“O Perfume”
Do livro ao filme
“O Perfume” ilustra bem alguns dos erros mais frequentes das adaptações cinematográficas de obras literárias.
O primeiro, será procurar ser muito fiel aos factos relatados no livro, esquecendo que muitas vezes os factos não são o mais importante, e que, mesmo sendo importantes, não são o essencial. Veja-se a abertura do romance e recorde-se a abertura do filme. Atente-se e compare-se nas duas escritas e perceba-se como cada uma delas transmite uma mensagem diferente, porque escolhe um estilo diferente. A adopção de um comentário off não aproxima as obras, apenas facilita a sua conversão factual, “relatando” o que no romance se conta. Mas obviamente de forma mais sucinta, logo retirando cor e “perfume” à descrição.
“O Perfume”, de Patrick Sunkind, 1985
Editorial Presença, Lx, 1986
(trad. Maria Emília Serros Moura)
"O Perfume"
Caso 1
(abertura)
(abertura)
No século XVIII viveu em França um homem que se inseriu entre os personagens mais geniais e mais abomináveis desta época que, porém, não escasseou em personagens geniais e abomináveis. É a sua história que será contada nestas páginas. Chamava-se Jean-Baptiste Grenouille e se o seu nome, contrariamente aos de outros grandes facínoras de génio, como, por exemplo, Sade, Saint-Juste, Fouché, Bonaparte, etc, caiu hoje em dia no esquecimento, tal não se deve por certo a que Grenouille fosse menos impado de orgulho, menos inimigo da Humanidade, menos imoral, em resumo, menos perverso do que estes patifes mais famosos, mas ao facto de o seu génio e a sua única ambição se cingirem a um domínio que não deixa traços na História: ao reino fugaz dos odores.
Na época a que nos referimos dominava nas cidades um fedor dificilmente imaginável para o homem dos tempos modernos. As ruas tresandavam a lixo, os saguões tresandavam a urina, as escadas das casas tresandavam a madeira bolorenta e a caganitas de rato e as cozinhas a couve podre e a gordura de carneiro; as divisões mal arejadas tresandavam a mofo, os quartos de dormir tresandavam a reposteiros gordurosos, a colchas bafientas e ao cheiro acre dos bacios. As chaminés cuspiam um fedor a enxofre, as fábricas de curtumes cuspiam o fedor aos seus banhos corrosivos e os matadouros o fedor a sangue coalhado. As pessoas tresandavam a suor e a roupa por lavar; as bocas tresandavam a dentes podres, os estômagos tresandavam a cebola e os corpos, ao perderem a juventude, tresandavam a queijo rançoso, leite azedo e tumores em evolução. Os rios tresandavam, as praças tresandavam, as igrejas tresandavam e o mesmo acontecia debaixo das pontes e nos palácios. O camponês cheirava tão mal como o padre, o operário como a mulher do mestre artesão, a nobreza tresandava em todas as suas camadas, o próprio rei cheirava tão mal como um animal selvagem e a rainha como uma cabra velha, quer de Verão quer de Inverno. Isto porque neste século XVIII a actividade destrutiva das bactérias ainda não encontrara fronteiras e não existia, assim, qualquer actividade humana, quer fosse construtiva ou destrutiva, qualquer manifestação da vida em germe ou em declínio, que estivesse isenta da companhia do fedor.
E era, naturalmente, em Paris, que o fedor atingia o índice mais elevado, na medida em que Paris era a maior cidade da França. E no seio da capital existia um lugar onde o fedor reinava de uma forma particularmente infernal, entre a Rua aux Fers e a Rua de la Ferronerie, na realidade, o Cemitério dos Inocentes. Durante oitocentos anos, tinham-se transportado para lá os mortos do Hôtel-Dieu e os das paróquias vizinhas; durante oitocentos anos haviam-se trazido até ali, dia após dia, em carroças, os cadáveres que eram atirados às dúzias para fundas valas; durante oitocentos anos, haviam-se acumulado camadas sucessivas de ossos nas carneiras e ossuários. E foi só mais tarde, em vésperas da Revolução Francesa, quando algumas destas valas comuns se abateram perigosamente e o fedor deste cemitério a abarrotar desencadeou entre os habitantes das margens do rio não apenas protestos mas verdadeiros motins, que acabaram por encerrá-lo e esvaziá-lo, tendo sido os milhões de ossos e crânios empurrados à pá na direcção das catacumbas de Montmartre e construído um mercado, em sua substituição, neste local.
Aqui, neste sítio mais fedorento de todo o reino, nasceu Jean-Baptiste Grenouille, a 17 de Julho de 1738. Foi um dos dias mais quentes do ano. O calor pesava como chumbo sobre o cemitério, projectando nas ruelas vizinhas o seu bafo pestilento, onde se misturava o cheiro a melões apodrecidos e a trigo queimado. Quando começou com as dores de parto, a mãe de Grenouille encontrava-se de pé, atrás de uma banca, na Rua aux Fers, a escamar as carpas que acabava de estripar. Os peixes, supostamente pescados no Sena nessa mesma manhã, já cheiravam pior do que um cadáver. A mãe de Grenouille não distinguia, no entanto, entre o cheiro a peixe e o de um cadáver, na medida em que o seu olfacto era extraordinariamente insensível aos cheiros, e, além disso, a dor que lhe apunhalava o ventre eliminava toda a sensibilidade às sensações exteriores. Apenas desejava que a dor parasse; desejava pôr termo o mais rapidamente possível a este repugnante parto. Era o seu quinto. Todos os outros se haviam verificado atrás desta banca de peixe e sempre se tratara de nado-morlos, ou quase, porque a carne sanguinolenta que dela se escapava não se diferençava grandemente das miudezas de peixe que juncavam o solo, o também não possuiu, além disso, muito tempo de vida; à noite, tudo era varrido a trouxe-mouxe e levado nas carroças, em direcção ao cemitério ou ao rio. Era o que deveria passar-se, uma vez mais, naquele dia e a mãe de Grenouille, que ainda era jovem, vinte e cinco anos feitos, que ainda era bonita, que conservava quase todos os dentes e tinha ainda cabelos e que, independentemente da gota da sífilis, e de uma leve tuberculose não sofria de qualquer doença grave; que esperava viver ainda muito tempo, talvez cinco ou dez anos, e talvez até mesmo casar um dia e ter verdadeiros filhos na qualidade de respeitável esposa de um artesão viúvo, por exemplo,... a mãe de Grenouille desejava que tudo já tivesse acabado. E quando as dores de parto se fixaram, agachou-se, deu à luz debaixo da sua banca de peixe tal como das vezes anteriores e cortou com a faca de peixe o cordão umbilical do recém-nascido. Em seguida, porém, e devido ao calor e ao mau cheiro que ela não apercebia como tal mas como algo de insuportável e estonteante - um campo de lírios ou uma divisão demasiado pequena a transbordar de junquilhos -, desmaiou, caiu para o lado e rolou debaixo da banca até ao meio da rua, onde ficou estiraçada com a faca na mão.
Gritos, correrias, a multidão de basbaques à roda e alguém que vai chamar a Polícia. A mulher mantém-se prostrada no chão com a faca na mão e volta lentamente a si.
Perguntam-Ihe o que se passou.
— Nada.
E o que faz ali com a faca?
— Nada.
E de onde vem o sangue que lhe corre por baixo das saias?
— Dos peixes.
Ela levanta-se, atira a faca para o lado e afasta-se para se lavar. Mas eis que, contra todas as expectativas, a coisa por baixo da banca de peixe põe-se a chorar. As pessoas acorrem, e, sob um enxame de moscas, no meio das tripas e cabeças cortadas de peixe, descobri e liberta-se o recém-nascido.
“O Perfume”
Caso 2
Caso 2
Grenouille é levado para o patíbulo, mas em vez de ser justiçada barbaramente pela populaça em transe, liberta odores do seu perfume e enfeitiça os gentios. Veja-se o poder da descrição, tanto da personagem de Grenouille, como das situações, particulares e gerais, da população em bacanal para se perceber, de imediato, que a descrição literária tem poderes que a descrição cinematográfica ilude por completo. A descrição do ódio que Grenouille sente pelos gentios, nunca é sentida no filme, e mesmo a embriaguez com o sucesso passa muito pela rama. O livro triunfa em toda a linha, e tudo me leva a crer que o faz porque o filme utiliza (mal) meios excessivos. Não é pasoliniano quem quer, nem basta por corpos nus a reboar uns sobre os outros para se dar a sensação de caos voluptuoso. O que o filme faz é destruir toda a carga emotiva e simbólica que o livro encerra.
(…)
O povo, que se encontrava por detrás da barricada, abandonava-se, porém, de uma forma cada vez mais ostensiva, à espantosa embriaguez afectiva que o aparecimento de Grenouille desencadeara. Aqueles que, ao visitá-lo, apenas haviam sentido piedade e ternura, mostravam-se agora invadidos pela concupiscência; aqueles que, inicialmente, tinham admirado e desejado, entravam, agora, em êxtase. Todos consideravam o homem da casaca azul como o ser mais belo, mais sedutor e mais perfeito que poderiam imaginar: as freiras viam nele o Salvador em pessoa; os adeptos de Satã, o radioso príncipe das trevas; os filósofos, o Ente supremo; as jovens, um príncipe encantado; os homens, um reflexo ideal de si próprios. E todos se sentiam postos a nu e tocados no ponto mais sensível, no próprio centro do seu erotismo. Era como se este homem possuísse dez mil mãos invisíveis, e, em cada uma das dez mil pessoas que o rodeavam, tivesse colocado a mão no sexo acariciasse exactamente da forma que todos eles, homens e mulheres haviam desejado nas suas fantasias mais secretas.
Aconteceu, assim, que a execução prevista de um dos criminosos mais abomináveis da sua época degenerou na maior bacanal que o mundo havia conhecido desde o século ir antes de Cristo; esposas virtuosas arrancavam os corpetes, desnudando os seios com gritos histéricos e atiravam-se para o chão, com as saias erguidas; os homens avançavam aos tropeções de olhos alucinados neste campo de carne voluptuosa, retiravam das calças, com dedos trémulos, os sexos como que endurecidos por qualquer geada invisível, deixavam cair um gemido onde quer que fosse, copulavam nas posições e configurações mais inacreditáveis, o velho com a virgem, o jornaleiro com a mulher do advogado, o pequeno aprendiz com a freira, o jesuíta com a franco-maçónica, tudo à mistura, como ali se encontrava. A atmosfera com o suor adocicado do gozo e transbordava de gritos, gemidos e grunhidos das dez mil bestas humanas. Era infernal.
Grenouille mantinha-se de pé e sorria. Ou melhor, aos olhos das pessoas que o viam, parecia sorrir da forma mais inocente, mas afável, mais maravilhosa e mais sedutora do mundo. Nos lábios não desenhava, porém, um sorriso mas um terrível esgar cínico, reflectindo toda a amplitude do seu triunfo e do seu desprezo. Ele, Jean-Baptiste Grenouille, nascido sem odor no lugar mais fedorento do mundo, saído do lixo, da lama e da podridão, ele que crescera sem amor, sem o calor de uma alma humana, meramente impulsionado pela revolta e pelo nojo, pequeno, corcunda, coxo, feio, mantido à distância, abominável tanto por dentro como por fora - ele havia conseguido tornar-se simpático aos olhos do mundo. O que era isso de “tornar-se simpático”? Ele era amado! Venerado! Adorado! Tinha levado a cabo esse feito prometaico. A centelha divina que os outros homens recebem logo no berço e da qual só ele fora desprovido, conquistara-a mediante uma imensa luta efectuada com extraordinária subtileza. E mais! Fizera-a brotar no seu próprio íntimo. Era maior ainda do que Prometeu. Criara para si próprio uma aura mais radiosa e eficaz do que alguém po ssuíra antes dele. E não a devia a ninguém, a um pai, a uma mãe, e menos ainda a uma divindade benfeitora; devia-a apenas a si próprio. Ele era,na realidade, o seu próprio deus e um deus mais glorioso do que esse deus tresandando a incenso que habitava as igrejas. Aos seus pés encontrava-se prostrado um bispo em carne e osso e que gemia de prazer. Os ricos e os poderosos, as damas e os cavalheiros arrogantes morriam de admiração, ao passo que toda a gente em redor, inclusive os pais, as mães, os irmãos e as irmãs das suas vitimas, celebrava orgias em sua honra e em seu nome. Bastava um sinal para que todos renegassem o seu deus e o adorassem a ele, o Grande Grenouille.”
Sim, ele era o Grande Grenouille! Era bem visível neste momento. Era-o agora, na realidade, como nunca o fora nos sonhos em que se amava a si próprio. Neste momento, via o maior triunfo da sua vida. E sentia que este triunfo se tornava assustador.
Tornava-se assustador, na medida em que não podia usufruí-lo um segundo que fosse. No momento em que descera da carruagem para a praça inundada de sol, revestido do perfume capaz de causar amor nas pessoas, do perfume no qual trabalhara dois anos, do perfume que toda a vida ansiara por possuir... desde esse momento em que vira e cheirara como ele actuava irresistivelmente, e, espalhando-se à velocidade do vento, cativava a gente em seu redor; desde esse momento, voltara a ser invadido pelo seu nojo pelos homens, o que lhe estragava tão profundamente o seu triunfo que não sentia qualquer alegria, nem sequer o mínimo sentimento de satisfação. Aquilo que desde sempre tinha constituído a sua ambição, ou seja, que os outros o amassem, tornava-se-lhe insuportável no instante do sucesso, porque ele não os amava, odiava-os. E apercebeu-se, subitamente, de que jamais encontraria a sua satisfação no amor mas no ódio, o ódio que transmitisse aos outros e que os outros lhe transmitissem.
Contudo, o ódio que sentia pelos homens não encontrava correspondência. Naquele instante, quanto mais os odiava, mais eles o adoravam como a um deus, porque dele apenas captavam a aura de que se revestira, a sua máscara odorífera, o seu perfume roubado e este era, na verdade, digno de adoração.
Neste momento, agradar-lhe-ia soberanamente varrê-los a todos da superfície da terra, a estes estúpidos seres humanos, fedorentos, erotizados, tal como outrora havia eliminado os odores hostis do país da sua alma negra como o carvão. E desejaria que eles se apercebessem a que ponto os odiava e que, por este motivo, em prol do único sentimento que alguma vez experimentara, o exterminassem, como aliás havia sido a sua primeira intenção. Queria exteriorizar-se uma vez na vida. Queria uma vez na vida ser como todos os outros homens e exteriorizar o que lhe ia no íntimo: eles exteriorizavam o seu amor e a sua imbecil veneração e ele exteriorizaria o seu ódio. Queria que, por uma vez, uma só vez, tomassem em atenção o seu verdadeiro eu e receber de um outro ser humano uma resposta ao seu único sentimento verdadeiro: o ódio.
(…)
O povo, que se encontrava por detrás da barricada, abandonava-se, porém, de uma forma cada vez mais ostensiva, à espantosa embriaguez afectiva que o aparecimento de Grenouille desencadeara. Aqueles que, ao visitá-lo, apenas haviam sentido piedade e ternura, mostravam-se agora invadidos pela concupiscência; aqueles que, inicialmente, tinham admirado e desejado, entravam, agora, em êxtase. Todos consideravam o homem da casaca azul como o ser mais belo, mais sedutor e mais perfeito que poderiam imaginar: as freiras viam nele o Salvador em pessoa; os adeptos de Satã, o radioso príncipe das trevas; os filósofos, o Ente supremo; as jovens, um príncipe encantado; os homens, um reflexo ideal de si próprios. E todos se sentiam postos a nu e tocados no ponto mais sensível, no próprio centro do seu erotismo. Era como se este homem possuísse dez mil mãos invisíveis, e, em cada uma das dez mil pessoas que o rodeavam, tivesse colocado a mão no sexo acariciasse exactamente da forma que todos eles, homens e mulheres haviam desejado nas suas fantasias mais secretas.
Aconteceu, assim, que a execução prevista de um dos criminosos mais abomináveis da sua época degenerou na maior bacanal que o mundo havia conhecido desde o século ir antes de Cristo; esposas virtuosas arrancavam os corpetes, desnudando os seios com gritos histéricos e atiravam-se para o chão, com as saias erguidas; os homens avançavam aos tropeções de olhos alucinados neste campo de carne voluptuosa, retiravam das calças, com dedos trémulos, os sexos como que endurecidos por qualquer geada invisível, deixavam cair um gemido onde quer que fosse, copulavam nas posições e configurações mais inacreditáveis, o velho com a virgem, o jornaleiro com a mulher do advogado, o pequeno aprendiz com a freira, o jesuíta com a franco-maçónica, tudo à mistura, como ali se encontrava. A atmosfera com o suor adocicado do gozo e transbordava de gritos, gemidos e grunhidos das dez mil bestas humanas. Era infernal.
Grenouille mantinha-se de pé e sorria. Ou melhor, aos olhos das pessoas que o viam, parecia sorrir da forma mais inocente, mas afável, mais maravilhosa e mais sedutora do mundo. Nos lábios não desenhava, porém, um sorriso mas um terrível esgar cínico, reflectindo toda a amplitude do seu triunfo e do seu desprezo. Ele, Jean-Baptiste Grenouille, nascido sem odor no lugar mais fedorento do mundo, saído do lixo, da lama e da podridão, ele que crescera sem amor, sem o calor de uma alma humana, meramente impulsionado pela revolta e pelo nojo, pequeno, corcunda, coxo, feio, mantido à distância, abominável tanto por dentro como por fora - ele havia conseguido tornar-se simpático aos olhos do mundo. O que era isso de “tornar-se simpático”? Ele era amado! Venerado! Adorado! Tinha levado a cabo esse feito prometaico. A centelha divina que os outros homens recebem logo no berço e da qual só ele fora desprovido, conquistara-a mediante uma imensa luta efectuada com extraordinária subtileza. E mais! Fizera-a brotar no seu próprio íntimo. Era maior ainda do que Prometeu. Criara para si próprio uma aura mais radiosa e eficaz do que alguém po ssuíra antes dele. E não a devia a ninguém, a um pai, a uma mãe, e menos ainda a uma divindade benfeitora; devia-a apenas a si próprio. Ele era,na realidade, o seu próprio deus e um deus mais glorioso do que esse deus tresandando a incenso que habitava as igrejas. Aos seus pés encontrava-se prostrado um bispo em carne e osso e que gemia de prazer. Os ricos e os poderosos, as damas e os cavalheiros arrogantes morriam de admiração, ao passo que toda a gente em redor, inclusive os pais, as mães, os irmãos e as irmãs das suas vitimas, celebrava orgias em sua honra e em seu nome. Bastava um sinal para que todos renegassem o seu deus e o adorassem a ele, o Grande Grenouille.”
Sim, ele era o Grande Grenouille! Era bem visível neste momento. Era-o agora, na realidade, como nunca o fora nos sonhos em que se amava a si próprio. Neste momento, via o maior triunfo da sua vida. E sentia que este triunfo se tornava assustador.
Tornava-se assustador, na medida em que não podia usufruí-lo um segundo que fosse. No momento em que descera da carruagem para a praça inundada de sol, revestido do perfume capaz de causar amor nas pessoas, do perfume no qual trabalhara dois anos, do perfume que toda a vida ansiara por possuir... desde esse momento em que vira e cheirara como ele actuava irresistivelmente, e, espalhando-se à velocidade do vento, cativava a gente em seu redor; desde esse momento, voltara a ser invadido pelo seu nojo pelos homens, o que lhe estragava tão profundamente o seu triunfo que não sentia qualquer alegria, nem sequer o mínimo sentimento de satisfação. Aquilo que desde sempre tinha constituído a sua ambição, ou seja, que os outros o amassem, tornava-se-lhe insuportável no instante do sucesso, porque ele não os amava, odiava-os. E apercebeu-se, subitamente, de que jamais encontraria a sua satisfação no amor mas no ódio, o ódio que transmitisse aos outros e que os outros lhe transmitissem.
Contudo, o ódio que sentia pelos homens não encontrava correspondência. Naquele instante, quanto mais os odiava, mais eles o adoravam como a um deus, porque dele apenas captavam a aura de que se revestira, a sua máscara odorífera, o seu perfume roubado e este era, na verdade, digno de adoração.
Neste momento, agradar-lhe-ia soberanamente varrê-los a todos da superfície da terra, a estes estúpidos seres humanos, fedorentos, erotizados, tal como outrora havia eliminado os odores hostis do país da sua alma negra como o carvão. E desejaria que eles se apercebessem a que ponto os odiava e que, por este motivo, em prol do único sentimento que alguma vez experimentara, o exterminassem, como aliás havia sido a sua primeira intenção. Queria exteriorizar-se uma vez na vida. Queria uma vez na vida ser como todos os outros homens e exteriorizar o que lhe ia no íntimo: eles exteriorizavam o seu amor e a sua imbecil veneração e ele exteriorizaria o seu ódio. Queria que, por uma vez, uma só vez, tomassem em atenção o seu verdadeiro eu e receber de um outro ser humano uma resposta ao seu único sentimento verdadeiro: o ódio.
“O Perfume”
Caso 3
A sequência final, que encerra parcialmente a moral do livro, e conseguida no romance de forma abstracta e simbólica. No filme, mais uma vez se perde o poder evocativo das imagens, para se trocar por uma locução preguiçosa, que vem explicar tudo em meia dúzia de linhas, não vá o espectador sair sem perceber o que se tinha para dizer. A verdade é que o realizador nunca o disse ao longo do filme, e esta “explicação final” parece cair do céu aos trambolhões. “Ah, afinal era isso!”, pensam os espectadores. Veja-se como a escrita de Suskind tem um outro “perfume” e não procura inculcar de forma fácil uma lição final.
(…)
Precipitaram-se para o anjo, caíram-lhe em cima, prostram-no por terra. Cada um queria tocar, cada um pretendia a sua parte, possuir uma pequena pluma, uma pequena asa, uma centelha do seu fogo radioso. Arrancaram-lhe as roupas, os cabelos, arrancaram-lhe a pele, cravaram-lhe as unhas e os dentes na carne, atacaram-no como hienas.
Contudo, um corpo humano é duro e não se esquarteja facilmente; os próprios cavalos têm dificuldade em fazê-lo. Não tardou, igualmente, a divisar-se o brilho dos punhais que se abateram e cortaram; machados e facas silvaram ao atingir as articulações, ao quebrar os ossos que estalavam. Num curto espaço de tempo, o anjo foi desmantelado em trinta bocados e cada membro da horda empunhou o seu bocado, e, cheio de uma gula voluptuosa, afastou-se para o devorar. Meia hora depois, Jean-Baptiste Grenouille havia desaparecido da superfície da terra até à última fibra.
Quando, após terminarem o seu repasto, os canibais se reencontraram à volta da fogueira, ninguém pronunciou palavra. Um ou outro soltava um arroto, cuspia um bocadinho de osso, produzia um estalido discreto com a língua, empurrava com o pé para as chamas um minúsculo pedaço de tecido que restava da casaca azul. Estavam todos pouco à vontade e não se atreviam a encarar-se. Aqueles homens e mulheres tinham já na consciência um assassínio ou qualquer crime ignóbil. Mas comer um homem? Nunca na vida se teriam julgado capazes de uma coisa tão horrível. E admiravam-se, mesmo assim, por terem cometido aquele acto com tanta felicidade e não sentirem, à excepção da falta de à-vontade, o mínimo peso na consciência. Pelo contrário! Tinham o estômago um pouco pesado, mas o coração alegre. Nas suas almas tenebrosas surgiu um repentino palpitar de alegria. E nos rostos pairava-lhes um virginal e suave brilho de felicidade. Era indubitavelmente esse o motivo por que receavam erguer os olhos e fitarem-se.
Contudo, quando se arriscaram a fazê-lo, primeiro de fugida e depois abertamente, não conseguiram reter um sorriso. Sentiam-se extraordinariamente orgulhosos. Era a primeira vez que faziam qualquer coisa por amor.
(…)
Precipitaram-se para o anjo, caíram-lhe em cima, prostram-no por terra. Cada um queria tocar, cada um pretendia a sua parte, possuir uma pequena pluma, uma pequena asa, uma centelha do seu fogo radioso. Arrancaram-lhe as roupas, os cabelos, arrancaram-lhe a pele, cravaram-lhe as unhas e os dentes na carne, atacaram-no como hienas.
Contudo, um corpo humano é duro e não se esquarteja facilmente; os próprios cavalos têm dificuldade em fazê-lo. Não tardou, igualmente, a divisar-se o brilho dos punhais que se abateram e cortaram; machados e facas silvaram ao atingir as articulações, ao quebrar os ossos que estalavam. Num curto espaço de tempo, o anjo foi desmantelado em trinta bocados e cada membro da horda empunhou o seu bocado, e, cheio de uma gula voluptuosa, afastou-se para o devorar. Meia hora depois, Jean-Baptiste Grenouille havia desaparecido da superfície da terra até à última fibra.
Quando, após terminarem o seu repasto, os canibais se reencontraram à volta da fogueira, ninguém pronunciou palavra. Um ou outro soltava um arroto, cuspia um bocadinho de osso, produzia um estalido discreto com a língua, empurrava com o pé para as chamas um minúsculo pedaço de tecido que restava da casaca azul. Estavam todos pouco à vontade e não se atreviam a encarar-se. Aqueles homens e mulheres tinham já na consciência um assassínio ou qualquer crime ignóbil. Mas comer um homem? Nunca na vida se teriam julgado capazes de uma coisa tão horrível. E admiravam-se, mesmo assim, por terem cometido aquele acto com tanta felicidade e não sentirem, à excepção da falta de à-vontade, o mínimo peso na consciência. Pelo contrário! Tinham o estômago um pouco pesado, mas o coração alegre. Nas suas almas tenebrosas surgiu um repentino palpitar de alegria. E nos rostos pairava-lhes um virginal e suave brilho de felicidade. Era indubitavelmente esse o motivo por que receavam erguer os olhos e fitarem-se.
Contudo, quando se arriscaram a fazê-lo, primeiro de fugida e depois abertamente, não conseguiram reter um sorriso. Sentiam-se extraordinariamente orgulhosos. Era a primeira vez que faziam qualquer coisa por amor.
4 comentários:
Sabe que ando há muito para fazer uma adaptação deste livro para teatro. E tenho a certeza de que resultaria muito bem.
O que lhe parece?
M.M.: Por que não? Mas é dificil. O que não e dificil, tb nao tem graça. Avance. Se quiser ajuda, j+a sabe. LA
Mais uma vez, concordo com as doutas observações do Lauro António, pelo menos quanto aos casos 2 e 3.
Já quanto ao caso 1, tenho algumas dúvidas. Creio que o filme começa bem - ainda que divirja do livro - e que agarra eficazmente o espectador. A multidão furiosa, a sentença insólita, o jovem acorrentado e de ar frágil... A partir desse momento, queremos saber mais e é impossível tirar os olhos do ecrã. Um belo 'inciting incident', em suma.
Quanto ao resto, repito, estou de acordo com o Lauro António.
Mais uma coisinha, ainda a propósito do caso 1.
Continuo a achar que é um começo interessante, até porque, digamos assim, 'ataca em duas frentes' ou duas direcções:
a) Queremos saber o que vem a seguir, isto é, como o protagonista se vai safar ou não daquele sarilho; e
b) Queremos saber o que veio antes, ou seja, que fez o protagonista de tão horrível para estar ali.
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