sexta-feira, setembro 09, 2011

"AMADEUS" NO CINEMA

 
Estreou-se ontem, dia 8 de Setembro de 2011, no Teatro Nacional de D. Maria II, "Amadeus", a peça de Peter Shaffer. Um bom espectáculo, a não perder, que desde já recomendo, e de falarei mais adiante. 
Mas a curiosidade levou-me a recuar até 1985, Fevereiro, e reler o que então escrevi sobre o filme de Milos Forman. Aqui fica.
“AMADEUS”, de Milos Forman

“Amadeus" foi, inicialmente, uma peça de teatro de Peter Shaffer que apaixonou as plateias dos palcos londrinos e americanos, tendo sido encenada e interpretada também por Roman Polanski, em Paris. Mais tarde, seria Milos Forman, outro cineasta do Leste radicado no Ocidente, a interessar-se pela obra para a transpor para o cinema.

A peça não procurava biografar a vida de Wolfgang Amadeus Mozart, mas dar dela a visão de António Salieri, músico oficial da corte de Viena, que manteve com o singular compositor uma relação tumultuosa, mas secreta, de paixão e ódio, de admiração e despeito, de atracção e ciúme. A peça estruturava-se como uma memória monologada em direcção ao público, onde sobressaia o choque de personalidades entre Mozart e Salieri e entre Mozart e o seu tempo. A componente musical era diminuta (cerca de dez minutos), por confessada incapacidade de Peter Shaffer para a introduzir, com uma maior insistência, no espectáculo. Este seria um aspecto que Milos Forman iria tratar com grande desenvoltura na versão cinematográfica, onde teve ainda o ensejo de aproveitar todas as potencialidades que o cinema oferecia para uma soberba reconstituição da época, não como cenário decorativo onde se inscreve uma acção, mas como elemento (fundamentalmente integrante, componente imprescindível de expressividade no contexto global de filme.
Um dos temas caros a toda a obra de Milos Forman, e que vem já da sua época checoslovaca. dos tempos de “Os Amores de Uma Loura”. de “Cerny Petr”, de “O Baile dos Bombeiros”. e que se irá desenvolver em “Taking Off”, “Voando Sobre Um Ninho de Cucos”, “Hair” ou “Ragtime”, os seus títulos americanos, é precisamente o confronto entre o rebelde e a sociedade do seu tempo, que. não o podendo, não o querendo, ou não o sabendo assimilar, o destrói. “Voando Sobre Um Ninho de Cucos” é, neste particular exemplar, tal como o passará a ser igualmente, a partir de agora, “Amadeus”, ainda com maiores razões, se possível, dado que se trata de uma obra mais complexa e rica. 

Para a sua adaptação ao cinema, Milos Forman e Peter Shaffer encontraram soluções admiráveis para tornar mais explícitos certos aspectos da obra teatral. A escolha de um padre para assistir à confissão de Salieri é uma delas. O filme inicia-se por uma tentativa de suicídio de Salieri, já velho e atormentado pelos remorsos de ter destruído Mozart.
“Perdoa-me, Mozart, perdoa ao teu assassino!” é o grito que se percebe por detrás de uma porta fechada, onde agoniza o velho músico da corte de Viena. Conduzido a um manicómio, aí receberá a visita de um padre que irá escutar a sua confissão, numa altura em que não existiam ainda os psiquiatras, e que Irá funcionar como uma consulta desse tipo. Salieri revela a esse jovem padre todo o drama que transporta consigo desde o tempo em que Mozart irrompeu pela corte de Viena e pôs em causa o seu prestígio, o valor da sua música e, sobretudo, a sua auto-confiança. Porque, para lá de tudo o mais, Salieri “sabe” que Mozart é o grande músico, o talento, que ele nunca conseguiu, nem conseguirá vir a ser. A forma como este toca de ouvido a composição que Salieri criara para saudar a sua chegada, e logo ali a transforma, e transfigura, num rasgo de génio, para sempre irá perturbar o equilíbrio de Salieri.
Perturbação que se manterá, recalcada no mais íntimo daquele homem puritano e casto, que oferece a Deus a sua vida, a troco de uma dádiva de génio que nunca recebeu, e descobre estampada no rosto daquele miúdo, irreverente e impudico, que surpreende enrolado debaixo das saias de uma qualquer cortesã. Salieri sabe que Deus o abandonou e revolta-se contra a divindade que assim procede, numa cena que marcará toda a obra. A partir daí Salieri idealiza um assassínio premeditado à distância, com uma transferência de talento que se concretiza à beira da morte de Mozart, quando este lhe vai ditando as notas que irão compor o “Requiem” que acompanhará o seu enterro. Salieri junto ã sua cama assiste fascinado à criação de um génio. E nós, espectadores eleitos deste acto sublime, descobrimos como se constrói, nota a nota, uma obra musical, numa autêntica lição de música. Empolgante e admirável. 

Como empolgante e admirável é todo este filme marcado por rasgos de génio, onde Milos Forman atinge um dos momentos mais altos da sua carreira. Dois actores, inspirados e rigorosos no seu trabalho, oferecem o corpo a Amadeus e Salieri: Tom Hulce e F. Murray Abraham. O primeiro é um Mozart turbulento e louco, infantil e inocente, desbocado e brejeiro, tocado pela graça divina e transbordante de energia e de criatividade até ao último momento de vida. O outro é o frio e ressequido Salieri, escondendo, atrás de uma máscara seca e austera, todo o turbilhão de sentimentos contraditórios que o invade.
Notável é a banda sonora, com um aproveitamento original e quase didáctico da música de Mozart para, através dela, melhor se servirem as intenções do filme. Não só a cena derradeira da escrita do “Requiem” é fabulosamenle bem conseguida, como o são igualmente todas as outras onde surgem excertos de obras musicais de Mozart. Brilhante é ainda a fotografia de Miroslav Ondricek, funcionando como precioso auxiliar da arte do decorador e do cineasta, para reconstruir um tempo e uma época. Um filme empolgante. Uma obra-prima. 

AMADEUS

Título original: Amadeus
Realização: Milos Forman (EUA, 1984); Argumento: Peter Shaffer, segundo obra teatral homónima de sua autoria; Produção: Michael Hausman, Bertil Ohlsson, Saul Zaentz; Música: Wolfgang Amadeus Mozart (excertos); Fotografia (cor): Miroslav Ondrícek; Montagem: Michael Chandler, Nena Danevic, T.M. Christopher (montagem de 2002: “director's cut”); Casting: Maggie Cartier, Mary Goldberg; Design de produção: Patrizia von Brandenstein; Direcção artística: Karel Cerný; Guarda-roupa: Theodor Pistek, Christian Thuri; Maquilhagem: Paul LeBlanc, Jiri Simon, Dick Smith; Direcção de Produção: James Fee, Ronald Jacobs, Václav Rouha; Assistentes de realização: Michael Hausman, Jan Kubista, Petr Makovicka, Tommaso Mottola, Jan Schmidt, Tomás Tintera, Mirek Lux; Francesco Chianese, Karel Koci, Michael Ross, Josef Svoboda; Som: Tomas Cervenka, Jan Friedrich, Vivien Hillgrove Gilliam, John Nutt, B.J. Sears, Milan Sodomka, Ivo Spalj; Efeitos especiais: Bill Cohen, Ian Corbould, Neil Corbould, Paul Corbould, Gordon Coxon, Steve Crawley, Ricky Farns, Dave Garrett, Martin Gutteridge, Jimmy Harris, Garth Inns, Kevin Mathews, Kevin Mathews, Brian Smithies; Efeitos visuais: Thomas Baker; Companhias de produção: The Saul Zaentz Company; Intérpretes: F. Murray Abraham (Antonio Salieri), Tom Hulce (Wolfgang Amadeus Mozart), Elizabeth Berridge (Constanze Mozart), Simon Callow (Emanuel Schikaneder / Papageno), Roy Dotrice (Leopold Mozart), Christine Ebersole (Katerina Cavalieri / Constanza), Jeffrey Jones (Imperador Joseph II), Charles Kay (Conde Orsini-Rosenberg), Kenny Baker, Lisabeth Bartlett, Barbara Bryne, Martin Cavina, Roderick Cook, Milan Demjanenko, Peter DiGesu, Richard Frank, Patrick Hines, Nicholas Kepros, Philip Lenkowsky, Herman Meckler, Jonathan Moore, Cynthia Nixon, Brian Pettifer, Vincent Schiavelli, Douglas Seale, Miroslav Sekera, John Strauss, Karl-Heinz Teuber, Miro Grisa, Helena Cihelnikova, Karel Gult, Zuzana Kadlecova, Magda Celakovska, Slavena Drasilova, Eva Senková, Leos Kratochvil, Gino Zeman, Janoslav Mikulín, Ladislav Krecmer, Karel Fiala, Jan Blazek, Zdenek Jelen, Milada Cechalova, etc. Duração: 160 minutos (180, “director’s cut); Distribuição em Portugal: Filmes Castello Lopes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 21 de Fevereiro de 1985.

Sem comentários: