“Ervas Daninhas” em português pressupõe quase unicamente um significado pejorativo que tanto “Herbes Folles” (em francês) ou “Wild Grass” (em inglês) não comportam. Tanto em francês, no original do filme, como na sua tradução inglesa, as palavras “folle” e “wild” arrastam-nos para outros territórios mais de acordo com a intenção desta belíssima obra de Alain Resnais, que, aos 87 anos, ostenta uma clarividência de olhar, uma modernidade de escrita, uma vivacidade de espírito, uma alegria de viver e um humor contagiantes.
O filme parte de um romance de Christian Gailly, “L’Incident”, que foi saudado entusiasticamente aquando da sua saída em França. Um incidente, um acaso é o ponto de partida para uma história de amor no mínimo muito pouco habitual. Mas o que são histórias de amor habituais? Esta é “louca” sim, “selvagem” também, mas muito pouco daninha. Ou então as ervas daninhas têm de ser observadas sob um prisma muito diferente.
Por partes: Marguerite Muir (Sabine Azéma, mulher de Alain Resnais e uma das suas actrizes fetiches, nas últimas décadas), dentista de profissão e aviadora nos tempos livres (repare-se: tempos “livres”), vai a uma sapataria, comprar um par de sapatos. À saída roubam-lhe a mala. Georges Palet (André Dussollier, outro actor habitual em Resnais), de passado misterioso ou mesmo suspeito, ou então senhor de uma fértil imaginação, encontra a carteira, sem dinheiro mas com todos os documentos, junto ao seu carro, no parque de estacionamento de um centro comercial. Ele analisa os cartões, descobre que ela tem brevet de piloto de aviação e ele adora aviões. Mas não se encontram à primeira, nem à segunda, como este início de história pode fazer prever. Não. Ele põe a hipótese de telefonar a Marguerite, mas suspende o gesto e vai entregar a carteira no posto de polícia mais perto. É então Marguerite a telefonar-lhe para lhe agradecer o gesto, a atenção. Ele, entretanto, exige mais, quer um encontro, tomar um café, quem sabe?, iniciar uma história de amor, ou simplesmente uma relação. De sexo. Ela nega-se, obviamente, ou não tão obviamente assim. Ele insiste, telefona, escreve, aparece, espia-a, fura-lhe os pneus do carro, impõe-se obsessivamente. Ela sente-se constrangida, resiste, ignora-o, revolta-se, vai à polícia não para apresentar queixa mas para pedir ajuda, uma palavra intimidatória. Depois aproxima-se, vai espera-lo à saída de uma sala de cinema, onde se projectam “As Pontes de Toko-Ri” (The Bridges at Toko-Ri), filme de 1954. Sentam-se numa mesa de um bistrot, falam, olham-se, caminham lado a lado pelo passeio. Na noite parisiense. Ele é casado. Ela não. Encontram-se e beijam-se apaixonadamente, sofregamente, mas este é o único contacto visível. Eles são mesmo ervas loucas ou selvagens que, tal como as ervas daninhas, irrompem nos locais mais invulgares. São essas ervas, como se vê logo nas imagens iniciais do filme, que rebentam com o alcatrão das avenidas e estradas e dão cor e vida ao cinzento dos pavimentos uniformizados. São elas que estalam com as estruturas estabelecidas, com os preconceitos, com o verniz das conveniências.
Claro que andam por aqui muitas referências ao “Petit Prince”, de Saint-Exupery (Marguerite aparece com um fato que relembra a personagem, entre algumas outras alusões) e este é mais um facto a pesar na leitura final desta obra irónica e nostálgica, que mescla pessimismo e optimismo nas relações humanas, e que dá um retrato complexo e de uma singular elegância e despojamento, da condição humana, onde nada é perfeito, é certo, mas onde por vezes são as imperfeições que conferem graça e dão sentido à vida.
Profundamente literário na sua construção, com recurso frequente à voz de um narrador, ao pensamento ou aos diálogos em “voz off”, “Les Herbes Folles” é, todavia, um delicado e frágil objecto de arte cinematográfica que relembra a criatividade intensa de um autor que desde as curtas metragens do início de carreira nunca se acomodou a um modelo, mas investigou sempre nos terrenos da memória e do tempo, que nunca deixou de cruzar o tempo histórico e as paixões individuais, e que, apesar de ter surgido conjuntamente com a “nouvelle vague” nunca se identificou completamente com ela. Resnais é definitivamente de uma outra raça, dos criadores com um universo pessoal inconfundível. Ele cultiva desde há muito um jogo intenso que cruza contrários, a vanguarda e a cultura de massas, o drama dito “sério” e a loucura da “comédia de boulevard”, o musical e o puzzle de personagens e sentimentos. Do homem e da mulher, da História e da história.
Christian Gailly, descobrimo-lo na sua biografia, antes de escritor foi saxofonista. O seu romance evolui ao ritmo desses encontros e desencontros em que o jazz é fértil, nessa inspiração de momento, nesses improvisos que se estruturam e desestruturam de forma natural. Terá sido essa liberdade musical do texto literário que agradou a Resnais para dele extrair mais uma labiríntica aventura cujo significado mantém aberto para os espectadores o completarem a seu contento. Como é bonito e sugestivo um filme assim. Sofisticado e leve na aparência, denso e complexo na essência.
Uma viagem no cockpit de um aeroplano ao sabor do vento da liberdade. Como o amor. Como a vida.
Alain Resnais em rodagem:
AS ERVAS DANINHAS
Título original: Les Herbes Folles
Realização: Alain Resnais (França, Itália, 2009); Argumento: Alex Reval, Laurent Herbiet, segundo romance de Christian Gailly (L’Incident); Produção: Jean-Louis Livi, Julie Salvador; Música: Mark Snow; Fotografia (cor): Eric Gautier ; Montagem: Hervé de Luze ; Design de produção: Jacques Saulnier; Guarda-roupa: Jackie Budin; Maquilhagem: Flore Masson; Direcção de Produção: Jérémie Chevret, Guy Courtecuisse, Philippe Roux; Assistentes de realização: Matthieu Blanchard, Nathalie Depose, Christophe Jeauffroy; Departamento de arte: Pierre-Emmanuel Chatiliez, Jacky Hardouin, Yvan Hart ; Som: Nicolas Becker, Jean-Marie Blondel, Katia Boutin, Gérard Hardy; Efeitos visuais: Frederic Moreau, Sarah Moreau; Companhias de produção: F Comme Film, Studio Canal, France 2 Cinéma, BIM Distribuzione, Canal+ , TPS Star, Eurimages, Cinémage 3, Centre National de la Cinématographie (CNC), Région Ile-de-France; Intérpretes: André Dussollier (Georges Palet), Sabine Azéma (Marguerite Muir), Emmanuelle Devos (Josepha), Mathieu Amalric (Bernard de Bordeaux), Anne Consigny (Suzanne Palet), Michel Vuillermoz (Lucien d'Orange), Edouard Baer (voz do narrador), Annie Cordy (a vizinha), Sara Forestier, Nicolas Duvauchelle, Vladimir Consigny, Dominique Rozan, Jean-Noël Brouté, Elric Covarel, Valéry Schatz, Stefan Godin, Grégory Perrin, Roger Pierre, Paul Crauchet, Jean-Michel Ribes, Nathalie Kanoui, Adeline Ishiomin, Lisbeth Mornet-Arazi, Françoise Gillard, Magaly Godenaire, Rosine Cadoret, Vincent Rivard, Dorothée Blank, Antonin Minéo, Emilie Jeauffroy, Isabelle Des Courtils, Candice Charles, Patrick Mimoun, Cédéric Deruytère, Olivier Martinaud, etc. Duração: 104 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos (Qualidade); Estreia em Portugal: 1 de Abril de 2010.
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