terça-feira, setembro 12, 2006

LIVROS

“AS VELAS ARDEM
ATÉ AO FIM”

Já tinha aqui referido o húngaro Sándor Márai, quando dele li “A Herança de Eszter”. Nessa altura apareceu um comentário de “Silêncio” que dizia assim: “É, sem dúvida, um bom livro, mas, na minha opinião, não atinge a força e a profundidade de "As Velas Ardem até ao Fim". Este sim um livro excepcional.” Li, dei a ler, é realmente a descoberta de um grande escritor. Este romance, que fala do re-encontro de dois velhos militares que têm algo a contar um ao outro, toca de forma muito secreta em temas como a amizade, o amor, a homossexualidade, a traição, o re-encontro, a velhice, e tantos mais, é realmente uma obra-prima do romance moderno. Vale a pena ler. Ficam aqui dois excertos de uma narrativa matizada e subtil, onde nada transcende o murmúrio, mas marca definitivamente uma leitura.

“- É que estou a contar isto com bastantes pormenores - diz como quem se justifica. - Mas não pode ser de outra maneira: só através dos pormenores podemos perceber o essencial, aprendi assim nos livros e na vida. É preciso conhecer todos os detalhes, porque nunca sabemos qual deles é importante, quando pode uma palavra iluminar um facto. Deve-se manter a ordem em tudo. Mas agora já não tenho muito para contar. Tu tinhas fugido, a Krisztina saiu, foi para casa na caleça. E eu, o que posso fazer nesse momento e nos próximos tempos?... Olho para o quarto, o lugar de onde a Krisztina acabou de sair. Sei que na entrada, atrás da porta, está a tua ordenança, numa postura hirta. Chamo-o pelo seu nome, ele entra e faz continência. “Às suas ordens!” - diz. “Quando é que saiu o senhor capitão?...” “No comboio rápido da madrugada.” Esse comboio vai para a capital. “Levou muita bagagem consigo?...” “Não, apenas umas roupas civis.” “Deixou alguma ordem ou mensa­gem?...” “Sim. Há que fazer a liquidação da casa. E vender a mobília. O senhor advogado trata disso. Eu vou regressar ao regimento” - diz. Só diz isso. Olhamo-nos. E então acontece algo que é difícil de esque­cer: a ordenança - um rapaz de vinte anos, de origem camponesa, lembras-te certamente do seu rosto bondoso, inteligente e humano - aban­dona a posição de sentido hirto, deixa de me olhar nos olhos, como impõe o regulamento, e já não é o soldado que está em frente do seu superior, mas um homem que sabe alguma coisa diante de um outro homem de quem tem pena. Há no seu olhar algo de humano, de com­passivo, que me empalidece, mas que logo depois me deixa completa­mente corado... Neste ponto - pela primeira e última vez na história acontece que eu também perco a cabeça. Aproximo-me dele, agarro-lhe no dólman à altura do peito e com um movimento brusco, quase o levanto do chão. Estamos tão próximos que os nossos hálitos se con­fundem. Olhamo-nos profundamente nos olhos, o olhar do moço reflecte horror e ainda continua com aquela compaixão. Sabes que, nessa altura, não era aconselhável a ninguém cruzar-se com os meus punhos; partia tudo em que não tocava com cuidado. Como também sei isso, sinto que ambos estamos em perigo, eu e o moço. Por isso o solto, quase o deixo cair no chão, como um soldadinho de chumbo; as botas fazem um baque no soalho, ele põe-se outra vez em posição de sentido, como num desfile militar. Tiro um lenço do bolso para secar a testa. Basta uma pergunta e esse rapaz responderá. A pergunta é a seguinte: “A senhora que acabou de sair, tinha vindo cá outras vezes?...” Se ele não me responde, mato-o. Talvez o matasse também, mesmo que me respondesse, e talvez não só a ele... em momentos assim, não há amizade. E, ao mesmo tempo, sei que é escusado per­guntar. Sei que a Krisztina tinha vindo cá antes; não só uma vez, mas muitas vezes.
Recosta-se na poltrona e, com um movimento lento, deixa repou­sar as mãos nos braços da cadeira.
- Agora já não faz sentido perguntar nada - diz.- Aquilo que falta saber, um estranho não o pode revelar. É preciso saber porque é que aconteceu tudo aquilo. E onde está o limite entre seres humanos? O limite da traição? Era preciso saber isso. E ainda, que culpa tenho eu em tudo isto...
Di-lo em voz baixa, num tom interrogativo e desorientado. Nota-se na entoação que é a primeira vez que pronuncia em voz alta essa pergunta que vive latente na sua alma há quarenta e um anos, e para a qual ainda não encontrou a resposta.”

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