segunda-feira, outubro 12, 2015

Figueira da Foz, 1976


CHANTAL AKERMAN

1976. Figueira da Foz. Era eu crítico regular do “Diário de Lisboa” e na Figueira existia um festival de cinema que era absolutamente indispensável. Na altura os jornais davam muito mais atenção à cultura. Caiam na Figueira críticos de todos os diários e semanários que reportavam o que viam. Eu escrevia uma crónica mais ou menos diária. Depois reuni em livro os balanços dos primeiros dez anos desse festival. Chamava-se “Figueira da Foz: Dez Anos de Cinema em Festival”. O livro saiu em 1982, numa edição do Secretariado Executivo das Comemorações do Primeiro Centenário da Elevação da Figueira da Foz a Cidade. Numa das páginas de balanço ao festival de 1976 dava conta de um filme que abalou a calma revolucionária do certame. Um filme invulgar, cujas imagens nunca mais esqueci. Depois vi alguns outros filmes da mesma realizadora. Quase todos muito interessantes, originais, provocadores. Ela esteve pessoalmente na Figueira da Foz, era uma presença discreta, mas igualmente sedutora. Lembro-me da sua figurinha discreta sentada numa mesa de uma explana frente ao Casino, onde decorria o festival. Fiz-lhe uma entrevista que, infelizmente, não localizo. Chamava-se Chantal Akerman, vinha da Bélgica, “avec la mer du Nord pour dernier terrain vague (…) avec infiniment de brumes à venir, avec le vent d'ouest écoutez le tenir, le plat pays qui est le mien”, como cantava Brel.
Morreu agora, em Paris, a 4 de Outubro, com 65 anos, ao que se supõe suicidou-se. É mais uma recordação que fica neste desvario de vazios que se amontoam à minha volta, à volta de todos nós.


Em 1976 escrevi assim, e não me arrependo:
“Igualmente presente na Figueira, Chantal Akerman, belga, 26 anos de idade, vinha falar de “Jeanne Dielman, 23 Quais du Commerce, 1080, Bruxelles”, obra rodada quando ainda só contava 24 anos e que é já hoje uma etapa importante na história do cinema.
“Jeanne Dielman” é uma proposta extremamente sugestiva: acompanhar o dia a dia desinteressante e repetitivo de uma dona de casa, viúva, com um filho. Vive de expedientes, prostituição possivelmente. Recebe em sua casa cavalheiros de quem guarda algumas notas. Momentos de tédio que se sucedem à repetição dos gestos, na cozinha, no quarto, na sala, na rua, no café ou no drugstore. Jeanne Dielman é uma mulher entre muitas. A prostituição de que vive serve somente para enunciar uma outra prostituição mais vasta, na qual a condição de mulher se inscreve exemplarmente.

Massacrantemente lento, cerca de duzentos minutos de minucioso retrato a que já se chamou, com razão, ultra-realismo, “Jeanne Dielman” é uma provocação fascinante. Em lugar de elidir momentos considerados desnecessários para a progressão dramática tradicional, Akerman opta pelo tempo real de duração das cenas. Diríamos mesmo que por vezes distende esse tempo de duração, Delphine Seyrig, que sustenta todo o peso desta obra, enquadrada de princípio a fim do filme, movimenta-se por entre electrodomésticos, com a familiaridade do quotidiano, transparecendo de toda esta encenação da vida real uma densidade dramática que chega a ser insuportável e é sempre desconfortante. Razão de ser do sucesso do filme, muito embora a polémica fosse o prato forte do debate que se seguiu à projecção”.