sábado, fevereiro 01, 2020

OS FILMES DOS OSCARS DE 2019 (5) JOKER



JOKER

Até hoje Gotham City apareceu no cinema sob o domínio de Batman, o justiceiro que lutava contra o Mal, encarnado pela figura do Joker. Batman tentava impor a ordem numa cidade dominada pela violência, a corrupção e todos os demais males do mundo. Batman era uma derivação de Superman, que tranquilizava os cidadãos que ficavam a saber, no final de cada filme, que há sempre um herói, com superpoderes ou não, que vela pela tranquilidade pública. Sabia-se a história de Batman, donde vinha e porque se dava ao trabalho de lutar pelo Bem, numa sociedade tão corrompida, enquanto do Joker tínhamos retratos por vezes inesquecíveis, trabalhados por actores de invulgar talento, conhecíamos as suas maldades, as vilanias, o riso convulsivo, as excentricidades, a indumentária de palhaço, o rosto maquilhado de clown, mas desconhecia-se tudo o mais. Qual o seu passado, o que o levaria a tamanhas façanhas de uma tão diabólica maldade? Todd Phillips vem alterar este injusto estado de coisas, dedicando uma obra inteiramente a o Joker.
Mas quem é este Todd Phillips? Pois só comecei a dar por ele em 2009, quando vi, por acaso, “A Ressaca”. Antes já tinha feito umas comédias que recuperei depois, mas nada de muito especial: 2000: “Road Trip - Sem Regras”; 2003: “Dias de Loucura”; 2004: “Starsky & Hutch” ou 2006: “Escola para Totós”. A comédia norte-americana destes tempos só raramente me divertia e muitas vezes lamentava o tempo perdido. “A Ressaca” foi uma revelação muito agradável. Bem realizada e escrita (pelo mesmo Todd Phillips), muito bem interpretada por um grupo de actores até aí não muito conhecidos, diria que o filme revelava o realizador a ter em conta e a seguir com atenção. O sucesso internacional de “A Ressaca” obrigou a outros desenvolvimentos na mesma área; A Ressaca II (2011), “A Ressaca III” (2013) e duas outras incursões pelo mesmo género, “A Tempo e Horas (2010) e “Os Traficantes” (2016).
De repente, uma mudança abismal. Em 2019, Todd Phillips muda radicalmente de registo e deixa de tentar a comédia e opta por uma biografia (dramática) do Joker. Esperemos que se tenha ganho um grande realizador. “Joker” é uma obra-prima. Como parece que o cineasta é dado a chorrilhos, anuncia para próximo projecto uma biografia de Hulk/Hogan.
Já me perguntaram se “Joker” é um filme particularmente violento. Creio que, apesar de algumas cenas violentas, um pouco na linha de “A Laranja Mecânica”, a obra não se define pela sua violência física, mas sim pela sua violência psicológica. Há muito que um filme não me angustiava tanto, após a sua visão. “Joker” é uma terrível visão da nossa sociedade, destas cidades onde vivemos um dia a dia cada vez mais egoísta, cada vez mais violento, cada vez mais corrupto, cada vez mais degenerado. Uma sociedade que afasta os pobres e os necessitados, que só olha para o lucro imediato, que depois de ter atingido (nos países mais avançados) um certo nível de bem-estar, o vai delapidando alegremente, para que os ricos sejam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.  
Em Gotham City, cidade que nunca esteve tão próxima de Nova Iorque, se bem que em todos os filmes anteriores de Batman todos tenham percebido que se falava de uma Nova Iorque mais ou menos fantasiada, um rapazinho esquelético, que trabalha como palhaço, e sofre de uma estranha doença que o leva a ter ataques de riso incontroláveis (anda mesmo com um cartão para mostrar aos estranhos que se trata de uma doença e não de falta de respeito), vive com a mãe, entrevada, de quem cuida desveladamente. Visita uma assistente social que o acompanha até ao dia em que o serviço é dado como inútil, a assistente social despedida, e ele fica mesmo sem os medicamentos que o estabilizavam. Depois é um encadeado de situações traumáticas, todas elas muito previsíveis, que transformam o cidadão Arthur Fleck no Joker. Um inocente palhaço que anda pelas ruas da metrópole a anunciar saldos que, aparentemente num passe de magia (mas sem magia nenhuma), se transmuda num temível vingador que subleva a cidade e faz justiça pelas próprias mãos, no que é apoiado por toda a “escumalha” que nele se revê e o transforma em símbolo de uma rebelião.
Assim se percebe, sem demagogias simplistas, como o Mal nasce do próprio Mal, como as circunstâncias sociais, políticas, educacionais, o próprio entretenimento televisivo, criam os monstros; como as sociedades desapiedadas acabam por ver revertidas sobre si próprias as consequências do seu egoísmo. O clima de “Joker” é angustiante de princípio ao fim, indo-se adensando à medida que pequenos e grandes acontecimentos, ou segredos, se vão revelando. A criação dos ambientes é notável: uma cidade intransitável, ruas e becos atravancados de lixo, uma chuva impiedosa, as cores berrantes dos néons, os cartazes da publicidade, os interiores esquálidos, os quartos miseráveis, a sala da agência dos palhaços, os corredores solitários, as carruagens do metropolitano, o estúdio de televisão, com uma realidade forjada, as mansões dos ricos e poderosos, as salas de espectáculos…
O argumento é extremamente inteligente, bem escrito, desenvolvidos, criando personagens que vão marcar a história do cinema. O Joker de Joaquin Phoenix é absolutamente magistral. O seu trabalho é invulgarmente bem conseguido, de antologia. Há um lado mais visível que é brilhante, o jogo do corpo, o lado histriónico, quando dos ataques de riso, tudo isso é de sublinhar. Mas o que me prende é o mais secreto, a forma como o rosto, os olhos reagem em certas situações, os gestos suspensos, as contradições interiores que o actor deixa antever com uma subtileza invulgar, uma maestria total. Pena tenho eu de Banderas, DeNiro ou Adam Driver que este ano têm interpretações notáveis e não vão ter hipótese de competir com Phoenix. O Oscar está entregue!
De resto, o filme está nomeado para 11 Oscars, e certamente vai regressar a casa com várias estatuetas. Não será o Melhor Filme do Ano, nem o Melhor Realizador, que há concorrentes fortíssimos (ainda que se ganhar algum destes prémios não vinha daí mal nenhum ao mundo), Joaquin Phoenix é definitivamente o Melhor Actor, o Melhor Argumento Adaptado, a Melhor Fotografia, a Melhor Montagem, a Melhor Partitura Musical Original, a Melhor Maquilhagem, o Melhor Guarda-roupa, o Melhor Som e a Melhor Mistura Sonora são hipóteses com muitas probabilidades.
Aqui está um ano como há muito se não via em Hollywood. Vários filmes excelentes acotovelando-se para chegar às estatuetas.


JOKER
Título original: Joker
Realização: Todd Phillips (EUA, 2019); Argumento: Todd Phillips, Scott Silver, baseados em personagens de bd criados por Bob Kane, Bill Finger, Jerry Robinson;  Produção: Richard Baratta, Bruce Berman, Jason Cloth, Bradley Cooper, Joseph Garner, Aaron L. Gilbert, Walter Hamada, Anjay Nagpal, Todd Phillips, Emma Tillinger Koskoff, Michael E. Uslan, David Webb; Música: Hildur Guðnadóttir; Fotografia (cor): Lawrence Sher; Montagem: Jeff Groth; Casting: Shayna Markowitz; Design de produção: Mark Friedberg; Direcção artística: Laura Ballinger; Decoração: Kris Moran; Guarda-roupa: Mark Bridges; Maquilhagem: Vanessa Anderson, Mitchell Beck, Sunday Englis, Kay Georgiou, Nicki Ledermann, Jerry Popolis, Tania Ribalow, Kim Taylor, Carla White, etc. Direcção de Produção: Lisa Dennis, Carla Raij, Fady Hadid, Mark Scoon; Assistentes de realização: Ryan Robert Howard, Felix Jordan, Jeremy Marks, David Webb, etc. Departamento de arte: Joseph S. Alfieri, Nara DeMuro, Mariella Navarro, Michael Scarola, Miccah Underwood, etc.; Som: Tony Crowe, Michael Dressel, Alan Robert Murray, Tom Ozanich, Kira Roessler, etc. Efeitos especiais: Jeff Brink, Doug Facciponti, Corinne Fortunato, Cleo Camp, Joseph Sacco; Efeitos visuais: Ankita Agrawal, Karina Benesh, Patrice Cormier, Mathew Giampa, Allie Glisch, Bryan Godwin, Edwin Rivera, Carolyn Shea, Kin Yiu, Nigel Cyril, Kristen Drewski, etc.  Companhias de produção: Warner Bros., Village Roadshow Pictures, BRON Studios, Joint Effort, DC Comics, Creative Wealth Media Finance;  Intérpretes: Joaquin Phoenix (Arthur Fleck/ Joker), Robert De Niro (Murray Franklin), Zazie Beetz (Sophie Dumond), Frances Conroy (Penny Fleck), Brett Cullen (Thomas Wayne), Shea Whigham (Detective Burke), Bill Camp (Detective Garrity), Glenn Fleshler (Randall), Leigh Gill (Gary), Josh Pais (Hoyt Vaughn), Rocco Luna, Marc Maron, Sondra James, Murphy Guyer, Douglas Hodge, Dante Pereira-Olson, Carrie Louise Putrello, Sharon Washington, Hannah Gross, Frank Wood, Brian Tyree Henry, April Grace, Mick Szal, Carl Lundstedt, Michael Benz, etc. Duração: 122 minutos; Distribuição em Portugal: Warner Bros.; Classificação etária: M/ 14 anos; Data de estreia em Portugal: 3 de Outubro de 2019.

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