terça-feira, agosto 01, 2006



“UM HOMEM SEM PÁTRIA”
(Memórias da América de George W. Bush)
de Kurt Vonnegut

Acordei, com o telefone e comecei logo com uma mentira piedosa: Acordei-te? Não. Tinha acordado, mas não eram horas para eu aceitar a verdade. A verdade é que me tinha deitado às 7 a reler o “Felizmente à Luar” (logo mais conto!), e que acordara realmente com o telefonema, cerca das 14. Abençoado telefonema. Acordei, levei a mão à resma de livros que tenho ao lado da cama, pequei no “Um Homem sem Pátria” (Memórias da América de George W. Bush), de
Kurt Vonnegut, e comecei a ler treze crónicas ilustradas, que devorei num ápice. Num ápice passei ao pc, de que Vonnegut não gosta, e num ápice me apeteceu dar conta aos leitores deste blog da qualidade, actualidade, humor, irreverência e saudável pessimismo destes escritos.

Sabem? O ideal seria transcrever o livro todo. Tudo nele é admiravelmente inteligente, sucinto, o humor funciona por deliciosas elipses e paralelismos desconcertantes, há um tom passadista, agarrado ao passado, mas que logo se transmuda numa fabulosa alegria de viver e numa entusiasmante elegia da natureza. Kurt Vonnegut não levaria a mal que eu transcrevesse grandes excertos, ou colocasse on line o seu texto, ele que proclama, como exemplo a seguir, o caso de Benjamin Franklin que inventou a salamandra e a colocou no mercado sem direitos de autor, como forma de retribuição pelas tantas e tantas outras invenções de que diariamente dispunha. Mas os editores (Tinta da China) não iriam gostar. Além disso manusear um livro, só tem um paralelo na vida: manusear uma mulher, ambas as actividades a efectuar com muito amor, pois claro. Por isso comprem o livro, e manuseiem-no como se abrissem as páginas de alguém que amam. Vocês vão amar este livro. Podem mesmo manuseá-lo a quatro mãos: um/uma lendo e relendo para o outro/ a outra cada parágrafo, e saboreando cada frase.
Querem um exemplo (não resisto á transcrição)? Ele reclina-se no sofá, ela pousa a cabeça no ombro, ele lê ela ouve:
“Pronto, agora vamos divertir-nos um pouco. Vamos falar de sexo. Vamos falar de mulheres. Freud dizia que não sabia o que queriam as mulheres. Eu sei o que querem as mulheres: querem uma grande quantidade de gente com quem falar. Sobre o que e que querem falar? Querem falar sobre tudo.
O que querem os homens? Querem uma data de compinchas, e gostavam que as pessoas não se zangassem tanto com eles.
Porque há tanta gente a divorciar-se hoje em dia? É porque a maioria de nos já não tem uma família alargada. Antigamente, quando um homem e uma mulher se casavam, a noiva ficava com muito mais gente com quem falar sobre tudo. O noivo ficava com muito mais compinchas a quem podia contar anedotas parvas.
Há uns poucos americanos, mas são muito poucos, que ainda tem famílias alargadas. Os navajos. Os Kennedys.
Mas para quase todos nós, se nos casarmos nos dias que correm, somos só mais uma pessoa para a outra pessoa. O noivo fica com mais um compíncha, mas é uma mulher. A mulher fica com mais uma pessoa com quem pode falar sobre tudo, mas é um homem. Quando um casal tem uma discussão hoje em dia, eles podem pensar que é sobre dinheiro, poder, sexo, ou sobre como educar os miúdos, ou outra coisa qualquer. Mas o que eles estão realmente a dizer um ao outro, embora não se apercebam disso, é isto: “Tu não és pessoas que cheguem!”
Um marido, uma mulher e uns quantos miúdos não são uma família. São uma unidade de sobrevivência muitíssimo vulnerável.”

Chega para abrir o apetite?
Não? Querem algo mais substancial? Mais na linha do que o título promete? Memórias da América de George W. Bush?
Então agarre na mão dele ou dela, e comece a sussurrar-lhe ao ouvido:
“TENHO ALGUMAS NOTÍCIAS PARA VOS DAR.
Não, não me vou candidatar à presidência, apesar de saber que uma frase, se for para ser completa, tem de ter tanto um sujeito como um verbo.
Nem tão-pouco vou confessar que durmo com crianças. Mas há uma coisa que posso dizer: a minha mulher é de longe a pessoa mais velha com quem já dormi.
As notícias são estas: vou processar a tabaqueira Brown & Williamson, que fabrica os cigarros Pall Mali, por danos no valor de mil milhões de dólares! Desde os meus doze anos, nunca fumei outra coisa que não fosse Pall Malls sem filtro, uns atrás dos outros. E há já muitos anos que a Brown & Williamson promete, ali mesmo na embalagem, que me há-de matar.
Mas agora tenho oitenta e dois anos. Obrigadinho, seus patifes nojentos. A última coisa que eu queria era estar vivo numa altura em que as três pessoas mais poderosas de todo o planeta se chamassem Bush, Dick e Cólon.
O nosso governo está empenhado numa guerra contra as drogas. Isso é certamente muito melhor do que não haver drogas de todo. Foi o que se disse sobre a lei seca. Têm a noção de que, entre 1919 e 1933, era absolutamente proibido fabricar, transportar ou vender bebidas alcoólicas? E o jornalista cómico Ken Hubbard disse: “A lei seca é melhor do que não haver álcool de todo.”
Mas agora ouçam isto: as duas substâncias das quais mais pessoas abusam mais vezes, as mais viciantes e destruidoras de todas são ambas perfeitamente legais.
Uma, é claro, é o álcool etílico. E o presidente George W. Bush, nada mais, nada menos, e ele próprio o admite, esteve bêbedo, ou não muito bem, ou mais para lá do que para cá durante grande parte do tempo desde os dezasseis até aos quarenta anos. Aos quarenta e um anos, diz ele, Jesus apareceu-lhe e fê-lo largar a garrafa, parar de se alimentar pelo nariz.
Outros bêbedos viram elefantes cor-de-rosa.
Quanto ao meu historial particular de abuso de substâncias estranhas, fui um cobarde no que toca à heroína e à cocaína, ao LSD, e por aí adiante, com medo de que elas me fizessem passar para o outro lado. Fumei, de facto, um charro de marijuana uma vez, com o Jerry Garcia e os Grateful Dead, só para ser sociável. Não pareceu que tivesse tido qualquer tipo de efeito sobre mim, nem bom nem mau, portanto nunca mais voltei a fazê-lo. E, graças a Deus ou seja lá ao que for, não sou alcoólico, o que é em grande parte uma questão de genes. Tomo uma ou duas bebidas de quando em quando, e fá-lo-ei outra vez esta noite. Mas duas é o meu limite. Sem problemas.
Claro, sou claramente agarrado aos cigarros. Continuo na esperança de que os malditos me matem. Numa ponta uma chama e na outra um tonto.”
Bom, só vos peço que continuem a leitura. È proveitosa e estimulante. Um belo livro. Daqueles que se agarra na primeira página e só se larga na última, e se volta atrás para saborear uma frase ou uma consideração mais grave ou mais oportuna. Ou mais delirante.
De Kurt Vonnegut só conhecia “Matadouro 5” (Slaughterhouse-Five), arrepiante descrição dos bombardeamentos de Dresden, de que foi sobrevivente. Este romance poderosíssimo deu origem a um filme particularmente interessante de George Roy Hill que estreei no Apolo 70, quando eu era seu director de programação.

MATADOURO 5
Título original: Slaughterhouse-Five
Realização: George Roy Hill (EUA, 1972); Argumento: Stephen Geller, segundo romance de Kurt Vonnegut Jr.; Música: Glenn Gould; Johann Sebastian Bach; Fotografia (cor): Miroslav Ondrícek; Montagem: Dede Allen; Casting: Marion Dougherty; Design de produção: Henry Bumstead; Direcção artística: Alexander Golitzen, George C. Webb; Decoração: John McCarthy Jr.; Maquilhagem: John Chambers, Mark Reedall; irecção de produção: Production Management, Lloyd Anderson, Ernest B. Wehmeyer; Assistentes de realização: Ray Gosnell Jr.; Harvey S. Laidman; Som: James R. Alexander, Vincent Connelly, Andrew Kazdin, Milan Novotny, John Strauss, Dick Vorisek; Efeitos visuais: Albert Whitlock; Produção: Jennings Lang, Paul Monash.
Intérpretes: Michael Sacks (Billy Pilgrim), Ron Leibman (Paul Lazzaro), Eugene Roche (Edgar Derby), Sharon Gans (Valencia Merble Pilgrim), Valerie Perrine (Montana Wildhack), Holly Near (Barbara Pilgrim), Perry King (Robert Pilgrim), Kevin Conway (Roland Weary), Friedrich von Ledebur, Ekkehardt Belle, Sorrell Booke, Roberts Blossom, John Dehner, Gary Waynesmith, etc.
Richard Schaal,
Duração: 104 min

Kurt Vonnegut nasceu em Indianápolis, EUA, em 1922. Actualmente vive em Nova Iorque e Bridgehampton.
Autor de trinta romances, vários ensaios e peças de teatro, muitos dos quais com adaptações ao cinema e à televisão, Kurt Vonnegut é um dos poucos grandes mestres da literatura norte-americana contemporânea.
Apesar da sua vasta obra, somente “Galápagos” e “Matadouro Cinco ou a Cruzada das Crianças” se encontram disponíveis em traduções portuguesas.

Obras sobre Kurt Vonnegut:
- Allen, William Rodney. Understanding Kurt Vonnegut. Columbia: University of South Carolina Press, 1991.
- Federman, Raymond. Critifiction: Postmodern Essays. Albany: State University of New York Press, 1993.
- Hume, Kathryn. "Kurt Vonnegut and the Myths and Symbols of Meaning". Critical Essays on Kurt Vonnegut. Ed. Robert Merrill. Boston: G.K. Hall & Co, 1990. 201-215.
- Klinkowitz, Jerome. Slaughterhouse-Five: Reforming the Novel and the World. Boston: Twayne Publishers, 1990.
- Krassner, Paul. "Case History of a Cyberhoax." The Realist Autumn, 1997: 1-4.
- Leeds, Marc. The Vonnegut Encyclopedia: an authorized compendium. London: Greenwood Press, 1995.
- Reed, Peter J. The Short Fiction of Kurt Vonnegut. London: Greenwood Press, 1997.
- The Vonnegut Web. Online. Duke University. Internet. 31 March 1998. Available: .
- Vonnegut, Kurt, Jr. Welcome to the Monkey House. New York: Dell Publishing Co., 1971.
- Weide, Robert. "The Morning After Mother Night." The Realist. Autumn, 1997: 1-11.

Outras obras de Kurt Vonnegut:
- Cat's Cradle. New York: Dell Publishing Co., 1972.
- Mother Night. New York: Avon Books, 1972.
- Palm Sunday. New York: Dell Publishing Co., 1984.
- God Bless You, Mr. Rosewater. Dell Publishing Co., 1974.
- Slaughterhouse-Five. Dell Publishing Co., 1991.
- Hocus Pocus. New York: Berkley Books, 1990.
- Timequake. New York: G.P. Putnam's Sons, 1997.
- Fates Worse Than Death. New York: G.P. Putnam's Sons, 1991.

Kurt Vonnegut no cinema: Como argumentista, ou escritor de que outros retiram argumentos para filmes, Kurt Vonnegut, ou Kurt Vonnegut Jr. Apatrece ligado aos seguintes títulos: "Bus Stop", episódio “he Runaways” (1961) TV; “Happy Birthday, Wanda June”(1971); “Between Time and Timbuktu: A Space Fantasy” (1972) (TV); “Matadouro 5” (Slaughterhouse-Five) (1972) (do romance “Slaughterhouse-Five Or The Children's Crusade”); Rex Harrison Presents Stories of Love (1974) (TV) (história do episódio "Epicac"); “Next Door” (1975); “Karikakramäng” (1977) (história do episódio "Promenaad"); “Slapstick” (Of Another Kind) (1982); “American Playhouse: Who Am I This Time?” (1982) (TV); “Displaced Person” (1985) (TV); “Long Walk to Forever” (1987); Monkey House (1991) (TV) (contos “Next Door”, “The Euphio Question” e “All the King's Horses” do livro “Welcome to the Monkey House”); Harrison Bergeron (1995) (TV); Mother Night (1996); “Breakfast of Champions” (1999) e tem neste momento em produção (Leonardo DiCaprio) “Cat's Cradle” (para estreia em 2007).

1 comentário:

Matilda Penna disse...

Parece mesmo ser interessante, se foi editado aqui vou ver se leio, :).