A MINHA HOMENAGEM
Há uns meses, para um ciclo sobre cinema europeu,escrevi sobre Theo Angelopoulos e o seu filme "O Olhar de Ulisses": Aqui fica como homenagem a um dos mestres do cinema contemporâneo.
THEODOROS ANGELOPOULOS
Theodoros Angelopoulos (em grego: Θεόδωρος Αγγελόπουλος) nasceu a 27 de Abril de 1935, em Atenas, Grécia. Estudou direito na Universidade de Atenas. Após o serviço miliar viajou até Paris estudando na Sorbonne e matriculando-se depois no IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos), regressando depois a Atenas, onde iniciou uma carreira como jornalista e crítico de cinema.
Começou a sua obra cinematográfica na curta-metragem, em 1967, durante a Ditadura dos Coronéis. As suas primeiras longas-metragens ostentam um cunho profundamente político, analisando a Grécia moderna: Days of '36 (Meres Tou 36, 1972), The Travelling Players (O Thiassos, 1975) ou The Hunters (I Kynighoi, 1977). Estabelece uma equipa com quem colabora regularmente: o director de fotografia Giorgos Arvanitis, o argumentista Tonino Guerra ou o compositor Eleni Karaindrou. Uma narrativa ambígua, um tempo lento e saboreado da imagem, sequências longas em planos fixos coreografando diversas personagens, uma estrutura narrativa hábil e rigorosa, intelectualizada e filosófica na sua riqueza fazem de Angelopoulos um dos mais importantes realizadores vivos. Em 1978, foi membro do Júri do 28º Festival de Cinema de Berlim. Os seus filmes foram presença regular nos primeiros anos do extinto Festival de Cinema da Figueira da Foz.
Filmografia
Como realizador:
1958: E EKPOMBEI (The Broadcast) (curta-metragem)
1970: ANAPARASTASI (Reconstrução)
1972: MERES TOU '36 (Dias de ‘36)
1975: O THIASSOS (A Viagem dos Artistas)
1977: E KENEGE (Os Caçadores)
1980: O MEGALEXANDROS (Alexandre, o Grande)
1981: CHORIO ENA, KATEKOS ENAS… (One Village, One Villager) (TV)
1983: ATHINA, EPISTROFI STIN AKROPOLI (Atenas) (TV)
1984: TAXIDI STIN KYTHIRA (Viagem a Citara)
1986: O MELISSOKOMOS (The Beekeeper)
1983: TOPO STIN OMICHLI (Paisagem no Nevoeiro)
1991: TO METEORO VIMA TOU PELARGOU (O Passo Suspenso da Cegonha)
1995: TO VLEMMA TOU ODYSSEA (O Olhar de Ulisses)
1995: LUMIERE ET COMPAGNIE (um episódio)
1998: MIA EONIOTITA KE MIA MERA (A Eternidade e Um Dia)
2007: CHACUN SON CINÉMA (A Cada um o seu Cinema) (um episódio)
2004: TRILOGIA I: TO LIVADI POU DAKRYZEI (The Weeping Meadow)
O OLHAR DE ULISSES
“Também a alma, se quer reconhecer-se, deve olhar para a outra alma.” Platão.
Com esta citação abre o brilhante trabalho de Theo Angelopoulos a que deu o nome “O Olhar de Ulisses” e com o qual procura uma inteligente e invulgar actualização da viagem de Ulisses, retratada na “Odisseia”, de Homero.
Estamos em 1994-95 (o filme estreou em 95). Um realizador grego, exilado nos EUA (Harvey Keitel), regressa à sua aldeia natal para apresentar uma polémica obra sua, que cria alguns atritos aquando da sua exibição. A sala de cinema sofre pressões e recusa a sua passagem, e o cine clube local resolve projectá-lo numa praça da cidade, à chuva, gerando confrontos entre facções contra e a favor. O cineasta não parece muito preocuapado com o facto, e percebe-se rapidamente de que este regresso à Grécia é apenas um pretexto para uma outra aventura. Ele anda a investigar o que aconteceu a três bobines de um filme rodado nos primórdios do cinema (terá sido mesmo o primeiro filme rodado na Grécia e nos Balcãs) pelos irmãos Manakis, e que foram dadas como desaparecidas. Julga-se mesmo que nunca terão sido reveladas e não se sabe do seu paradeiro. Será que existem? Serão apenas um mito bem propagado?
O cineasta despede-se da Grécia e parte para a sua viagem pessoal, um périplo pelos países balcânicos. Toma um táxi e viaja até à Albânia. Na data em que decorre o filme, estes países acabam de sair da época de influência soviética e experimentam um caminho novo, com liberdade, mas ameaças latentes, um pouco a cada esquina. O motorista também tem o seu lado filosófico: “A Grécia morreu. Vivemos três mil anos entre estátuas.” O realizador começa a perceber igualmente que a realidade que vai conhecer (ou reconhecer, pois alguma já a viveu quarenta anos antes) está muito mudada: “A realidade dos Balcãs é muito mais difícil do que a da América.”
A viagem inicia-se pela fronteira com a Albânia, mas continuará a ser intercalada com imagens de um filme mudo, de 1909, onde se vêem fiandeiras. Irão funcionar como um refrão ao longo da obra, um reavivar de um olhar perdido no tempo. Afinal este é um filme sobre o olhar, o olhar de Ulisses em busca de um outro olhar, de um outro cineasta, olhar perdido no tempo e preservado em três caixas metálicas que nunca chegaram a conhecer a luz do dia, ou a luz do projector que lhes restituiria a vida. Ele sabe que os irmãos Manakis não se interessavam particularmente por política ou questões rácicas. Eles fotografavam pessoas. Registavam tudo. Todas as transformações, todos os contrastes. É esse olhar que o cineasta procura. O primeiro olhar. A inocência perdida.
A viagem continua. Skopie. Sofia. Bucareste. Encontra uma mulher, a mulher (Maia Morgenstern), Penélope que irá deixando em cada cidade. Ele conta do seu impasse. Ele fotografa mas era como se já não tivesse olhar. Os negativos revelados saíam negros.
Segue-se uma das cenas mais impressionantes do filme e bem reveladoras do estilo de Theo Angelopoulos: em plano único, numa sala de um palacete, apenas com a deslocação das personagens, numa encenação brilhante e com marcações de um virtuosismo notável, assiste-se à passagem do ano de1945, com o regresso do pai de um campo de concentração, passando depois a uma nova passagem de ano, 1948, em que o pai é preso pelas novas autoridades comunistas, saltando-se depois para o ano de 1950, com a requisição da casa pelas mesmas autoridades, até se chegar à fotografia de família, onde se integra o cineasta quando jovem.
Corte e vemos o cineasta acordar num quarto de hotel, dando ligação a uma nova sequência absolutamente genial: um guindaste com uma majestosa cabeça de Lenine coloca-a numa barcaça onde já se encontram os restos da mesma estátua, que irá subir o Danúbio rumo à Alemanha e à colecção privada de um coleccionador. A enorme estátua, vestígio de outros tempos, caídos em desgraça, sobe o rio deitada na barcaça. É uma imagem de derrota, de despojo, recordação que vai repousar adormecida num museu particular de um milionário alemão. Ironia do destino.
A viagem é escoltada por milhares de olhos que a acompanham nas margens do rio. Curiosidade mórbida? Homenagem? Adeus? Certeza de uma partida sem retorno?
O cineasta recorda de novo os irmãos Manakis e o seu entusiasmo pelo cinema. Em 1905, em Bucareste, disseram-lhes que vendiam máquinas de filmar em Londres. Foi aí que compraram a máquina que rodou os três rolos míticos que se tornaram um enigma.
Em Belgrado, procura na Cinemateca. “Deus criou o mundo, a viagem, a nostalgia”, pensa. Mas daí enviam-no para Sarajevo sitiada, em plena guerra da Bósnia. Um nova cinemateca onde Ivo Levi, o velho director (o bergmaniano Erland Josephson) vai guardando momentos belos da história do mundo, da civilização, da cultura. Ali se encontram, escondidos das balas e das explosões, tesouros, uma memória que urge preservar: Murnau, Dreyer, Orson Welles, Bergman, Eisenstein… O pesadelo abateu-se sobre o mundo. “Adormecemos num mundo e acordámos estremunhados noutro.”
A entrada na cinemateca meia esventrada é um ritual sagrado. Uma máquina de projectar envolta e plástico branco, assemelha-se a uma imagem num altar. Numa cidade de sombras, de pessoas que correm pelas ruas como animais foragidos, que aproveitam o nevoeiro para viverem normalmente, mas onde a música invade as ruas estilhaçadas e os prédios bombardeados, onde a mulher reaparece mostrando que o amor é possível, mas onde a crueldade do homem tudo parece derrotar, alguém luta por fazer sair da obscuridade um olhar. Ivo Levi explica-se: “Sou um coleccionador de olhares desaparecidos”. Que por fim ganham corpo, e luz.
Uma citação de Homero encerra este “Olhar”: “Quando regressar, virei com outro nome e com um outro fato. Voltarei. Esta é história da humanidade. Uma história que não termina”.
“O Olhar de Ulisses”: uma obra-prima do cinema. Um olhar grandioso sobre a viagem do homem sobre a terra. A inteligência, a sensibilidade, a beleza em cada fotograma, em cada cena, em cada olhar.
O OLHAR DE ULISSES
Título original: To Vlemma tou Odyssea ou Ulysses' Gaze (versão inglesa)
Realização: Theodoros Angelopoulos (Grécia, França, Itália, Alemanha, Inglaterra, República Federal da Jugoslávia, Bósnia e Herzegovina, Albânia, Roménia, 1995); Argumento: Theodoros Angelopoulos, Tonino Guerra, Petros Markaris, Giorgio Silvagni, segundo poema de Homero; Produção: Theodoros Angelopoulos, Phoebe Economopoulos, Eric Heumann, Dragan Ivanovic, Herbert G. Kloiber, Saimir Kumbaro, Piro Milkani, Ivan Milovanovic, Amedeo Pagani, Lucian Pricop, Giorgio Silvagni; Música: Eleni Karaindrou; Fotografia (cor): Giorgos Arvanitis, Andreas Sinanos; Montagem: Takis Koumoundouros, Yannis Tsitsopoulos; Casting: Alexandros Labridis, Margarita Manda, Dinko Tucakovic; Design de produção: Dinos Katsouridis; Decoração: Miodrag Nikolic, Giorgos Patsas; Guarda-roupa: Giorgos Ziakas; Maquilhagem: Fani Alexaki, Filippas Kapsalis, Katerina Moletti, Athina Tseregof; Direcção de Produção: Kostas Lambropoulos, Slobodan Pavicevic; Assistentes de realização: Pere Alberto, Lakis Antonakos, Angelos Frantzis, Takis Katselis, Alexandros Labridis, Panayiotis Portokalakis, Sasa Radojevic, Stratis Vouyoukas, Nenad Dizdarevic; Departamento de arte: Hristos Goutis, Thodoros Mourtas; Som: Thanassis Arvanitis, Yannis Haralambidis, Marton Jankov-Tomica; Efeitos especiais: Pino Carozza, Srba Kabadajic, Nenad Pukmajster, Olivier Zenenski, Dusan Zivkovic; Companhias de produção: Paradis Films, Basic Cinematografica, Istituto Luce, Th. Angelopoulos Productions, Tele München Fernseh Produktionsgesellschaft (TMG), Channel 4, Concorde Film, La Générale d'Images, La Sept-Arte, Radiotelevisione Italiana (RAI), Mega Channel, Canal+, Greek Film Center, Centre National de la Cinématographie (CNC), Euroimages Fund of the Council of Europe; Intérpretes: Harvey Keitel (A), Erland Josephson (S., Director da Cinemateca), Maia Morgenstern(a mulher de 'Ulysses'), Thanasis Vengos (taxista), Giorgos Mihalakopoulos (amigo e jornalista), Costas Santas, Dora Volanaki (velha senhora), Mania Papadimitriou, Giorgos Konstas, Thanos Grammenos, Alekos Oudinotis, Angel Ivanof, Ljuba Tadic, Vaggelis Liodakis, Gert Llanaj, Agni Vlahou, Giannis Zavradinos, Vangelis Kazan, Mirka Kalatzopoulou, Dimitris Kaberidis, Eva Kotamanidou, Miranda Kounelaki, Natalia Mihailidou, Nikos Kouros, Nadia Mourouzi, Vasilis Bouyiouklakis, Christoforos Nezer, Tania Palaiologou, Stratos Pahis, Jenny Roussea, Stratos Tzortzoglou, Giannis Fyrios, Dora Hrisikou, etc. Duração: 176 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 25 de Abril de 1996.
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