sábado, abril 23, 2011

JOÃO MARIA TUDELA, UM AMIGO

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 João Maria Tudela 
(Lourenço Marques, 1929 — Cascais, 2011)
João Maria Tudela era um amigo. Amigo de todas as horas durante largos anos, já que vivíamos no mesmo prédio da Av. de Roma, e frequentávamos o mesmo café, o Vavá. Encontrava-o quase todos os dias, quando ainda ambos éramos solteiros, passeando o seu cão enorme que era o seu fiel companheiro (tão fiel que um dia comprou um bilhete de cinema para levar o Chiquembo a ver “Os 101 Dalmatas”). Cantor, músico e apresentador de televisão, João Maria foi ainda um homem de sete ofícios, um romântico incurável, e um amigo de excepção. Contou-me um dia que detestava chegar a algum local sem se sentir acompanhado. Por isso, sempre que viajava para longe de Lisboa, enviava de véspera um postal ou carta para si próprio. Quando chegava ao hotel de destino, tinha sempre algo à sua espera.
Não sei se agora que partiu, teve tempo de enviar para o Além, um postal para receber quando lá chegou. Partiu vítima de um AVC súbito e fulminante, quando passeava o seu novo cão nos jardins do Casino do Estoril. Morte com o seu quê de simbólico. Quem o conhecia bem sabe porquê. Ele era um homem do espectáculo, e a ele se devem os primeiros sucessos do novo Casino do Estoril, quando passou para a direcção de Mário Assis Ferreira. Foi lá que surgiram as “Noites de Gala”, que deram um impulso inovador ao que depois viria a ser o Salão Preto e Prata. Eram transmitidas em directo pela RTP e tiveram grande sucesso por essa altura. Mas há ainda um pormenor de valor simbólico a não desprezar. Caído por terra, o seu cão não o abandonou e não permitia que ninguém se aproximasse do seu dono prostrado. Para ele, que adorava cães, esta terá sido uma boa homenagem.
Na noite de Natal de 1988, a RTP entregara ao João Maria a coordenação das festividades, e ele convidou-me para realizar um Conto de Natal, sobre uma ideia dele, que Raul Solnado viria a interpretar de forma brilhante. A história, de sua autoria, vincava bem as ideias generosas do seu autor, um homem que se distinguia pela elegância muito british do seu porte, pela afabilidade do seu convívio, pela abertura de espírito que deixava transparecer.
Veio de Moçambique, de uma família abastada e brasonada, onde nascera a 27 de Agosto de 1929. Estudou na África do Sul até aos 13 anos, depois em Lourenço Marques, no Liceu Salazar, onde começa a actuar como solista. Nunca estudara música, mas tocava piano, guitarra, viola e harmónica vocal com à vontade. Sempre que vinha a minha casa era um dos raros a dar uso a um piano que hoje suporta pilhas de livros. Passou por Coimbra, como estudante, onde se juntou a grupos académicos, estudando pouco, apaixonando-se pelo tradicional fado, e desenvolvendo as capacidades artísticas que fizeram dele um símbolo da música branca de Moçambique. De volta à sua terra natal, empregou-se primeiro na "Companhia de Seguros Império" e depois na "Shell", onde permaneceu durante uma década como responsável comercial. Torna-se um emérito jogador de ténis, chegando a ser considerado um dos melhores atletas de Moçambique nesta modalidade. Interessa-se então pela música de raiz africana, que integra no seu reportório.
Nos anos seguintes continuará a gravar e a actuar ao vivo, iniciando uma parceria com a orquestra de Dan Hill, que o acompanhará nos principais êxitos da época. É de 1959 o seu primeiro e maior êxito de sempre, “Kanimambo”, que fará grande carreira em Portugal continental, nos Estados Unidos e na América do Sul, nomeadamente o Brasil. Considera-se um amador, canta mais por prazer que por profissão, o que não invalida ser considerado na época "o maior cartaz turístico de Moçambique", o que o leva a enveredar por uma carreira profissional. No início da década de 60, João Maria Tudela entra no meio artístico português pela porta grande. Tem uma legião de fãs, uma forma muito sua de cantar, e ganha o “Prémio da Crítica - O Melhor da TV”, em 1962.
Em 1968, depois de ter participado no Festival RTP da Canção, com “Ao Vento e às Andorinhas”, é proibido de voltar à RTP, por ter interpretado a canção “Cama 4, Sala 5”, de José Carlos Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes. Tudela pensa terminar, então, a sua carreira, mas continuará com uma intervenção artística cada vez mais exigente quanto aos autores e temas. Canta “Liberdade”, que se tornará um dos símbolos do 25 de Abril. Entre as suas composições mais conhecidas, além do já citado “Kanimambo” (que foi um fenómeno de vendas), citam-se “Hambanine”, “O Meu Chapéu”, “Diz que Gostas de Mim”, “Menina das Tranças”, “No País do Sol”, “Soldado Português”, “Moçambique”, “Liberdade” ou “Fuzilaram um Homem num País Distante”.
Benfiquista dos sete costados, é célebre um acontecimento em que participou no estádio da Luz. Poucos minutos depois de ter entrado para o camarote que então detinha com alguns amigos (creio que, entre eles, o Tordo), Eusébio marca um daqueles seus golos do outro mundo. Tudela levanta-se, sai e volta pouco depois: “Fui comprar outro bilhete, que o primeiro já se esgotara com o golo do Eusébio.”
Casou apaixonadíssimo pela Filomena, muitos anos mais nova que ele. Nessa altura, rondava os 60 anos, lamentava-se de talvez não ver os filhos crescer. Mas viu-os chegar a adultos. Até que um AVC fulminante o levou. Morreu nesta manhã de sexta-feira Santa, no hospital de Cascais. Tinha 81 anos.
Estará agora a ler um postal por si enviado lá para onde foi? Se o postal não chegou, chegará por certo esta missiva de amigos que o não esquecem. 

 Três fotografias de um album pessoal.

2 comentários:

Madalena disse...

Bem-haja Lauro António por esta homenagem e biografia. O João Maria Tudela ficou indelevelmente ligado à Cidade que cantou, ao país berço que também cantou e nunca perdeu o traço português. Este é o verdadeiro moçambicano: o que assume todos os seus passados, todas as suas almas, todas as suas culturas. Lamento a sua morte mas aceito, pois todos temos essa "carta" no nosso destino. Aconchega-me bastante a ideia de que foi um homem feliz, realizado a quem nunca faltaram os amigos e que conseguiu realizar os sonhos, nomeadamente esse que refere de ver os filhos crescer. Um abraço!

C. Cardoso disse...

E assim falam os amigos.