segunda-feira, outubro 12, 2020

LISTEN, de ANA ROCHA



LISTEN ou OUVE-ME

“Ouve-me” ou “Listen”, conforme o filme se veja em Portugal ou em Inglaterra, é a obra de estreia de Ana Rocha que se estreou no Festival de Veneza, onde se portou verdadeiramente bem, arrebatando vários prémios, os oficiais Leão do Futuro e o Prémio Especial do Júri, na secção "Horizontes", e ainda os galardões paralelos Bisato d’Oro, Sorriso Diverso Veneza, Casa Wabi e HFPA.

Ana Rita Rocha de Sousa, de seu nome completo, nasceu em Lisboa, a 28 de Outubro de 1978. Estreia-se como actriz, muito nova, numa pequena participação no filme de João Botelho, “No Dia dos Meus Anos” (1991). Em televisão (RTP, TVI e SIC) apareceu em diversos trabalhos, como “Riscos”, “Jornalistas”, “Médico de Família”, “Alves dos Reis”, “A Raia dos Medos”, “A Senhora das Águas”, “Um Estranho em Casa”, “Sonhos Traídos”, “Morangos com Açúcar”, “Maiores de 20”, “Inspector Max”, “Mistura Fina” ou “Jura”. No teatro, entre outros espectáculos, integrou o elenco de “Sonho de uma Noite de Verão”, no Teatro Nacional D. Maria II, numa encenação de João Ricardo.


Entretanto, em simultâneo, Ana Rocha licenciou-se em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. A faceta de actriz nunca deixou de lhe interessar, mas aspirava a algo diferente. Emigrou para Inglaterra, para estudar cinema, na reputada London Film School, onde completou um mestrado em realização com orientação de Mike Leigh. Foi experimentando o olhar da câmara nalgumas curtas-metragens e documentários, entre os quais “Aqui e agora”, sobre Adriano Correia de Oliveira, “Quem nos Larga…”, “Laundriness”, “Minha Alma and You” ou “No Mar”. Foi ainda dedicando o seu tempo a concertos e vídeoclips de alguns cantores, como Sérgio Godinho, Maria João, Raquel Tavares, Xaile ou Aldina Duarte. Para quem nasceu em 1978, não se pode dizer que tenha andado a ver passar o tempo. A sua passagem por Londres foi decisiva na consolidação de uma carreira. Curiosamente, Portugal não tem sido muito dado a escolher a London Film School como escola de formação. Mas, quando o faz, veja-se o caso de Fernando Lopes, dá-se bem. Existe uma tradição de cinema social inglês, que vem desde os anos 30, com a escola documentarista¸ onde avultaram nomes como John Grierson, Basil Wright, Humphrey Jennings, Alberto Cavalcanti, Arthur Elton, Edgar Anstey, Stuart Legg, Paul Rotha e Harry Watt, entre outros. Outro momento alto do cinema realista social em Inglaterra acontece nos anos 60 do século passado, com o Free Cinema (muito ligado aos “Angry Young Men”), que revela autores como Lindsay Anderson, Karel Reisz, Tony Richardson ou Lorenza Mazzetti. Muito mais tarde, surge uma nova geração de cineastas que se interessa pelo retrato social de Inglaterra, com realizadores como Mike Leigh, Ken Loach, Shane Meadows, entre vários outros. Sintomaticamente para alguma crítica portuguesa, este tipo de cinema nunca mereceu os mesmos elogios que a Nouvelle Vague, por exemplo, sempre granjeou (justificadamente estes elogios, como seriam igualmente os dedicados ao cinema inglês).

Todo este preâmbulo para situar “Listen”, que se coloca abertamente na linha desta tradição de um certo realismo social britânico, o que fica ainda mais visível ao se saber que Mike Leigh foi um (bom) professor de Ana Rocha, que aproveitou bem as aulas, mantendo algo de profundamente essencial em matéria de professores e alunos: a independência e autonomia dos alunos perante os professores. A voz de Ana Rocha manteve-se intocável.

“Ouve-me” fala de uma família portuguesa a viver actualmente em Londres. Um casal e três filhos, a mãe a trabalhar a dias, o pai, agora desempregado, mas anteriormente empregado numa marcenaria, que lhe ficou a dever dinheiro. Os filhos vão desde um bebé de cerca de um ano, uma miúda de seis/sete anos, surda, e um jovem de doze anos. Como a miúda aparece com umas nódoas nas costas que sugerem ter sido agredida, a segurança social toma conta do assunto, retira as crianças aos pais, que não aceitam a separação e fazem tudo para reaver os filhos e regressarem com eles a Portugal. Esta base dramática permite uma descrição de ambientes sociais muito bem dada, mas permitiria igualmente um choradinho sem fim, o que Ana Rocha consegue evitar com mestria e muita segurança estilística. As imagens ganham sempre um distanciamento óbvio, um empenhamento humano discreto, uma compreensão das razões das diversas partes (nunca se infernizam as instituições inglesas que fazem o que têm a fazer o melhor possível). A realizadora afasta a emoção fácil, quer através de uma óptima direcção de actores, quer ainda pela introdução de imagens aparentemente desligadas da acção, pormenores de um cenário, de uma paisagem, etc. A própria fotografia, algo granulada, por vezes difusa, ajuda a este efeito. Depois o rigor na descrição dos cenários, o interior da casa do casal português, as salas das instituições, os exteriores, tudo é meticulosamente recuperado. 

Existe ainda um interessante problema de comunicação (ou de incomunicabilidade), dado que se trata de uma família portuguesa a residir em Londres. Os portugueses falam quase sempre entre si em português, mas têm de se relacionar com os ingleses. Para que este diálogo se estabeleça, não existem grandes dificuldades. Mas a filha do casal é surda, o aparelho auditivo está estragado, não há dinheiro para o reparar, ou substituir, o que levanta dificuldades de comunicação com os pais, com a escola, com os serviços sociais. É este o maior óbice para que os problemas se ultrapassem. Não por indiferença ou desinteresse dos agentes no terreno, mas possivelmente pela legislação desadequada.

Falemos, finalmente, da interpretação que é de qualidade invulgar: Lúcia Moniz é simplesmente brilhante, na forma como impõe a sua personagem. Ruben Garcia, no marido, vai muito bem, e as crianças são profundamente convincentes. Quantos aos ingleses, todos eles são impecáveis nas suas intervenções, mais ou menos curtas. 

Uma belíssima estreia na longa-metragem de ficção que se saúda com entusiasmo. O cinema português precisa de sangue novo e de olhares diferentes. Com talento. 

OUVE-ME

Título original: Listen

Realização: Ana Rocha De Sousa (Portugal, Inglaterra, 2020); Argumento: Paula Alvarez Vaccaro, Ana Rocha; Produção: Paula Alvarez Vaccaro, Rodrigo Areias, Aaron Brookner, Agustina Figueras, Lennard Ortmann; Música: Frederic Schindler; Fotografia (cor): Hatti Beanland; Montagem: Tomás Baltazar; Casting: Heather Basten; Design de produção: Belle Mundi; Decoração: Rose Konstam; Guarda-roupa: Belle Mundi, Filipa Fabrica; Maquilhagem: Amanda Goodfellow, Sara Menitra; Direcção de Produção: Palma Derzsi; Assistentes de realização: Gabriel Lippe, Laura Prast, Lina Remeikaite; Departamento de arte: Rebecca Clayden, Noah Demeuldre, George Graham, Stella Hadjidemetriou, Mihaela Marino, James Reading; Som: Nuno Bento, João Galvão, Pedro Góis, Pedro Marinho, Sérgio Silva, Roland Vajs; Efeitos visuais: Carlos Amaral; Companhias de produção: Bando à Parte, Pinball London; Intérpretes: Lúcia Moniz (Bela), Sophia Myles (Ann Payne), Ruben Garcia (Jota), Maisie Sly (Lu), James Felner, Kiran Sonia Sawar (Anjali), Sian Abrahams, Brian Bovell, António Capelo, Susanna Cappellaro, Kem Hassan, Geoffrey Kirkness, Jay Lycurgo, Ângela Pinto, Tara Quinn, Kiki Weeks, Lola Weeks, etc. Duração: 73 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 22 de Outubro de 2020.

sábado, outubro 10, 2020

RATCHED

 



 

RATCHED

Ratched é a enfermeira de “Voando Sobre um Ninho de Cucos”, filme de Milos Forman, estreado em 1975. Nessa altura a enfermeira Ratched era interpretada por Louise Fletcher que haveria de ganhar o Oscar de Melhor Actriz Secundária pelo seu extraordinário trabalho. O filme alcançaria ainda mais quatro estatuetas, Melhor Filme (Saul Zaentz e Michael Douglas), Melhor Realizador (Milos Forman), Melhor Actor (Jack Nicholson) e Melhor Argumento Adaptado (Lawrence Hauben e Bo Goldman). Além de outras nomeações para Melhor Actor Secundário (Brad Dourif), Melhor Fotografia (Haskell Wexler e Bill Butler), Melhor Montagem (Richard Chew, Lynzee Klingman e Sheldon Kahn) e Melhor Partitura Musical (Jack Nitzsche). Obra grande que deixou marcas e não esquece. 

Ryan Murphy (o criador de “American Horror Story”, entre outros trabalhos) e Evan Romansky resolveram pegar nesta personagem e inventarem-lhe um período anterior à sua chegada ao hospício que a tornaria célebre. “Ratched”, a série de que se conhecem já os primeiros oito episódios da primeira temporada, vai descobrir esta ambiciosa e traumatizada criatura anos antes de se cruzar com R.P. McMurphy e seus companheiros de asilo psiquiátrico, em “One Flew Over the Cuckoo's Nest”. A série é magnificamente realizada, fotografada, interpretada, com uma direcção artística absolutamente notável. Digamos que “Ratched” inventa o paraíso na terra (em cenários exteriores e em interiores de um bom gosto impressionante e um guarda roupa belíssimo) e depois povoa-o com um conjunto invulgar de monstros para todos os gostos e feitios. Violência e tortura (física e psicológica) chegam a ser insuportáveis. Uma grande série para quem conseguir aguentar (o que não é fácil). Uma série que nos retira qualquer tipo de esperança na natureza humana. Será este um bom ponto de partida? Mas a qualidade do trabalho é absolutamente inquestionável.

RATCHED – Série de TV - Netflix

Criadores: Ryan Murphy, Evan Romansky (EUA, 2020, 8 episódios; 2021, 10 episódios, a estrear); Realização: Ryan Murphy, Michael Uppendahl, Nelson Cragg, Jennifer Lynch, Daniel Minahan, Jessica Yu;  Argumento: Ken Kesey, Ryan Murphy, Evan Romansky, Ian Brennan, Jennifer Salt; Produção: Ian Brennan, Michael Douglas, Jacob Epstein, Aleen  Keshishian, Alexis Martin Woodall, Tim Minear, Ryan Murphy, Margaret Riley, Evan Romansky, Jennifer Salt, Paul Zaentz, Eryn Krueger Mekash, Robert Mitas, Sarah Paulson, Tanase Popa, Lou Eyrich, Eric Kovtun, Todd Nenninger, Sara Stelwagen; Intérpretes: Sarah Paulson (enfermeira Mildred Ratched), Finn Wittrock (Edmund Tolleson), Cynthia Nixon (Gwendolyn), Judy Davis (enfermeira Betsy Bucket), Jon Jon Briones (Dr. Richard Hanover), Charlie Carver (Huck Finnigan), Sharon Stone (Lenore Osgood), Amanda Plummer (Louise), Alice Englert (enfermeira Dolly), Vincent D'Onofrio (Governador George Wilburn), Jermaine Williams (Harold), Brandon Flynn (Henry Osgood), Alfred Rubin Thompson  (Albert Alton), Sophie Okonedo (Charlotte Wells), Corey Stoll (Charles Wainwright), Annie Starke (Lily Cartwright),  Rosanna Arquette (Anna), etc. Duração de cada episódio: entre 45 e 50 minutos; Em exibição na Netflix.