JOKER
Até hoje Gotham City apareceu
no cinema sob o domínio de Batman, o justiceiro que lutava contra o Mal, encarnado
pela figura do Joker. Batman tentava impor a ordem numa cidade dominada pela
violência, a corrupção e todos os demais males do mundo. Batman era uma
derivação de Superman, que tranquilizava os cidadãos que ficavam a saber, no
final de cada filme, que há sempre um herói, com superpoderes ou não, que vela
pela tranquilidade pública. Sabia-se a história de Batman, donde vinha e porque
se dava ao trabalho de lutar pelo Bem, numa sociedade tão corrompida, enquanto
do Joker tínhamos retratos por vezes inesquecíveis, trabalhados por actores de
invulgar talento, conhecíamos as suas maldades, as vilanias, o riso convulsivo,
as excentricidades, a indumentária de palhaço, o rosto maquilhado de clown, mas
desconhecia-se tudo o mais. Qual o seu passado, o que o levaria a tamanhas façanhas
de uma tão diabólica maldade? Todd Phillips vem alterar este injusto estado de
coisas, dedicando uma obra inteiramente a o Joker.
Mas quem é este Todd
Phillips? Pois só comecei a dar por ele em 2009, quando vi, por acaso, “A
Ressaca”. Antes já tinha feito umas comédias que recuperei depois, mas nada de
muito especial: 2000: “Road Trip - Sem Regras”; 2003: “Dias de Loucura”; 2004: “Starsky
& Hutch” ou 2006: “Escola para Totós”. A comédia norte-americana destes
tempos só raramente me divertia e muitas vezes lamentava o tempo perdido. “A
Ressaca” foi uma revelação muito agradável. Bem realizada e escrita (pelo mesmo
Todd Phillips), muito bem interpretada por um grupo de actores até aí não muito
conhecidos, diria que o filme revelava o realizador a ter em conta e a seguir
com atenção. O sucesso internacional de “A Ressaca” obrigou a outros desenvolvimentos
na mesma área; A Ressaca II (2011), “A Ressaca III” (2013) e duas outras
incursões pelo mesmo género, “A Tempo e Horas (2010) e “Os Traficantes” (2016).
De repente, uma mudança
abismal. Em 2019, Todd Phillips muda radicalmente de registo e deixa de tentar
a comédia e opta por uma biografia (dramática) do Joker. Esperemos que se tenha
ganho um grande realizador. “Joker” é uma obra-prima. Como parece que o
cineasta é dado a chorrilhos, anuncia para próximo projecto uma biografia de Hulk/Hogan.
Já me perguntaram se “Joker” é um filme particularmente violento. Creio que, apesar de algumas cenas
violentas, um pouco na linha de “A Laranja Mecânica”, a obra não se define pela
sua violência física, mas sim pela sua violência psicológica. Há muito que um
filme não me angustiava tanto, após a sua visão. “Joker” é uma terrível
visão da nossa sociedade, destas cidades onde vivemos um dia a dia cada vez
mais egoísta, cada vez mais violento, cada vez mais corrupto, cada vez mais
degenerado. Uma sociedade que afasta os pobres e os necessitados, que só olha
para o lucro imediato, que depois de ter atingido (nos países mais avançados)
um certo nível de bem-estar, o vai delapidando alegremente, para que os ricos
sejam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
Em Gotham City, cidade que
nunca esteve tão próxima de Nova Iorque, se bem que em todos os filmes
anteriores de Batman todos tenham percebido que se falava de uma Nova Iorque
mais ou menos fantasiada, um rapazinho esquelético, que trabalha como palhaço,
e sofre de uma estranha doença que o leva a ter ataques de riso incontroláveis
(anda mesmo com um cartão para mostrar aos estranhos que se trata de uma doença
e não de falta de respeito), vive com a mãe, entrevada, de quem cuida
desveladamente. Visita uma assistente social que o acompanha até ao dia em que
o serviço é dado como inútil, a assistente social despedida, e ele fica mesmo
sem os medicamentos que o estabilizavam. Depois é um encadeado de situações traumáticas,
todas elas muito previsíveis, que transformam o cidadão Arthur Fleck no Joker. Um
inocente palhaço que anda pelas ruas da metrópole a anunciar saldos que,
aparentemente num passe de magia (mas sem magia nenhuma), se transmuda num temível
vingador que subleva a cidade e faz justiça pelas próprias mãos, no que é apoiado
por toda a “escumalha” que nele se revê e o transforma em símbolo de uma
rebelião.
Assim se percebe, sem
demagogias simplistas, como o Mal nasce do próprio Mal, como as circunstâncias sociais,
políticas, educacionais, o próprio entretenimento televisivo, criam os monstros;
como as sociedades desapiedadas acabam por ver revertidas sobre si próprias as consequências
do seu egoísmo. O clima de “Joker” é angustiante de princípio ao fim,
indo-se adensando à medida que pequenos e grandes acontecimentos, ou segredos,
se vão revelando. A criação dos ambientes é notável: uma cidade intransitável,
ruas e becos atravancados de lixo, uma chuva impiedosa, as cores berrantes dos néons,
os cartazes da publicidade, os interiores esquálidos, os quartos miseráveis, a
sala da agência dos palhaços, os corredores solitários, as carruagens do
metropolitano, o estúdio de televisão, com uma realidade forjada, as mansões
dos ricos e poderosos, as salas de espectáculos…
O argumento é extremamente
inteligente, bem escrito, desenvolvidos, criando personagens que vão marcar a
história do cinema. O Joker de Joaquin Phoenix é absolutamente magistral. O seu
trabalho é invulgarmente bem conseguido, de antologia. Há um lado mais visível que
é brilhante, o jogo do corpo, o lado histriónico, quando dos ataques de riso, tudo
isso é de sublinhar. Mas o que me prende é o mais secreto, a forma como o rosto,
os olhos reagem em certas situações, os gestos suspensos, as contradições
interiores que o actor deixa antever com uma subtileza invulgar, uma maestria
total. Pena tenho eu de Banderas, DeNiro ou Adam Driver que este ano têm
interpretações notáveis e não vão ter hipótese de competir com Phoenix. O Oscar
está entregue!
De resto, o filme está
nomeado para 11 Oscars, e certamente vai regressar a casa com várias
estatuetas. Não será o Melhor Filme do Ano, nem o Melhor Realizador, que há
concorrentes fortíssimos (ainda que se ganhar algum destes prémios não vinha
daí mal nenhum ao mundo), Joaquin Phoenix é definitivamente o Melhor Actor, o
Melhor Argumento Adaptado, a Melhor Fotografia, a Melhor Montagem, a Melhor
Partitura Musical Original, a Melhor Maquilhagem, o Melhor Guarda-roupa, o
Melhor Som e a Melhor Mistura Sonora são hipóteses com muitas probabilidades.
Aqui está um ano como há muito
se não via em Hollywood. Vários filmes excelentes acotovelando-se para chegar
às estatuetas.
JOKER
Título original: Joker
Realização: Todd Phillips (EUA,
2019); Argumento: Todd Phillips, Scott Silver, baseados em personagens de bd
criados por Bob Kane, Bill Finger, Jerry Robinson; Produção: Richard Baratta, Bruce Berman, Jason
Cloth, Bradley Cooper, Joseph Garner, Aaron L. Gilbert, Walter Hamada, Anjay
Nagpal, Todd Phillips, Emma Tillinger Koskoff, Michael E. Uslan, David Webb; Música:
Hildur Guðnadóttir; Fotografia (cor): Lawrence Sher; Montagem: Jeff Groth; Casting:
Shayna Markowitz; Design de produção: Mark Friedberg; Direcção artística: Laura
Ballinger; Decoração: Kris Moran; Guarda-roupa: Mark Bridges; Maquilhagem: Vanessa
Anderson, Mitchell Beck, Sunday Englis, Kay Georgiou, Nicki Ledermann, Jerry
Popolis, Tania Ribalow, Kim Taylor, Carla White, etc. Direcção de Produção:
Lisa Dennis, Carla Raij, Fady Hadid, Mark Scoon; Assistentes de realização:
Ryan Robert Howard, Felix Jordan, Jeremy Marks, David Webb, etc. Departamento
de arte: Joseph S. Alfieri, Nara DeMuro, Mariella Navarro, Michael Scarola,
Miccah Underwood, etc.; Som: Tony Crowe, Michael Dressel, Alan Robert Murray,
Tom Ozanich, Kira Roessler, etc. Efeitos especiais: Jeff Brink, Doug
Facciponti, Corinne Fortunato, Cleo Camp, Joseph Sacco; Efeitos visuais: Ankita
Agrawal, Karina Benesh, Patrice Cormier, Mathew Giampa, Allie Glisch, Bryan
Godwin, Edwin Rivera, Carolyn Shea, Kin Yiu, Nigel Cyril, Kristen Drewski,
etc. Companhias de produção: Warner
Bros., Village Roadshow Pictures, BRON Studios, Joint Effort, DC Comics,
Creative Wealth Media Finance; Intérpretes:
Joaquin Phoenix (Arthur Fleck/ Joker), Robert De Niro (Murray Franklin), Zazie
Beetz (Sophie Dumond), Frances Conroy (Penny Fleck), Brett Cullen (Thomas Wayne),
Shea Whigham (Detective Burke), Bill Camp (Detective Garrity), Glenn Fleshler (Randall),
Leigh Gill (Gary), Josh Pais (Hoyt Vaughn), Rocco Luna, Marc Maron, Sondra
James, Murphy Guyer, Douglas Hodge, Dante Pereira-Olson, Carrie Louise Putrello,
Sharon Washington, Hannah Gross, Frank Wood, Brian Tyree Henry, April Grace, Mick
Szal, Carl Lundstedt, Michael Benz, etc. Duração: 122 minutos;
Distribuição em Portugal: Warner Bros.; Classificação etária: M/ 14 anos;
Data de estreia em Portugal: 3 de Outubro de 2019.
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