CHABROL FICARÁ PARA SEMPRE
No dia 2 de Junho de 2006, escrevi aqui sobre "A Comédia do Poder". Transcrevo o texto como homenagem a um dos grandes cineastas europeus.
O bom e velho Chabrol continua imparável. Nada o demove há quase 50 anos de fazer o cinema que quer. Há títulos melhores, outros menos bons, mas não filmes maus e sobretudo desinteressantes na carreira deste veterano que se iniciou na “Nouvelle Vague”, em finais da década de 50, e que daí até hoje não pára de nos surpreender com as suas análises ácidas, cínicas e bem-humoradas sobre os bons (raros) e maus (muitos) costumes da burguesia francesa. Chabrol lá continua, “bon vivant”, comendo e bebendo muito bem, fumando e catrapiscando mulheres bonitas, fazendo filmes inteligentes pelo meio e julgando os seus contemporâneos, não por aquilo que muitos julgam, mas por aquilo que ele mais abomina: a hipocrisia, o puritanismo, o falso moralismo.
Neste aspecto, “L’ Ivresse du Pouvoir” (“A Bebedeira do Poder” e não “A Comédia do Poder” como aparece traduzido - por alguma razão Chabrol abandonou este título, que era o que funcionava durante a rodagem) é um manancial de sugestões e só quem não percebe nada de Chabrol pode deixar-se enganar e levar para outros terrenos. “L’ Ivresse du Pouvoir” não é um filme sobre a corrupção do poder, sobre as ligações entre o poder político e o poder económico. Isso seria muito directo e muito fácil para Chabrol, que já tocou no tema vezes sem fim. Agora esse não é o tema, ainda que ele esteja presente como pano de fundo. Mas o tema aqui é a bebedeira de poder de uma juíza de instrução que se julga a mulher mais poderosa de França porque pode mandar prender e torturar psicologicamente à sua frente esses “Presidentes” que não valem nada ao pé da sua intransigência, da sua moral incorrupta, da sua decência imaculada.
Jeanne Charmant-Killman (admirável Isabelle Huppert, que se presta a um jogo de uma frieza e de um rigor de composição sem paralelo) é uma juíza que tem entre mãos uma investigação explosiva que irá mandar para a cadeia um conjunto de administradores e políticos corruptos. Nada de muito especial, pois que eles mesmo admitem que é precisos besuntar as mãos, que as “luvas” fazem parte dos negócios, que as percentagens por baixo da mesa são o que são. De resto, bons jantares, amantes, charutos (que divertido é Chabrol a ostentar charutos, e a mostrar cigarros um pouco por todo o lado, até parecer uma vingança contra o politicamente correcto!), viagens, férias, boa vida, quem a não quer, podendo ter à sua disposição cartões de crédito fornecidos pela empresa?
Não o quer a incorruptível Charmant-Killman (Charmant, não se esqueçam!) que não deixa fumar na sua presença (mas ela fuma), não permite as investidas do marido na cama (está cansada, fica para amanhã), não aceita a sua apetência pelo sobrinho (apesar de passar os dias com os lábios a centímetros dos dele – Chabrol é terrível!), não confia em ninguém, a não ser no seu fiel colaborador de longa data (verão com que resultados!), não recebe uma caixa de vinhos como oferta, apesar de não desdenhar de um aperitivo durante a noite, movimenta-se com discrição, trabalha até altas horas da noite, enfim, um verdadeiro exemplo para todos, mas que Chabrol acha que ultrapassa todas as marcas de humanidade. Afinal a Charmant juíza Killman irá cruzar-se no hospital com o marido que se tentou suicidar e o desgraçado do “Presidente” que sofre de uma depressão profunda. E tudo para quê? Em nome de quê? Com que resultados? Assim volta tudo ao princípio e a juíza encolhe os ombros e confessa que se está nas tintas para tudo. Afinal o seu poder não é real, é virtual, é o poder que os outros lhe entregam, lhe permitem usar e ostentar, mas que só usa e ostenta enquanto outros o permitirem. Este é um jogo viciado por muitos lados e o encontro final de Charmant-Killman e do “Presidente” Michel Humeau, mais não é do que o cruzar de duas vítimas de um mesmo processo. Com a agravante de, como diz Chabrol, “Jeanne nos aparecer progressivamente como uma espécie de Robespierre de saias, à medida que vamos tendo cada vez mais compaixão por Humeau…”
Resumindo: Chabrol pode compreender alguns delitos, mas não compreende os que se querem sobre humanos de pés de barro. Charmant-Killman só começa a ser simpática quando desce do pódio onde ela própria se colocara e começa a perceber o desastre da sua vida pessoal. Quando descobre que a felicidade pode ser Félix, sem outras ambições que um bom poker. Quando descobre que o Sibeau afinal era tão ambicioso como ela, ainda que em campos opostos. Quando percebe afinal a fragilidade do ser humano.
Excelente fotografia de Eduardo Serra, que combate todos os rodriguinhos e nos oferece um quotidiano sem magia, magnificas sequências (como o plano sequência inicial, com a saída de Michel Humeau do escritório, acompanhado pela câmara à mão até ser detido pela polícia fora do edifício), notáveis actores (além da já referida Isabelle Huppert, há ainda a referir François Berléand, Patrick Bruel, Jean-François Balmer ou Thomas Chabrol) fazem de “A Comédia do Poder” uma triste comédia a não perder, assinada por um dos maiores cineastas europeus vivos.
A COMÉDIA DO PODER (L’Ivresse du Pouvoir), de Claude Chabrol (França, 2006), com Isabelle Huppert, François Berléand, Patrick Bruel, Jean-François Balmer, etc. 110 min, M/ 12 anos.
O bom e velho Chabrol continua imparável. Nada o demove há quase 50 anos de fazer o cinema que quer. Há títulos melhores, outros menos bons, mas não filmes maus e sobretudo desinteressantes na carreira deste veterano que se iniciou na “Nouvelle Vague”, em finais da década de 50, e que daí até hoje não pára de nos surpreender com as suas análises ácidas, cínicas e bem-humoradas sobre os bons (raros) e maus (muitos) costumes da burguesia francesa. Chabrol lá continua, “bon vivant”, comendo e bebendo muito bem, fumando e catrapiscando mulheres bonitas, fazendo filmes inteligentes pelo meio e julgando os seus contemporâneos, não por aquilo que muitos julgam, mas por aquilo que ele mais abomina: a hipocrisia, o puritanismo, o falso moralismo.
Neste aspecto, “L’ Ivresse du Pouvoir” (“A Bebedeira do Poder” e não “A Comédia do Poder” como aparece traduzido - por alguma razão Chabrol abandonou este título, que era o que funcionava durante a rodagem) é um manancial de sugestões e só quem não percebe nada de Chabrol pode deixar-se enganar e levar para outros terrenos. “L’ Ivresse du Pouvoir” não é um filme sobre a corrupção do poder, sobre as ligações entre o poder político e o poder económico. Isso seria muito directo e muito fácil para Chabrol, que já tocou no tema vezes sem fim. Agora esse não é o tema, ainda que ele esteja presente como pano de fundo. Mas o tema aqui é a bebedeira de poder de uma juíza de instrução que se julga a mulher mais poderosa de França porque pode mandar prender e torturar psicologicamente à sua frente esses “Presidentes” que não valem nada ao pé da sua intransigência, da sua moral incorrupta, da sua decência imaculada.
Jeanne Charmant-Killman (admirável Isabelle Huppert, que se presta a um jogo de uma frieza e de um rigor de composição sem paralelo) é uma juíza que tem entre mãos uma investigação explosiva que irá mandar para a cadeia um conjunto de administradores e políticos corruptos. Nada de muito especial, pois que eles mesmo admitem que é precisos besuntar as mãos, que as “luvas” fazem parte dos negócios, que as percentagens por baixo da mesa são o que são. De resto, bons jantares, amantes, charutos (que divertido é Chabrol a ostentar charutos, e a mostrar cigarros um pouco por todo o lado, até parecer uma vingança contra o politicamente correcto!), viagens, férias, boa vida, quem a não quer, podendo ter à sua disposição cartões de crédito fornecidos pela empresa?
Não o quer a incorruptível Charmant-Killman (Charmant, não se esqueçam!) que não deixa fumar na sua presença (mas ela fuma), não permite as investidas do marido na cama (está cansada, fica para amanhã), não aceita a sua apetência pelo sobrinho (apesar de passar os dias com os lábios a centímetros dos dele – Chabrol é terrível!), não confia em ninguém, a não ser no seu fiel colaborador de longa data (verão com que resultados!), não recebe uma caixa de vinhos como oferta, apesar de não desdenhar de um aperitivo durante a noite, movimenta-se com discrição, trabalha até altas horas da noite, enfim, um verdadeiro exemplo para todos, mas que Chabrol acha que ultrapassa todas as marcas de humanidade. Afinal a Charmant juíza Killman irá cruzar-se no hospital com o marido que se tentou suicidar e o desgraçado do “Presidente” que sofre de uma depressão profunda. E tudo para quê? Em nome de quê? Com que resultados? Assim volta tudo ao princípio e a juíza encolhe os ombros e confessa que se está nas tintas para tudo. Afinal o seu poder não é real, é virtual, é o poder que os outros lhe entregam, lhe permitem usar e ostentar, mas que só usa e ostenta enquanto outros o permitirem. Este é um jogo viciado por muitos lados e o encontro final de Charmant-Killman e do “Presidente” Michel Humeau, mais não é do que o cruzar de duas vítimas de um mesmo processo. Com a agravante de, como diz Chabrol, “Jeanne nos aparecer progressivamente como uma espécie de Robespierre de saias, à medida que vamos tendo cada vez mais compaixão por Humeau…”
Resumindo: Chabrol pode compreender alguns delitos, mas não compreende os que se querem sobre humanos de pés de barro. Charmant-Killman só começa a ser simpática quando desce do pódio onde ela própria se colocara e começa a perceber o desastre da sua vida pessoal. Quando descobre que a felicidade pode ser Félix, sem outras ambições que um bom poker. Quando descobre que o Sibeau afinal era tão ambicioso como ela, ainda que em campos opostos. Quando percebe afinal a fragilidade do ser humano.
Excelente fotografia de Eduardo Serra, que combate todos os rodriguinhos e nos oferece um quotidiano sem magia, magnificas sequências (como o plano sequência inicial, com a saída de Michel Humeau do escritório, acompanhado pela câmara à mão até ser detido pela polícia fora do edifício), notáveis actores (além da já referida Isabelle Huppert, há ainda a referir François Berléand, Patrick Bruel, Jean-François Balmer ou Thomas Chabrol) fazem de “A Comédia do Poder” uma triste comédia a não perder, assinada por um dos maiores cineastas europeus vivos.
A COMÉDIA DO PODER (L’Ivresse du Pouvoir), de Claude Chabrol (França, 2006), com Isabelle Huppert, François Berléand, Patrick Bruel, Jean-François Balmer, etc. 110 min, M/ 12 anos.
1 comentário:
Ele foi um Mestre e um Autor inesquecível.
Abraço cinéfilo
Rui Luís Lima
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