PROCUREM ABRIGO
“Procurem
Abrigo” é uma experiência profundamente angustiante e inquietante, prolongando
de forma particularmente coerente o ambiente de uma América rural,
aparentemente bucólica, mas no fundo brutalmente traumatizada, que já vinha do
belíssimo filme de estreia de Jeff Nichols, “Histórias de Caçadeiras”. Em ambos
os casos, no centro do drama encontram-se células familiares que vivem momentos
de crise. Falar aqui de crise, não será tão estranho como possa parecer. Esta
crise de “Take Shelter” é uma crise individual, mas tudo leva a crer que a sua
leitura possa ser metafórica e envolver não só a sociedade americana actual,
mas toda a humanidade.
Curtis
(Michael Shannon) vive no Ohio, numa região do Midwest de indesmentível beleza
paisagística, serena e quase bucólica. Ele é um homem íntegro e religioso,
branco conservador e tradicionalista, devotado ao trabalho e à família, com
dedicada mulher, Samantha (Jessica Chastain) e uma muito amada filha, surda-muda,
Hannah (Tova Stewart). Tudo parece correr na mais discreta harmonia, o seu
companheiro de trabalho, Dewart (Shea Whigham), chega mesmo a invejar a sua
vida. De forma insidiosa mas insistente, no entanto, a paranóia instala-se.
Curtis começa a ter sonhos e visões perturbadoras. A tempestade agiganta-se no
céu toldado de pesadas e negras nuvens, os raios ameaçadores cruzam o
horizonte, a chuva é pegajosa e suja, assemelhando-se, nas suas palavras, a
óleo de carros. Nos seus sonhos cada vez mais frequentes sente-se atacado pelo
seu fiel cão, é assaltado no carro quando viaja com a filha, tem ataques de
ansiedade quando conduz, adoece com febre, inunda a cama de urina numa noite de
pesadelo… Sempre que olha o céu, a ameaça vislumbra-se, acompanhada de alarmantes
sons e presságios funestos. Pássaros negros atacam-no e depois despedem-se do
céu caindo com fragor na estrada. Pergunta-se: Sou só eu que vejo e ouço o que
se passa?
Curtis
sabe que a mãe (Kathy Baker) se encontra num lar há trinta anos desde que lhe
foi diagnosticada esquizofrenia paranóica. Um dia vai visitá-la para lhe
perguntar quais os primeiros sintomas da sua doença. “Tinha pesadelos?”,
pergunta. “Não, mas passei por períodos stressantes, que geravam o pânico.
Sentia-me observada e ouvida por toda a gente”. A hereditariedade constrange-o.
Ele não acredita que sonhe. Para Curtis aqueles sinais são presságios,
pressentimentos: “Tenho medo do que venha aí!” Procura um psiquiatra, é ouvido
por uma psicóloga. E começa a preparar um abrigo subterrâneo para se precaver,
a si e à sua família, do que há-de vir. A sua normalidade foi para sempre
transtornada. Contrai dívidas, perde o emprego, destrói a harmonia familiar,
volta-se contra os amigos, explode com violência num jantar durante o qual é
acusado de estar louco.
Curtis
tem medo do que aí vem. A natureza parece a todos pacifica mas a ele não. Na
aragem que varre as árvores ele descobre a tempestade. A chuva que cai em
pesadas bátegas ele vê-a nas suas mãos como óleo contaminado. Nas nuvens que
toldam o céu descobre tornados malditos. O medo tudo transforma, tudo subverte.
Do caso particular, singular, de uma esquizofrenia paranóica, pode facilmente
passar-se para o colectivo. E se finalmente não fosse só Curtis a ver aproximar-se
a tormenta? Será que esta é real ou será que a sua esquizofrenia se transmitiu
a outros? Como o próprio afirma, quando lhe perguntam se anda preocupado, a
resposta é “não mais do que os outros”. O que pode querer transformar a
experiência pessoal em metáfora colectiva.
“Procurem
Abrigo” é definitivamente um filme catástrofe sobre um fim de mundo que se
aproxima. Mas, ao contrário de muitos outros, que jogam nos efeitos especiais
para provocar o medo, aqui o medo é interior, instala-se no âmago de cada um de
nós. O filme de Jeff Nichols é talvez um dos mais belos, rigorosos, implacáveis
e austeros filmes americanos dos últimos anos. Anda paredes-meias com “A Árvore
da Vida”, de Mallick, com “Melancolia”, de Lars von Trier, aproximando muito de
alguns outros títulos surgidos nos anos mais próximos, onde o ambiente rural
prefigura um microcosmo americano. Ameaçado.
Para o
sucesso desta obra, a que me apetece chamar obra-prima, muito contribui a
interpretação genial de um actor magnifico, Michael Shannon (que há muito
merece nomeações para Oscars), e a presença frágil e dúctil dessa perturbante
Jessica Chastain, que já notáramos este ano em “A Árvore da Vida” e em “As
Serviçais” (entre outros trabalhos). Mas a sumptuosa fotografia de Adam Stone e
o seu aproveitamento dramático da paisagem, a partitura musical de David Wingo,
bem como a sonoplastia, discreta, minimalista, mas profundamente inquietante,
merecem referência especial. Este é bem um filme do nosso tempo, um preocupante
sintoma de uma sociedade esquizofrénica, em crise. Um dos mais lancinantes
retratos da América actual, sem demagogias, sem retórica, escavando até à alma
de um povo dilacerado pelo medo. O medo do exterior, o medo do interior. Uma
inspirada projecção deste tempo de crise que a todos nos devora.
PROCUREM ABRIGO
Título original: Take Shelter
Realização: Jeff Nichols (EUA, 2011); Argumento: Jeff Nichols;
Produção: Tyler Davidson, Kevin Flanigan, Sarah Green, Brian Kavanaugh-Jones,
Christos V. Konstantakopoulos, Sophia Lin, Chris Perot, Richard Rothfeld, Robert
Ruggeri, Colin Strause, Greg Strause, Adam Wilkins; Música: David Wingo;
Fotografia (cor): Adam Stone; Montagem: Parke Gregg; Design de produção: Chad
Keith; Direcção artística: Jennifer Klide; Decoração: Adam Willis;
Guarda-roupa: Karen Malecki; Maquilhagem: Julia Lallas; Assistentes de
realização: Timothy Johnson, Lia Lockert, Cosmo Pfeil, Darius Shahmir; Som:
Joshua Chase, Lyman Hardy; Efeitos especiais: Chad Ball, Timothy R. Hoffman,
Francis Link; Efeitos visuais: Chris Wells; Companhias de produção: Hydraulx
Entertainment, REI Capital, Grove Hill Productions, Strange Matter Films; Intérpretes: Michael Shannon (Curtis),
Jessica Chastain (Samantha), Tova Stewart (Hannah), Kathy Baker (Sarah), Shea
Whigham (Dewart), Katy Mixon (Nat), Natasha Randall (Cammie), Ron Kennard
(Russell), Scott Knisley (Lewis), Robert Longstreet (Jim), Heather Caldwell,
Sheila Hullihen, John Kloock, Marianna Alacchi, Jacque Jovic, Bob Maines,
Charles Moore, Pete Ferry, Molly McGinnis, Angie Marino-Smith, Isabelle Smith,
Tina Stump, Ken Strunk, Maryanne Nagel, Hailee Dickens, Guy Van Swearingen,
etc. Duração: 120 minutos;
Distribuição em Portugal: ZON Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos;
Estreia em Portugal: 17 de Maio de 2012.
o realizador Jeff Nichols
Sem comentários:
Enviar um comentário