terça-feira, fevereiro 12, 2019

A TIA MIGÁ



Tios e primas

Quando eu tinha dois anos de idade tive de ser operado de urgência a uma apendicite, agravada com peritonite. Disse aos meus pais o médico que me socorreu na altura que se tivesse demorado mais meia hora eu não estaria hoje aqui a escrever estas linhas. Coisa estranha: eu não teria sabido nessa época que, se não tivesse sobrevivido, teria tido pena de não passar pelo que passei até hoje. Tudo é muito relativo na vida.
Quando estava no hospital, a recuperar da intervenção cirúrgica, fui apaparicado pelos familiares. Eu era o único bebé de uma numerosa família, sobretudo por parte da minha mãe. Ela era filha de um major farmacêutico, António da Costa Torres, casado com uma professora primária, Júlia da Costa Torres, casal que teve cinco filhos, quatro raparigas e um rapaz. As meninas chamavam-se Helena, a que viria a ser minha mãe, Hermengarda, a quem se chamava, graças a Deus, Migá, a Lurdes, conhecida por Lula, e Isabel, a Belinha. O tio era Edgar e nunca me lembro de qualquer diminutivo. Sobretudo as tias foram visitas regulares do sobrinho sobrevivente à operação miraculosa e não se furtavam a mimos de toda a ordem.
Aprendi a amar as minhas tias que eram uma ternura de pessoas e foram-no sempre ao longo da vida. A minha mãe casou com o Lauro Corado, pintor e professor, meu pai, a Migá casou com o Álvaro Ferreira de Lima, engenheiro, a Lula, com o Telmo Matos, veterinário, a Belinha, com o Armando Machado, comandante de navio. Depois havia ainda o Edgar, professor de desenho, casado com a Alsácia. Da parte materna era tudo, e durante alguns anos as férias grandes foram épocas ali para os lados da Praia das Maças, Banzão, Colares, Mucifal, quando a família alugava um casarão enorme para acolher o pessoal, já enriquecido com crias: eu e a minha irmã, Helena, a Paula, resultado do casamento do Edgar e da Alsácia, a Isabel, a Lena e a João, da parte da Migá e do Álvaro, a Conceição, proveniente da estadia do comante no porto de Lisboa. Apenas a Lula não teve descendência directa e seria mesmo a primeira a deixar o nosso convívio. Muito nova. A primeira tragédia a tocar a família. Depois o tempo foi-se encarregando de dizimar os restantes, à medida que ia passando por mim. Há dias, com 96 anos, foi embora a minha tia Migá, derradeira sobrevivente dos meus ascendentes. 96 anos é já uma idade bonita, sobretudo para quem, como ela, passou por muito dissabores, os maiores dos quais terão sido a morte de duas filhas. Adeus, minha querida tia Migá.
Agora olho para trás, e nada vejo. Sou o primeiro da fila familiar, sem guarda-costas. Eu sei que não há coerência nenhuma nestas coisas, mas se houvesse eu seria o próximo a tombar. Não me importo de obedecer à coerência, mas, já agora, que ela se manifeste o mais tarde possível.

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