“SEVERA”, VERSÃO LA FÉRIA
A Severa é uma personagem particularmente
fascinante. Desde logo por ser, ao que consta, a mãe do Fado. Depois por toda a
mitologia que a rodeia, os bairros populares que frequentou, as tabernas onde
cantou, o seu tipo de personalidade, arrebatada, temperamental, mulher da má vida
que defendia os pobres e os humildes e enfrentava os nobres e os poderosos… Difícil
de perceber onde termina a realidade e onde começa o mito, mas este aspecto torna
mais cativante a figura e todos vivemos um pouco de mitos.
Talvez por isso a Severa foi
uma personagem que sempre me fascinou. Mesmo o filme de Leitão de Barros, o
primeiro da era sonora em Portugal, com o seu tom machista, marialva, touradas
e largadas de touros, fado fora de portas e amores intensos para escândalo da aristocracia
desse período, me parece bem interessante como produto de uma época. Tanto
assim que, há uns anos atrás, persegui o sonho de realizar uma nova versão em
cinema de “A Severa”, desta feita procurando manter o mito, mas olhando-o com
novos olhos, com algum distanciamento e, se possível, um certo humor (para lá
de muito amor, obviamente).
Li tudo quanto apanhei sobre
a Severa (e também sobre o fado, de que sou fã incondicional, há muito),
inclusive o muito interessante, e recente, “O Fado da Severa”, de Maria João
Lopo de Carvalho, uma boa evocação histórica da figura, com um clima erótico
por vezes de cortar à faca (ou à navalha, mais de acordo com os costumes
relatados).
Vi agora, na estreia, o
espectáculo que o Filipe La Féria lhe dedicou e digo-vos desde já que se trata
de um excelente trabalho (dos melhores que o encenador até hoje assinou). Não
se trata somente de traçar uma rápida biografia da nossa primeira cantadeira de
fados, mas igualmente de erguer um fresco político e social de um período da
história de Portugal. Contam as biografias que Maria Severa Onofriana nasceu nos Anjos, em Lisboa, a 26 de Julho de
1820, e viria a falecer no Socorro, sempre em Lisboa, a 30 de Novembro de 1846.
Nesse lapso de tempo, Portugal viveu um período conturbado, com a corte no
Brasil, depois com as lutas entre liberais e absolutistas, uma forte contestação
social, com um fosso gritante entre burgueses e aristocratas e o povo, e tudo
isso Filipe La Féria aborda, obviamente de forma sucinta, procurando sinalizar
os acontecimentos, mas com evidente acutilância crítica.
Nesse aspecto esta “Severa” relembra
alguns outros musicais, como “Os Miseráveis”, “Martin Guerre” ou “Hamilton”,
mas a verdade que influências todos temos, e o espectáculo de La Féria consegue
tornar nacional, português, esse tom épico que se vive nesses outros musicais.
O musical que se pode agora admirar no belo Teatro Politeama é um trabalho de
uma intensidade e de um nervo esgotantes para o espectador (o que não será para
os intervenientes, actores, figurantes, cantores e bailarinos!). Tudo se passa
a um ritmo estonteante, uma cavalgada inebriante num palco que nos surge
mágico, com um excelente elenco, muito disciplinado e vigoroso. Os cenários são
sóbrios, mas de uma tremenda eficácia, o guarda roupa é magnífico, a luz é
sumptuosa, a sublinhar o colorido, mas a oscilar habilmente entre o interior quente
das tabernas, o luxo dos salões da aristocracia, o negrume da noite, ou as
sangrentas cenas de batalha.
Um belo trabalho, que chega
a ser emocionante, e a que o público português (e os turistas de passagem) pode
a partir de agora assistir na rua das Portas de Santo Antão. Não percam.