Tios
e primas
Quando eu tinha dois anos de
idade tive de ser operado de urgência a uma apendicite, agravada com
peritonite. Disse aos meus pais o médico que me socorreu na altura que se
tivesse demorado mais meia hora eu não estaria hoje aqui a escrever estas
linhas. Coisa estranha: eu não teria sabido nessa época que, se não tivesse
sobrevivido, teria tido pena de não passar pelo que passei até hoje. Tudo é
muito relativo na vida.
Quando estava no hospital, a
recuperar da intervenção cirúrgica, fui apaparicado pelos familiares. Eu era o
único bebé de uma numerosa família, sobretudo por parte da minha mãe. Ela era
filha de um major farmacêutico, António da Costa Torres, casado com uma
professora primária, Júlia da Costa Torres, casal que teve cinco filhos, quatro
raparigas e um rapaz. As meninas chamavam-se Helena, a que viria a ser minha
mãe, Hermengarda, a quem se chamava, graças a Deus, Migá, a Lurdes, conhecida
por Lula, e Isabel, a Belinha. O tio era Edgar e nunca me lembro de qualquer diminutivo.
Sobretudo as tias foram visitas regulares do sobrinho sobrevivente à operação
miraculosa e não se furtavam a mimos de toda a ordem.
Aprendi a amar as minhas
tias que eram uma ternura de pessoas e foram-no sempre ao longo da vida. A
minha mãe casou com o Lauro Corado, pintor e professor, meu pai, a Migá casou
com o Álvaro Ferreira de Lima, engenheiro, a Lula, com o Telmo Matos,
veterinário, a Belinha, com o Armando Machado, comandante de navio. Depois
havia ainda o Edgar, professor de desenho, casado com a Alsácia. Da parte
materna era tudo, e durante alguns anos as férias grandes foram épocas ali para
os lados da Praia das Maças, Banzão, Colares, Mucifal, quando a família alugava
um casarão enorme para acolher o pessoal, já enriquecido com crias: eu e a
minha irmã, Helena, a Paula, resultado do casamento do Edgar e da Alsácia, a
Isabel, a Lena e a João, da parte da Migá e do Álvaro, a Conceição, proveniente
da estadia do comante no porto de Lisboa. Apenas a Lula não teve descendência
directa e seria mesmo a primeira a deixar o nosso convívio. Muito nova. A
primeira tragédia a tocar a família. Depois o tempo foi-se encarregando de
dizimar os restantes, à medida que ia passando por mim. Há dias, com 96 anos,
foi embora a minha tia Migá, derradeira sobrevivente dos meus ascendentes. 96
anos é já uma idade bonita, sobretudo para quem, como ela, passou por muito
dissabores, os maiores dos quais terão sido a morte de duas filhas. Adeus,
minha querida tia Migá.
Agora olho para trás, e nada
vejo. Sou o primeiro da fila familiar, sem guarda-costas. Eu sei que não há
coerência nenhuma nestas coisas, mas se houvesse eu seria o próximo a tombar.
Não me importo de obedecer à coerência, mas, já agora, que ela se manifeste o
mais tarde possível.
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