FERNÃO, MENTES?
Foi em 1981, ainda na velha sala de “A
Barraca”, ali quase ao lado do Largo do Rato, que subiu pela primeira vez a
cena “Fernão, Mentes?”, um texto de Hélder Costa adaptando excertos da “Peregrinação”,
de Fernão Mendes Pinto, obra mítica do imaginário literário português, que nos
fala dos descobrimentos e da colonização portuguesa pelo mundo, versão nacional
e pitoresca de um Marco Polo que viaja incessantemente pelo Oriente e tenta
desenvencilhar-se o melhor que pode das embrulhadas em que vai caindo e também das
que vai provocando. O espectáculo foi um sucesso em Portugal e por vários países
por onde foi passando, servindo para consolidar o lugar de uma companhia teatral
na altura recentemente formada.
Trinta e três anos depois, e
aproveitando as comemorações dos 400 anos do aparecimento de “A Peregrinação”,
o espectáculo é reposto pela mesma companhia, conservando a mesma estrutura e
estética, mas com novo elenco, no Teatro da Trindade, em Lisboa. O êxito volta
a repetir-se, perante um certo espanto das gerações mais jovens. É que se pode
fazer excelente teatro com muito poucos meios e muita imaginação. Num palco
quase deserto, com uma vela enfunada por pano de fundo, onde se desenha um mapa
mundo, uma dúzia de actores, de camisa e calças de linho bege, um barrete
vermelho que indica o protagonista, e que vai evoluindo de cabaça em cabeça (Fernão
Mendes somos todos, não é?), uma guitarra e meia dúzia de adereços e vestuário
improvisado que vai indicando as mudanças de usos e costumes orientais, e o
essencial está lá. Um bela história de um português desenrascado (e muitas
vezes enrascado) em peregrinação por outras terras e outras gentes.
No texto de apresentação do espectáculo
original, Hélder Costa escrevia: “A Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto,
verdadeiro monumento da literatura universal que ainda poucos portugueses
conhecem, relata a personalidade e a vivência do seu autor (...) As peripécias
porque passou esse “pobre” português têm pouco de grandiloquência, glórias
guerreiras ou santidade exemplar. Mas têm tudo de verdade, têm tudo da vida. Os
medos, as riquezas súbitas, a astúcia, a miséria, a desgraça, a audácia, o
“safar a pele”, a inteligência, a solidariedade, e acima de tudo, um final de
vida tranquilo que permite olhar para trás sem remorsos nem arrependimentos e
transforma Fernão Mendes Pinto no arquétipo do homem do povo da grande gesta
dos Descobrimentos, da arraia miúda, que construiu o país que somos, que foi
colonialista e racista, sensível e humilde, gloriosa e rasteira.
O homem dividido é um homem de olhos
abertos perante a vida. O homem que tem capacidade para se interrogar, que se
confronta com as suas fraquezas e se orgulha das coisas boas que faz. Um pouco
como nós todos, não é?”
Pode dizer-se que este é um exemplo
magnífico de uma certa estética de “teatro pobre” que vive sobretudo da
discussão de ideias, da imaginação da sua encenação, da energia e da alegria do
seu elenco e do talento de um grupo que vai do texto às canções, do guarda-roupa
às marcações, e se estende do palco à plateia. Injusto seria destacar nomes. É o
conjunto que faz a força e torna obrigatória esta revisão (para uns) e esta
descoberta (para tantos outros).
FERNÃO MENTES?
Encenação e Adaptação: Hélder Costa; Música;
Zeca Afonso | Fausto | Orlando Costa; Direcção de Arte: Maria do Céu Guerra; Direcção
musical: João Maria Pinto; Direcção técnica: Paulo Vargues; Adereços: Marta
Fernandes da Silva, Miguel Figueiredo; Costureira: Zélia Santos: Intérpretes: João
Maria Pinto, Adérito Lopes, Ruben Garcia, Rui Sá, Sérgio Moras, Susana Cacela, Tiago
Barbosa; Estagiários: Teresa Mello Sampayo, João Parreira, Inês Fragata; Participação especial: Maria do Céu Guerra; Sonoplastia:
Ricardo Santos, Iluminação: Paulo Vargues; Relações públicas / secretariado: Inês
Costa | Paula Coelho; Cartaz / design gráfico: Arnaldo Costeira | Mónica
Lameiro; Fotografias: Pedro Soares; Produção: A Barraca. Teatro da Trindade: de
quarta a sábado (21,30h), domingo (18,00h), até 29 de Junho de 2014.
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