terça-feira, setembro 12, 2006

LIVROS

“A SOMBRA DO VENTO”

Acabei de ler “A Sombra do Vento”, de Carlos Ruiz Zafón. Belíssimo romance que mescla um pouco de tudo, do mistério ao melodrama, do picaresco tão retintamente espanhol ao actual romance-investigação que vai de Umberto Eco a Dan Brown, nas devidas proporções, já se vê. História de um pai, viúvo e livreiro, que leva um filho, adolescente, a visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos, numa Barcelona nocturna de pós guerra civil. O miúdo escolhe um livro para salvar, tal como em Ray Bradbury. O livro é “A Sombra do Vento”, de um tal Julián Carax. Quem foi o autor, qual o significado do livro, que leva uma misteriosa personagem de rosto transfigurado a andar pelo mundo a comprar e queimar todas as obras desse autor, que aconteceu a várias figuras que se cruzaram com o escritor, onde está, estará vivo ou morto, que tem a ver com a Guerra de Espanha…. Estas e dezenas de outras intrigantes questões vão-se multiplicando ao longo da obra. Entramos na narrativa e lentamente vamo-nos sentindo presos naquela teia algo mórbida, mas mágica também, que Carlos Ruiz Zafón vai lançando subtilmente e nos obriga a galopar nas suas páginas, por vezes com descrições fabulosas:

“Ergui a vista e sustentei-lhe o olhar. Não soube responder. Bea baixou os olhos e afastou-se até ao extremo da galeria. Uma porta conduzia à balaustrada de mármore aberta ao pátio interior da casa. Observei a sua silhueta fundir-se na chuva. Fui atrás dela e detive-a, arrebatando-lhe o envelope das mãos. A chuva fustigava-lhe o rosto, varrendo as lágrimas e a raiva. Conduzi-a de novo ao interior do casarão e arrastei-a até à calidez da fogueira. Ela evitava o meu olhar. Peguei no envelope e entreguei-o às chamas. Contemplámos a carta a quebrar-se entre as brasas e as páginas a evaporarem-se em volutas de fu­mo azul, uma a uma. Bea ajoelhou-se ao pé de mim, com lágrimas nos olhos. Abracei-a e senti o seu hálito na garganta.
— Não me deixes cair, Daniel — murmurou.
O homem mais sábio que alguma vez conheci, Fermín Romero de Torres, tinha-me explicado numa ocasião que não existia na vida experiência comparável como a da primeira vez que se despe uma mulher. Sábio como era, não me tinha mentido, mas tão-pouco me contara toda a verdade. Nada me tinha dito daquele estranho tremelique das mãos que convertia cada botão, cada fecho-éclair, em tarefa de titãs. Nada me tinha dito daquele feitiço de pele páli­da e trémula, daquele primeiro roçagar de lábios nem daquela miragem que parecia arder em cada poro da pele. Nada me contara de tudo aquilo porque sabia que o milagre só sucedia uma vez e que, ao suceder, falava uma língua de segredos que, mal se desvendavam, fugiam para sempre. Mil vezes quis recupe­rar aquela primeira tarde no casarão da Avenida del Tibidabo com Bea em que o rumor da chuva arrebatou o mundo. Mil vezes quis regressar e perder-me numa recordação da qual apenas consigo recuperar uma imagem roubada ao calor das chamas. Bea, nua e reluzente de chuva, deitada junto ao fogo, aber­ta num olhar que me perseguiu desde então. Inclinei-me sobre ela e percorri a pele do seu ventre com a ponta dos dedos. Bea deixou descair as pálpebras, os olhos, e sorriu-me, segura e forte.
- Faz-me o que quiseres - sussurrou.
Tinha dezassete anos e a vida nos lábios.”

(…)
“Um minuto antes do desenlace, o Julián levantou-se e afastou-se ao abrigo das sombras. Durante meses vimo-nos sempre assim, às escuras, em cinemas e vielas à meia-noite. O Julián encontrava-me sempre. Eu sentia a sua presença silenciosa sem o ver, sempre vigilante. Às vezes mencionava-te e, ao ouvi-lo fa­lar de ti, parecia-me detectar na sua voz uma estranha ternura que o confun­dia e que havia muitos anos julgava perdida nele. Soube que tinha regressado ao casarão dos Aldaya e que agora vivia lá, a meio caminho entre espectro e mendigo, percorrendo a ruína da sua vida e velando os restos da Penélope e do filho de ambos. Aquele era o único sítio no mundo que ainda sentia seu. Há piores prisões que as palavras.
Eu ia lá uma vez por mês, para me certificar de que ele estava bem, ou simplesmente vivo. Saltava a sebe meio derrubada da parte de trás, invisível da rua. Às vezes encontrava-o ali, outras vezes Julián tinha desaparecido. Deixava-lhe comida, dinheiro, livros... Esperava-o durante horas, até ao anoitecer. Em certas ocasiões atrevia-me a explorar o casarão. Foi assim que averiguei que ele tinha quebrado as lápides da cripta e extraído os sarcófagos. Já não jul­gava que o Julián estivesse louco, nem via monstruosidade naquela profanação, mas tão-só uma trágica coerência. Nas vezes que o encontrava lá falávamos du­rante horas, sentados ao pé do fogo. O Julián confessou-me que tinha tentado voltar a escrever, mas que não era capaz. Lembrava-se vagamente dos seus livros como se os tivesse lido, como se fossem obra de outra pessoa. As cicatrizes da sua tentativa estavam à vista. Descobri que o Julián confiava ao fogo páginas que escrevera febrilmente durante o tempo em que não nos tínhamos visto. Uma vez, aproveitando a sua ausência, recuperei um molho de folhas de entre as cinzas. Falava de ti. O Julián tinha-me dito certa vez que um relato era uma carta que o autor escreve a si próprio para contar coisas a si mesmo que de ou­tro modo não poderia averiguar. Havia tempo que o Julián perguntava a si mesmo se tinha perdido a razão. Saberá o louco que está louco? Ou os loucos são os outros, que se empenham em convencê-lo da sua insanidade para sal­vaguardarem a sua existência de quimeras? O Julián observava-te, via-te cres­cer e perguntava a si mesmo quem eras. Perguntava a si mesmo se porventura a tua presença não seria senão um milagre, um perdão que tinha de conquis­tar ensinando-te a não cometeres os seus próprios erros. Em mais de uma oca­sião interroguei-me sobre se o Julián não teria acabado por se convencer de que tu, naquela lógica tortuosa do seu universo, te tinhas transformado no fi­lho que ele perdera, numa nova página em branco para voltar a começar aque­la história que não podia inventar, mas que não podia recordar.”
Um belo romance que mais cedo ou mais tarde estará por ai em filme. Esperemos que não o estraguem.

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