CHANTAL AKERMAN
1976. Figueira da
Foz. Era eu crítico regular do “Diário de Lisboa” e na Figueira existia um
festival de cinema que era absolutamente indispensável. Na altura os jornais
davam muito mais atenção à cultura. Caiam na Figueira críticos de todos os
diários e semanários que reportavam o que viam. Eu escrevia uma crónica mais ou
menos diária. Depois reuni em livro os balanços dos primeiros dez anos desse
festival. Chamava-se “Figueira da Foz: Dez Anos de Cinema em Festival”. O livro
saiu em 1982, numa edição do Secretariado Executivo das Comemorações do
Primeiro Centenário da Elevação da Figueira da Foz a Cidade. Numa das páginas
de balanço ao festival de 1976 dava conta de um filme que abalou a calma
revolucionária do certame. Um filme invulgar, cujas imagens nunca mais esqueci.
Depois vi alguns outros filmes da mesma realizadora. Quase todos muito
interessantes, originais, provocadores. Ela esteve pessoalmente na Figueira da
Foz, era uma presença discreta, mas igualmente sedutora. Lembro-me da sua figurinha
discreta sentada numa mesa de uma explana frente ao Casino, onde decorria o
festival. Fiz-lhe uma entrevista que, infelizmente, não localizo. Chamava-se
Chantal Akerman, vinha da Bélgica, “avec la mer du Nord pour dernier terrain
vague (…) avec infiniment de brumes à venir, avec le vent d'ouest écoutez le
tenir, le plat pays qui est le mien”, como cantava Brel.
Morreu agora, em
Paris, a 4 de Outubro, com 65 anos, ao que se supõe suicidou-se. É mais uma recordação
que fica neste desvario de vazios que se amontoam à minha volta, à volta de
todos nós.
Em 1976 escrevi
assim, e não me arrependo:
“Igualmente presente
na Figueira, Chantal Akerman, belga, 26 anos de idade, vinha falar de “Jeanne Dielman, 23 Quais du Commerce, 1080, Bruxelles”, obra rodada quando
ainda só contava 24 anos e que é já hoje uma etapa importante na história do cinema.
“Jeanne
Dielman” é uma proposta extremamente sugestiva: acompanhar o dia a
dia desinteressante e repetitivo de uma dona de casa, viúva, com um filho. Vive
de expedientes, prostituição possivelmente. Recebe
em sua casa cavalheiros de quem guarda algumas notas.
Momentos de tédio que se sucedem à repetição dos gestos, na cozinha, no
quarto, na sala, na rua, no café ou no drugstore. Jeanne Dielman é uma mulher entre muitas. A prostituição de que vive
serve somente para enunciar uma outra prostituição mais vasta, na qual a condição de mulher se inscreve exemplarmente.
Massacrantemente lento, cerca de duzentos minutos de
minucioso retrato a que já se chamou, com razão, ultra-realismo, “Jeanne Dielman” é uma provocação fascinante. Em lugar de elidir momentos
considerados desnecessários para a progressão dramática tradicional, Akerman opta pelo tempo real de duração das cenas.
Diríamos mesmo que por vezes distende esse tempo de duração, Delphine Seyrig, que sustenta todo o peso desta
obra, enquadrada de princípio a fim do filme, movimenta-se por entre electrodomésticos,
com a familiaridade do quotidiano, transparecendo de toda esta encenação da
vida real uma densidade dramática que chega a ser insuportável e é sempre
desconfortante. Razão de ser do sucesso do filme, muito embora a polémica fosse
o prato forte do debate que se seguiu à projecção”.