ROMA
“Roma”,
do mexicano Alfonso Cuarón, pode parecer um título
inesperado na filmografia de um cineasta que antes nos oferecera “A
Princesinha”, “Grandes Esperanças”, “E Tua Mãe também”, “Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban”, “Os Filhos do Homem” ou “Gravidade”, entre outros. De
um modo geral, grandes projectos, montados através da máquina de produção de
Hollywood, com direto a prémios internacionais, inclusive Oscars. Mas se se
conhecer um pouco da infância do autor, então sim, “Roma” adquire uma coerência
absoluta. Digamos que é o outro lado de “Gravidade”, a confissão de um sonho de
astronauta que o miúdo Cuarón acalentou.
“Roma”
é um bairro da média burguesia, na cidade do México. Um bairro onde se situava
a casa onde viveu e cresceu Alfonso Cuarón, que aqui recorda esses tempos de
meninice. Uma casa povoada por personagens que o cineasta não esquece, o pai
que abandona a mãe, a mãe que se vê subitamente a chefe de família, onde ainda
existem mais duas crianças, um rapaz e uma menina, e uma avó. Duas criadas,
porque “criada” era o nome dado às empregadas, nessas décadas de 60 e 70. Cleo
(Yalitza Aparicio), a adolescente que unifica toda a história do filme, e Adela
(Nancy García García), a sua mais velha companhia na cozinha. E um cão.
Não
há nada de muito espectacular em “Roma”, apenas o decorrer do dia a dia de uma
família, com as suas alegrias e dramas mais ou menos habituais. O filme
inicia-se mesmo por longas e belíssimas panorâmicas no interior da casa de dois
andares, que acompanham o trabalho diário de uma criadita que percorre as
divisões distribuindo atenção pelas mais diversas actividades. Cleo é a
formiguinha atarefada que trata da roupa, que limpa os quartos, que põe a mesa, que sobe e desce as escadas, que
lava a roupa, que a estende… mas é sobretudo a amiga das crianças que acompanha
com verdadeiro amor, que salva de morrerem afogadas (ela que não sabe nadar,
mas nem assim deixou de se lançar ao mar) e
a quem aconchega na cama. Cleo e Adela são indígenas mexicanas, servindo
uma família de brancos mexicanos. Com subtileza, Cuarón mostra a diferenciação
social, o trabalho de um lado, o lazer do outro, mas não há demagogia no seu
olhar. Os patrões são patrões, mas tratam as criadas com humanidade,
interessando-se pelos seus problemas, procurando resolvê-los, tendo uma palavra
amiga sempre que necessário. Mas tal não impede que a separação social seja uma
realidade que o jovem Cuarón não esqueceu. Por isso dedica o filme a Cleo (a
verdadeira ainda é viva e esteve presente na estreia do filme).
Ao
mesmo tempo que vai penetrando nesse casulo de recordações de infância, com o
epicentro na sua casa familiar, Cuarón esboça um retrato de uma época que surge
como pano de fundo, vista através da porta da sua casa, através dos vidros de
um hospital, num preto e branco de admirável dramaticidade e belíssimos efeitos
plásticos. Poderia o filme descambar numa memória delicodoce, mas a arte do
cineasta refreia os impulsos sentimentaloides e mantem a obra sempre no registo
de um certo distanciamento que muito a beneficia. Depois, a câmara movimenta-se
como que acariciando os cenários e as personagens. O lado contemplativo
sobretudo da primeira parte do filme torna-o absolutamente fascinante e
entramos nele como numa terna balada que nos envolve. Claro que há rupturas,
como quando Cleo visita a sua miserável aldeia, o que permite deprimentes
comparações sociais. Há a gravidez de Cleo e a abrupta aparição do hospital e
do seu drama. Mas no seu todo, “Roma” inicia-se e acaba pelas rotinas da casa
sem que aparentemente nada de muito notável tenha acontecido. A não ser a
mudança de carro, com o primeiro que o pai laboriosamente introduz todos os
dias na sua improvisada garagem, e com o qual a mãe vai destruindo paredes
sempre que o tenta, depois do marido ter desertado. Criteriosamente acaba por
ser substituído por um outro muito mais maneirinho para as mãos da mãe.
Interpretado
(admiravelmente) quase na integralidade por actores não profissionais (parece
que só a personagem da mãe foi entregue a uma actriz de profissão), “Roma”, uma
produção Netflix que viria a ganhar o Festival de Veneza e se prepara para
recolher muitas outras recompensas internacionais, faz lembrar alguns outros
óptimos filmes anteriores. No que diz respeito aos minuciosos rituais do
arranjo da casa, vem-nos à ideia “Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080
Bruxelles”, de Chantal Akerman. Quanto às recordações de infância, obviamente
que relembra “Amarcord”, de Fellini. Mas o filme mais próximo será seguramente
“Santiago”, um documentário do brasileiro João Moreira Salle que homenageia o
mordomo que serviu a sua família durante 30 anos.
Um
belíssimo filme, um os melhores de 2018, se não mesmo o melhor da colheita
deste ano. Indispensável ver.
ROMA
Título original: Roma
Realização: Alfonso Cuarón
(2018); Argumento: Alfonso Cuarón; Produção: Nicolás
Celis, Alfonso Cuarón, Jonathan King, David Linde, Carlos A. Morales, Gabriela
Rodriguez, Sandino Saravia Vinay, Alice Scandellari Burr, Jeff Skoll; Música
(supervisão): Lynn Fainchtein, Caleb Townsend; Fotografia (p/b): Alfonso Cuarón;
Montagem: Alfonso Cuarón, Adam Gough; Casting: Luis Rosales; Design de
produção: Eugenio Caballero; Direcção artística: Carlos Benassini, Oscar Tello;
Decoração: Barbara Enriquez; Guarda-roupa: Anna Terrazas; Maquilhagem: Itzel
Badillo, Emma Canchola, Antonio Garfias, Elena López Carreón, Atenea Téllez,
Beatriz Vera; Direcção de Produção: Abel Cruz, Alejandra A. Garcia, Ana
Hernandez, Carlos A. Morales, Maya Scherr-Willson; Assistentes de realização:
María Raquel Dioni, Arturo Garcia, Luis Fernando Vasquez, René Villarreal;
Departamento de arte: Marcela Arenas, Gabriel Cortes, Eliud López, Raisa
Torres; Som: Sergio Diaz, Eric Dounce, José Antonio García, Ruy García, Samuel
R. Green; Efeitos especiais: Sergio Jara, Roberto Ortiz, Alex Vasquez; Efeitos
visuais: Andrew Carruthers, Aleksei Chernogorod, Miguel De Hoyos, Emma Gorbey,
Dave Griffiths, Paul Hill, Sheldon Stopsack; Companhias de produção: Esperanto
Filmoj, Participant Media; Intérpretes:
Yalitza Aparicio (Cleo), Marina de Tavira (Sra. Sofía), Diego Cortina Autrey
(Toño), Carlos Peralta (Paco), Marco Graf(Pepe), Daniela Demesa (Sofi), Nancy
García García (Adela), Verónica García (Sra. Teresa), Andy Cortés (Ignacio),
Fernando Grediaga, Jorge Antonio Guerrero, José Manuel Guerrero Mendoza, Zarela
Lizbeth Chinolla Arellano, José Luis López Gómez, Edwin Mendoza Ramírez,
Clementina Guadarrama, Enoc Leaño,
Nicolás Peréz Taylor Félix, Kjartan Halvorsen, etc. Duração: 134 minutos; Distribuição em Portugal: Orange Filmes;
Classificação etária: M/ 14 anos; Data de estreia em Portugal: 13 de Dezembro
de 2018 (também disponível em Netflix).