Submersa”, eu e Vergílio Ferreira na sala do cinema, julgo que uma das salas o “Charlot”, em amena cavaqueira sobre o filme, após a projecção. Há quem fale da influência de Buñuel, de Bergman, de não sei quantos mais cineastas. Vergílio Ferreira regista o episódio na sua “Conta Corrente”: 20-Abril (terça). (…) uma ida ao Porto com o Lauro António para uma nova "estreia" do “Manhã Submersa”. Com Lauro António tem acontecido uma coisa que sei por mim e é a atribuição variada de "influências". A esse propósito, teve ele no colóquio, após a exibição do filme, uma observação curiosa: não há mal que nos atribuam muitas influências; mal é quando nos atribuem só uma. Ponho-me a reflectir, acho que tem certa razão. Comigo, aliás, no que se refere a influências, é uma fartura.”
Claro que haverá influências. No mundo nada se cria, tudo se transforma. Uma influência manifesta, pode ser cópia, plágio. Muitas, é a vida, ao longo da qual nos vamos alimentando do que vemos, do que lemos, do que ouvimos, do que nos toca a pele, do que nos molda. Somos o produto de tudo o que fica em nós, quando tudo o mais desaparece. Cada personalidade é o resultado dessa mistura sincrética.
Volto à sua casa em Lisboa. Anos depois da estreia de “Manhã Submersa”, confesso-lhe que gostaria muito de adaptar “Até ao Fim”. Ele acha que eu faria um filme magnífico de “Em Nome da Terra”, livro de que gosto muito, mas não me seduz para cinema. Já experimentei o “beco sem saída” com adolescentes, não me apetece entrar noutro “huit clot”, agora da terceira idade. “Até ao Fim”, sim. Mas há um cineasta alemão que o quer adaptar. Vergílio Ferreira hesita em ceder os direitos, “muito bem pagos”, porque eu punha a hipótese de o adaptar. Liberto-o de qualquer compromisso ou constrangimento. Afinal a minha carreira de cineasta, depois do relativo sucesso de “Manhã Submersa”, tem sido muito difícil. Contaram-me que colegas meus, uma vez reunidos em conciliabo, haviam jurado: “Este gajo nunca mais há-de filmar!”, o que quase se concretizou. Não quero ser empecilho, afinal nem tinha pago nada para reter os direitos. Vergílio Ferreira, que nunca me deixara sequer ler os seus dois primeiros romances, que considera obras de juventude, sem grande préstimo, vai desencantar uma primeira edição de “O Caminho Fica Longe” e escreve com a letra miudinha que o caracterizava, “o imbricado da escrita”, como lhe chamava, uma dedicatória significativa: “Ao Lauro António esta maneira desculpável (?) de se ser infantil, com um abraço amigo do Vergílio Ferreira. Junho de 1982.”
Falando de dedicatórias, uma que me tocar particularmente. Uma primeira edição de “Manhã Submersa”: “Ao Lauro António que fez deste livro uma razão para eu ter algum orgulho nele. Com uma abraço do Vergílio Ferreira. Março de 90.”
Em 1983 realizei para a RTP uma série, “Histórias de Mulheres”, que agrupou quatro histórias, uma delas retirada de um conto de Vergílio Ferreira, “Mãe Genoveva”. Transpus o cenário da Beira para o Alentejo, rodei-o em Terena, uma aldeia perto de Estremoz. O conto de Vergílio Ferreira dava hipótese de fazer uma experiência narrativa que me interessava, dado que se prestava bem ao estilo, rigoroso e conciso, do escritor, e à sua propensão para conter a emoção e evitar todo o sentimentalismo fácil. Procurei, portanto, que tudo o que de dramaticamente importante sucedesse, acontecesse fora do enquadramento. As imagens seriam apenas um reflexo, um indício, do que realmente ocorre. Era uma história de clandestinidade e polícia política, já de si nebulosa, pouco clara. Subversiva, furtiva, oculta. Desenrolando-se pela calada da noite, por entre sombras e vestígios. Penso que se apropriava bem o tom escolhido, que eu julgava inquietante E soturno.
É um filme de que gosto muito, mas difícil para o público, reconheço. Temi pela reacção de Vergílio Ferreira, que quase não acompanhou nem a preparação, nem as filmagem ou a montagem. Apenas viu o filme terminado, já em Lisboa, depois de ter passado pelo festival da Figueira da Foz. Não tínhamos falado muito, anteriormente, sobre este pequeno filme de uma hora, rodado durante uma semana num Alentejo escaldante. Afinal, Vergílio Ferreira foi dos que melhor entenderam esta tentativa, pelo menos tendo em conta as suas considerações expressas numa das páginas do volume IV da sua "Conta-Corrente", referindo-se globalmente à série “Histórias de Mulheres”, e em particular a “Mãe Genoveva”: " São filmes depurados à essência narrativa, despojados de pormenores, lentos, mas sempre na expectativa do que daí acontecerá (...) "Mãe Genoveva" quase não tem falas, só a pureza da sequência de imagens, sem alterar a tonalidade emotiva, mesmo quando seria caso disso. Filme transparente, discreto, quase absoluto. (...) Gostei bastante deles e muito ainda de gostar por essas razões."
Perto do “the end”, apenas mais uma recordação: em 1993, no Porto, na Fundação Eng. António de Almeida, Vergílio Ferreira foi o centro de um “Colóquio Interdisciplinar”, por altura das comemorações dos seus cinquenta anos de vida literária. Lá estiveram, durante três dias, a coincidirem com a data de nascimento do escritor, alguns dos maiores vultos nacionais e estrangeiros, que se tinham dedicado ao estudo da sua obra. Nesse colóquio fui convidado a intervir de duas formas, através de uma comunicação, onde tentava dar uma ideia das relações do escritor com o cinema, e através da exibição de três filmes meus, dois passados numa sala de cinema, à noite, um, “Vergílio Ferreira numa “Manhã Submersa”, a encerrar a sessão do colóquio. O filme passou perante uma sala repleta, e no final assisti a uma das ovações mais calorosas que me foi dado ouvir. Mas o melhor de tudo, não foram sequer as palavras de Óscar Lopes ou Eduardo Lourenço, enaltecendo o significado do filme, mas o abraço estimulante do Vergílio, e as palavras segredadas quase ao ouvido, nesse momento: “Já sabia que este filme era bom, mas só agora percebi quanto ele é importante. Sabe que lhe disse, nesses depoimentos, coisas que nunca antes tinha revelado?”
Não pude deixar de ficar orgulhoso. Como hoje ainda o estou por permitir que alguns dos meus filmes tenham eternizado não só as palavras e as ideias do escritor, como ajudado a imortalizar o rosto e a figura do homem. Quando a saudade aperta, ponho a rodar o dvd, e ouço: “A minha biografia começa aqui – na rampa.” E sei que Vergílio Ferreira continua presente. Como presente e vivo se encontra no túmulo que olha a serra. Ele é um pouco da nossa imortal identidade. Cultural, artística, literária, geográfica, antropológica.
“Fade out” ou “fusão em negro”, enquanto se ouve em off o orador agradecer: “Muito obrigado a todos pela vossa simpática atenção, mas creiam que para mim é sempre um prazer recordar e falar de Vergílio Ferreira. Muito obrigado.”
Lauro António, Gouveia, 7 de Maio de 2009.
3 comentários:
aprecio sempre..............muito
ler-te...
Um beijo
(e à Família tb)
É bastante nobre o facto de relatar esse convívio com o maior escritor português neste espaço à disposição de todos. Muito obrigado.
De resto fiquei sempre intrigado com o actor que faz de António em "Manhã Submersa". Foi este filme o único que fez? Que lhe aconteceu?
O texto é ótimo, diria mesmo, óptimo! mas, meu querido Mr Movie, a vida tem passado como passa o Pendular nos apeadeiros... só se vêem as janelas quase juntas pela impressão q a velocidade imprime. Por isso j´ai du mal à te lire, mais je reviendrai, tôt ou tard.
Beijos pra ti e pra MEC (ela continua com um olho clínico para fotos!)
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