segunda-feira, dezembro 18, 2006

VIAGEM AO NORTE, 2


2. EXPOSIÇÂO
DE EURICO GONÇALVES


Na Fundação Cupertino de Miranda, de que o Famafest guarda excelente recordação, pois foi ali, no seu auditório e nas suas galerias de exposições, que o Famafest começou, inaugurou-se uma exposição retrospectiva de um dos surrealistas portugueses, Eurico Gonçalves.
Eurico já estivera precisamente naquele espaço, numa exposição organizada pelo Famafest em 2000, integrada num conjunto de actividades paralelas ao festival cinematográfico. Eurico Gonçalves, Almada Negreiros e Luís Buñuel foram as exposições então apresentadas. Sinto-me feliz pelo pioneirismo. Nessa altura, no livrinho que se publicou dedicado a Eurico, escrevi um texto sobre o pintor e a obra que sobretudo um texto de amigo para amigo:

Eurico

Eurico e Dalila são meus companheiros quase diários à mesa do Vávà. Intervalam o trabalha no atelier dos Corucheus, mesmo ali atrás, com a hora de almoço, normalmente tardia, como a minha. E encontramo-nos a disputar um arroz de pato ou uma feijoada à brasileira. Fala-se de pintura e de cinema, de projectos, concretizados ou não, cruzamos interesses, e lentamente fomos deixando a amizade crescer por entre essas conversas à flor da pele. Depois, foram os anos das Bienais de Cerveira, os almoços e jantares sob a tenda desse enorme circo da vida onde a existência diária se transmuda em arte, as viagens à Corunha, os cafés, os passeios, as fotografias da Eduarda, as experiências pictóricas do Frederico, o "work shop" sobre pintura e cinema, a amizade que se vai estreitando.
À mesa do Vává, literalmente à mesa do Vávà, como já irão perceber, fui descobrindo a sua arte, e também um pouco dos automatismos do surrealismo. Nada melhor do que aprender com a prática. E foi vendo-os desenhar ao sabor do pão com manteiga e da conversa do dia, com um bom tinto para colorir o repasto, que fui assistindo à criação de alguns cadáveres exquis desenhados a quatro mãos nas toalhas de papel do restaurante. Alguns deles mereceram a gentileza de me serem depois dedicados (guardo-os religiosamente em pastas ou nas paredes da casa, como esse belíssimo "Manicure").
Diariamente, os traços e as letras vão ocupando com cavalos e peixes alados, monstros marinhos e grinaldas de flores as manchas brancas das mesas, criando um universo muito próprio, um fabuloso "puzzle" de referências pessoais, de signos, de memórias, de fantasmas, de obsessões, de desejos recalcados. Diariamente, numa das mesas do Vává, fica mais uma sessão de terapia de grupo, ou não fossem os automatismos, as coragens, as pinturas-escritas, as desdobragens, as "despinturas" dos surrealistas sessões de psicanálise transformadas em arte, na mais pura das artes. O próprio Eurico, um dia disse tudo sobre este misterioso processo criativo: "a pintura, essa, sabe mais de mim do que eu dela". Eu também o conheço melhor, depois de
ver a sua mão segura rasgar o papel num traço límpido, despojado, de uma serenidade oriental. São alguns desses desenhos e pinturas, que percorrem um longo itinerário pessoal e colectivo, e que vai desde os anos 50 até ao ano 2000, sempre ligado ao surrealismo, que aqui se apresentam em Famalicão, durante o Famafest 2000. Uma lição de arte, mas também uma lição de vida.



Mantenho tudo o que então disse. Substituía uma palavra: em vez de “ver a sua mão segura rasgar o papel”, escreveria “ver a sua mão segura afagar o papel.” Toda a obra de Eurico é delicada, discreta, elegante, subtil, o traço do lápis ou do pincel desliza, afaga, rasga o espaço, é verdade, mas sempre acariciando o papel ou a tela. Isso mesmo se pode ver nesta magnifica retrospectiva a que tive a honra de assistir antes da sua inauguração, conduzido pela palavra do pintor António Gonçalves que agora toma conta das actividades artísticas da Fundação Cupertino de Miranda.
Com a maioria das salas já montadas, mas algumas, as últimas, ainda a serem ultimadas, uma dúzia de telas ainda no chão, marcando lugar e esperando quem as coloque na parede, fomos falando com António Gonçalves, numa conversa sobre Eurico, comum amigo, suas etapas, desde o surrealista duro e puro dos anos 50 e 60, até ao surrealista Zen da primeira década do século XXI, admirando sempre as formas e as cores, as mais garridas e as mais suaves do pop da última fase, as figuras e a abstracção, as palavras e as letras, as tonalidades e o gestualismo, o consciente e o inconsciente, o sonho e o pesadelo, o corpo da mulher e o rosto de homem. Um universo, o de Eurico, que vale a pena não perder, em Famalicão, até 23 de Fevereiro de 2007. Visita guiada pelo pintor, dia 13 de Janeiro, a partir das 16 horas.



Para conhecer um pouco mais sobre Eurico Gonçalves, leia-se o que o pintor escreveu sobre si próprio:

“Surrealista desde 1949, nunca deixei de praticar o automatismo psíquico puro, que assumo até às suas mais extremas consequências.
Através do improviso, as minhas figuras foram dando lugar a simples sinais gráficos, ágeis caligrafias abstractas, executadas fora de qualquer motricidade imposta do exterior, ou seja, um pintura de sinais, derivada do gestualismo, tão depurada quanto possível. A execução gestual, rápida, directa e sem retoque, confrontasse com formas arquetípicas do inconsciente colectivo, tão defendido por Jung, que demonstrou haver uma grande conformidade entre o movimento das mãos e o próprio estado de espírito. Por seu turno, André Breton declarou que a finalidade do surrealismo é a reabilitação de todas as capacidades psíquicas. Os dados imediatos do inconsciente e a intervenção do acaso foram explorados por mim na pintura-escrita que assumo como um ritual, pesquisando relações entre o comportamento vitalista Dádá e a sageza do Budismo Zen.
Se, no início dos anos 60, as caligrafias a tinta da china preta evidenciam o vazio, representado pela nudez branca do papel, nas despinturas, descolagens e desdobragens que realizo posteriormente, o suporte redescoberto na sua nudez original como campo residual da intervenção da escrita, em função do acaso. Chamo a atenção para a importância do prefixo "des" no desenvolvimento da minha obra. Segundo Zen, é pela negação do sinal que se cria um novo sinal. Assim, ao despintar, que consiste em tirar a cor, ao descolar, que consiste em retirar o que foi colado, e ao desdobrar, que consiste em ver o que fica, através de um processo psicologicamente análogo ao da "decalcomania", é o suporte que é revalorizado na sua globalidade, como amplo campo de registo gestual. O primado do suporte e a meditação visual dos processos de registo permitiram-me redescobrir, intuitivamente, na minha pintura de signos, o sentido do arabesco ibérico e das tradições artesanais mediterrânicas, onde o branco e o preto valem como cores e não como luz e sombra.
Ao aprofundar o automatismo psíquico, através do gestualismo e da caligrafia espontânea, aproximei-me do espírito Zen de uma arte directa, sem correcção, nem retoque, que, quanto a mim, encontra afinidades com a atitude vitalista Dádá. Uma concepção demasiado limitada do automatismo psíquico puro tem levado alguns críticos, literatos e muitos artistas a não compreender o surrealismo fora do âmbito figurativo, quando André Breton encontrara já, em 1955, a comprovação do automatismo psíquico numa pintura de signos, tão rigorosa e puramente abstracta como a de Jean Degottex, com quem trabalhei em Paris, em 1966-67. A meditação que proporcionou o meu encontro pessoal com Degottex intensificou a minha crença no surrealismo abstracto. Pela mesma razão, vim a prefaciar uma exposição de Henri Michaux, em Lisboa, em 1972. Curiosamente, Michaux e Degottex também aderiram ao espírito Zen, bem como outros artistas que admiro como Masson, Miró, Tápies, Ives Klein e Rothko.
O que importa, escrevia Breton, é não apenas o efeito a conseguir, mas "a Qualidade, a pureza dos meios" utilizados. E, em 1962, insistia: "A pintura actual, denomine-se ela action-painting, pintura gestual, informal, etc., provém, antes de tudo, do automatismo, deriva da promoção do automatismo pelo surrealismo". "A escrita automática não poderia ser um rim em si mesmo. Quando muito, procura-se obtê-la tão pura quanto possível e, a partir dai, é fácil reconstituir a série de operações mentais que envolve". "Não se está longe do tiro ao arco e do tomar conta das vacas, na filosofia Zen".
"A SETA JÁ CONTÉM O ALVO, MAS SÓ PERCORRE A SETA AQUELE QUE LHE CONHECE O ALVO. ASSIM É DE OLHOS VENDADOS QUE O GRANDE ATIRADOR ALVEJA" - António Maria Lisboa.
A minha pintura mais recente reafirma-se em função da textura e doutras características especificas do suporte, onde, por vezes, se reintegra a colagem como meio de autoprovocação da capacidade expressiva de uma linguagem, Que condensa em si a experiência do cheio e do vazio, da mancha e do traço vertiginoso. É uma pintura-escrita livre, inteiramente inventada no momento de execução.” Eurico Gonçalves. 1993-97


Sobre DáDá-ZEN Pintura-Escrita, tema que ocupa a última obra de eurico Gonçalves, este afirma:

"O Satori ou a iluminação espiritual Zen tem algo a ver com O PONTO DO ESPÍRITO (SURREALISTA) ONDE O ALTO E O BAIXO, O INTERIOR E O EXTERIOR, O SONHO E A ACÇÃO, O REAL EO IMAGINÁRIO, DEIXAM DE SER PERCEBIDOS CONTRADITÓRIAMENTE.
O espírito surrealista tende a aproximar-se do do espírito Zen na síntese ou união dos contrários. O mondo (perguntas e respostas) e o humor Zen contribuem para despertar no espírto a apreensão imediata e total da vida, tal como o cadavre exquis e o automatismo psíquico puro surrealista.

Antes de estudar o Zen, uma árvore é uma árvore, um rio é um rio, etc. Assim que se começa a estudar o Zen, uma árvore não é uma árvore, um rio não é um rio, etc. Assim que se atinge o Satori ou a iluminação espiritual, uma árvore é de novo uma árvore, um rio é de novo um rio, etc. É nesta terceira fase que se revela a afirmação plena. A maioria dos artistas e poetas dadaístas e surrealistas ilustram a segunda fase da experiência Zen, sendomuito poucos aqueles que atingem a terceira, a do Satori ou da afirmação plena. Efectivamente, o ready-made de Marcel Duchamp, deslocado da sua função habitual, mostra por exemplo, que um urinol invertido não é um urinol, mas uma fonte; e um secador de garrafas não é mais um secador de garrafas, mas um ouriço. Dádá, dispensando a explicação dos actos e obras, afirma um novo tipo de comportamento. Repudiando todo e qualquer programa ou tentativa de sistematização da acção, aproximando-se, curiosamente, de um conceito metafísico do Taoísmo, que dizia: «O MÉTODO QUE CONSISTE EM NÃO SEGUIR NENHUM MÉTODO É O MÉTODO POR EXCELÊNCIA»; o que não está muito longe da afirmação de Tristan Tzara: «A AUSÊNCIA DE SISTEMA É AINDA UM SISTEMA, MAS O MAIS SIMPÁTICO»." - Eurico Gonçalves, in "Dádá-Zen"

Deixei Vila Nova de Famalicão em direcção ao Porto. Serralves, exposições, Casa da Música, um concerto, comboios regionais e Alfa. Voltarei amanhã para relatar.

2 comentários:

Ida disse...

Que inveja! Do conteúdo do texto, dos referentes vividos e do autor, que escreveu e viveu.

Anónimo disse...

Eduardo Santos Carneiro, também presente no Famafest, em Vila Nova de Famalicão...