terça-feira, maio 29, 2012

CINEMA: PROCUREM ABRIGO



PROCUREM ABRIGO 

“Procurem Abrigo” é uma experiência profundamente angustiante e inquietante, prolongando de forma particularmente coerente o ambiente de uma América rural, aparentemente bucólica, mas no fundo brutalmente traumatizada, que já vinha do belíssimo filme de estreia de Jeff Nichols, “Histórias de Caçadeiras”. Em ambos os casos, no centro do drama encontram-se células familiares que vivem momentos de crise. Falar aqui de crise, não será tão estranho como possa parecer. Esta crise de “Take Shelter” é uma crise individual, mas tudo leva a crer que a sua leitura possa ser metafórica e envolver não só a sociedade americana actual, mas toda a humanidade.
Curtis (Michael Shannon) vive no Ohio, numa região do Midwest de indesmentível beleza paisagística, serena e quase bucólica. Ele é um homem íntegro e religioso, branco conservador e tradicionalista, devotado ao trabalho e à família, com dedicada mulher, Samantha (Jessica Chastain) e uma muito amada filha, surda-muda, Hannah (Tova Stewart). Tudo parece correr na mais discreta harmonia, o seu companheiro de trabalho, Dewart (Shea Whigham), chega mesmo a invejar a sua vida. De forma insidiosa mas insistente, no entanto, a paranóia instala-se. Curtis começa a ter sonhos e visões perturbadoras. A tempestade agiganta-se no céu toldado de pesadas e negras nuvens, os raios ameaçadores cruzam o horizonte, a chuva é pegajosa e suja, assemelhando-se, nas suas palavras, a óleo de carros. Nos seus sonhos cada vez mais frequentes sente-se atacado pelo seu fiel cão, é assaltado no carro quando viaja com a filha, tem ataques de ansiedade quando conduz, adoece com febre, inunda a cama de urina numa noite de pesadelo… Sempre que olha o céu, a ameaça vislumbra-se, acompanhada de alarmantes sons e presságios funestos. Pássaros negros atacam-no e depois despedem-se do céu caindo com fragor na estrada. Pergunta-se: Sou só eu que vejo e ouço o que se passa?
Curtis sabe que a mãe (Kathy Baker) se encontra num lar há trinta anos desde que lhe foi diagnosticada esquizofrenia paranóica. Um dia vai visitá-la para lhe perguntar quais os primeiros sintomas da sua doença. “Tinha pesadelos?”, pergunta. “Não, mas passei por períodos stressantes, que geravam o pânico. Sentia-me observada e ouvida por toda a gente”. A hereditariedade constrange-o. Ele não acredita que sonhe. Para Curtis aqueles sinais são presságios, pressentimentos: “Tenho medo do que venha aí!” Procura um psiquiatra, é ouvido por uma psicóloga. E começa a preparar um abrigo subterrâneo para se precaver, a si e à sua família, do que há-de vir. A sua normalidade foi para sempre transtornada. Contrai dívidas, perde o emprego, destrói a harmonia familiar, volta-se contra os amigos, explode com violência num jantar durante o qual é acusado de estar louco.
Curtis tem medo do que aí vem. A natureza parece a todos pacifica mas a ele não. Na aragem que varre as árvores ele descobre a tempestade. A chuva que cai em pesadas bátegas ele vê-a nas suas mãos como óleo contaminado. Nas nuvens que toldam o céu descobre tornados malditos. O medo tudo transforma, tudo subverte. Do caso particular, singular, de uma esquizofrenia paranóica, pode facilmente passar-se para o colectivo. E se finalmente não fosse só Curtis a ver aproximar-se a tormenta? Será que esta é real ou será que a sua esquizofrenia se transmitiu a outros? Como o próprio afirma, quando lhe perguntam se anda preocupado, a resposta é “não mais do que os outros”. O que pode querer transformar a experiência pessoal em metáfora colectiva.
“Procurem Abrigo” é definitivamente um filme catástrofe sobre um fim de mundo que se aproxima. Mas, ao contrário de muitos outros, que jogam nos efeitos especiais para provocar o medo, aqui o medo é interior, instala-se no âmago de cada um de nós. O filme de Jeff Nichols é talvez um dos mais belos, rigorosos, implacáveis e austeros filmes americanos dos últimos anos. Anda paredes-meias com “A Árvore da Vida”, de Mallick, com “Melancolia”, de Lars von Trier, aproximando muito de alguns outros títulos surgidos nos anos mais próximos, onde o ambiente rural prefigura um microcosmo americano. Ameaçado. 
Para o sucesso desta obra, a que me apetece chamar obra-prima, muito contribui a interpretação genial de um actor magnifico, Michael Shannon (que há muito merece nomeações para Oscars), e a presença frágil e dúctil dessa perturbante Jessica Chastain, que já notáramos este ano em “A Árvore da Vida” e em “As Serviçais” (entre outros trabalhos). Mas a sumptuosa fotografia de Adam Stone e o seu aproveitamento dramático da paisagem, a partitura musical de David Wingo, bem como a sonoplastia, discreta, minimalista, mas profundamente inquietante, merecem referência especial. Este é bem um filme do nosso tempo, um preocupante sintoma de uma sociedade esquizofrénica, em crise. Um dos mais lancinantes retratos da América actual, sem demagogias, sem retórica, escavando até à alma de um povo dilacerado pelo medo. O medo do exterior, o medo do interior. Uma inspirada projecção deste tempo de crise que a todos nos devora.


PROCUREM ABRIGO
Título original: Take Shelter
Realização: Jeff Nichols (EUA, 2011); Argumento: Jeff Nichols; Produção: Tyler Davidson, Kevin Flanigan, Sarah Green, Brian Kavanaugh-Jones, Christos V. Konstantakopoulos, Sophia Lin, Chris Perot, Richard Rothfeld, Robert Ruggeri, Colin Strause, Greg Strause, Adam Wilkins; Música: David Wingo; Fotografia (cor): Adam Stone; Montagem: Parke Gregg; Design de produção: Chad Keith; Direcção artística: Jennifer Klide; Decoração: Adam Willis; Guarda-roupa: Karen Malecki; Maquilhagem: Julia Lallas; Assistentes de realização: Timothy Johnson, Lia Lockert, Cosmo Pfeil, Darius Shahmir; Som: Joshua Chase, Lyman Hardy; Efeitos especiais: Chad Ball, Timothy R. Hoffman, Francis Link; Efeitos visuais: Chris Wells; Companhias de produção: Hydraulx Entertainment, REI Capital, Grove Hill Productions, Strange Matter Films; Intérpretes: Michael Shannon (Curtis), Jessica Chastain (Samantha), Tova Stewart (Hannah), Kathy Baker (Sarah), Shea Whigham (Dewart), Katy Mixon (Nat), Natasha Randall (Cammie), Ron Kennard (Russell), Scott Knisley (Lewis), Robert Longstreet (Jim), Heather Caldwell, Sheila Hullihen, John Kloock, Marianna Alacchi, Jacque Jovic, Bob Maines, Charles Moore, Pete Ferry, Molly McGinnis, Angie Marino-Smith, Isabelle Smith, Tina Stump, Ken Strunk, Maryanne Nagel, Hailee Dickens, Guy Van Swearingen, etc. Duração: 120 minutos; Distribuição em Portugal: ZON Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 17 de Maio de 2012.

 o realizador Jeff Nichols

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