Li de um fôlego, numa manhã que acordei mais cedo. Livrinho pequenino, editado pela asa e distribuído gratuitamente com o jornal “Público”. Uma preciosidade. Escrita ágil, inteligente, clara, daquela se vai pegando aos olhos e que nos obriga a não deixar as páginas. É uma compilação de três conferências realizadas no Fórum de Literatura da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Todas são excelentes. As duas últimas chamam-se “Da necessidade de chegar a um compromisso e da sua natureza” e “Do Prazer de escrever e do compromisso”. A ideia base da primeira, “Contra o Fanatismo”, é que a crise actual no mundo, sobretudo no Oriente Médio, em Israel e na Palestina, não diz respeito essencialmente aos valores do Islão, nem á mentalidade dos árabes no seu conjunto, mas resulta da antiga entre fanatismo e tolerância.
Eu que prezo a liberdade acima de tudo, não a posso conceber sem tolerância. Não se é livre se os outros o não forem também. Logo, o exercício da liberdade é um exercício conjunto de tolerância. O que equivale a dizer que a nossa liberdade termina quando a dos outros é posta em causa. O que no mundo actual não é muito bem visto, e ainda menos respeitado.
Para ilustrar as ideias o autor (de que vou ler agora a ficção com imensa curiosidade), aqui ficam excertos escolhidos, que julgo transmitirem um pouco do seu pensamento e que acredito abrirem o apetite para se ler mais do mesmo:
Eu que prezo a liberdade acima de tudo, não a posso conceber sem tolerância. Não se é livre se os outros o não forem também. Logo, o exercício da liberdade é um exercício conjunto de tolerância. O que equivale a dizer que a nossa liberdade termina quando a dos outros é posta em causa. O que no mundo actual não é muito bem visto, e ainda menos respeitado.
Para ilustrar as ideias o autor (de que vou ler agora a ficção com imensa curiosidade), aqui ficam excertos escolhidos, que julgo transmitirem um pouco do seu pensamento e que acredito abrirem o apetite para se ler mais do mesmo:
Da natureza do fanatismo
“Como curar um fanático? Perseguir um punhado de fanáticos através das montanhas do Afeganistão é uma coisa. Lutar contra o fanatismo, outra muito diferente. Receio não saber muito bem como perseguir fanáticos pelas montanhas, mas talvez possa apresentar uma ou duas reflexões ácerca da natureza do fanatismo e sobre as formas, se não de curá-lo, pelo menos de controlá-lo. A chave do ataque de 11 de Setembro contra os Estados Unidos não deve ser apenas procurada no confronto existente entre pobres e ricos. Esse confronto constitui um dos mais terríveis problemas do mundo, mas estaríamos errados se concluíssemos que o 11 de Setembro se limitou a ser um ataque de pobres contra ricos. Não se trata apenas de “ter e não ter”. Se fosse assim tão simples, deveríamos esperar que o ataque viesse de África, onde estão os países mais pobres, e que talvez fosse lançado contra a Arábia Saudita e os emirados do Golfo, que são os estados produtores de petróleo e os países mais ricos. Não. É uma batalha entre fanáticos que crêem que o fim, qualquer fim, justifica os meios, e os restantes de nós, para quem a vida é um fim, não um meio. Trata-se de uma luta entre os que pensam que a justiça, o que quer que se entenda por tal palavra, é mais importante do que a vida, e aqueles que, como nós, pensam que a vida tem prioridade sobre muitos outros valores, convicções ou credos. A actual crise mundial, no Médio Oriente, em Israel e na Palestina, não é uma consequência dos valores do Islão. Não se deve à mentalidade dos Árabes, como proclamam alguns racistas. De forma alguma. Deve-se à velha luta entre fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre fanatismo e tolerância. O 11 de Setembro não é uma consequência da bondade ou da maldade dos Estados Unidos, nem tem a ver com o capitalismo ser perigoso ou esplendorosa. Nem tão-pouco com ser oportuno ou com a necessidade de travar ou não a globalização. Tem a ver com a típica reivindicação fanática: se penso que alguma coisa é má, aniquilo-a juntamente com aquilo que a rodeia.
O fanatismo é mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo. Mais velho do que qualquer Estado, governo ou sistema politico. Infelizmente, o fanatismo é um componente sempre presente na natureza humana, um gene do Mal, para apelida-lo de algum modo. Aqueles que fazem explodir clínicas onde se pratica o aborto, nos Estados Unidos, os que incendeiam sinagogas e mesquitas na Alemanha, só se diferenciam de Bin Laden na magnitude, mas não na natureza dos seus crimes. Naturalmente, o 11 de Setembro produziu tristeza, raiva, incredulidade, surpresa, abatimento, desorientação e, é certo, algumas respostas racistas - antiarabes e antimuçulmanas - por todo o lado. Quem teria ousado pensar que ao século XX se seguiria de imediato o século XI?”
(…) “Talvez seja chegado o momento de todas as escolas, todas as universidades, facultarem pelo menos um par de cursos de Fanatismo Comparado, pois este está em toda a parte. Não me refiro tão-só ás óbvias manifestações de fundamentalismo e fervor cego. Não me refiro apenas aos fanáticos natos que vemos na televisão entre multidões histéricas que agitam os punhos contra as câmaras, ao mesmo tempo que gritam slogans em línguas que não entendemos. Não, O fanatismo está em todo o lado. Com modos mais silenciosos, mais civilizados. Está presente à nossa volta e talvez também dentro de nós. Conheço bastantes não-fumadores que o queimariam vivo por acender um cigarro ao pé deles! Conheço muitos vegetarianos que o comeriam vivo por comer carne! Conheço pacifistas, alguns dos meus colegas do Movimento de Paz israelita, por exemplo, desejosos de dispararem directamente a minha cabeça só por eu defender uma estratégia ligeiramente diferente da sua para conseguir a paz com os Palestinianos. No entanto, não afirmo que qualquer um que levante a voz contra alguma coisa seja um fanático. Não sugiro que qualquer um que manifeste opiniões veementes seja um fanático, claro que não. Digo que a semente do fanatismo brota ao adoptar-se uma atitude de superioridade moral que impeça a obtenção de consensos. É uma praga muito comum que, certamente, se manifesta em diferentes graus. Um ou uma militante ecologista pode adoptar uma atitude de superioridade moral que impeça a obtenção de consensos, mas causara muito pouco dano se o compararmos, por exemplo, com um depurador étnico ou um terrorista. Mais ainda, todos os fanáticos sentem uma atracção, um gosto especial, pelo kitsch. Muito frequentemente, o fanático só consegue contar até um, já que dois é um número demasiado grande para ele ou para ela. Ao mesmo tempo, descobriremos que, com alguma frequência, os fanáticos são sentimentais incuráveis: preferem, muitas vezes, sentir do que pensar, e têm uma fascinação especial pela sua própria morte. Desprezam este mundo e estão impacientes por trocá-lo pelo “Paraíso”. No entanto, o seu Paraíso é geralmente imaginado como o final de um mau filme.”
(..) “Quem são os bons? É essa a principal preocupação de todos os Europeus bem-intencionados, de todos os esquerdistas europeus, de todos os intelectuais europeus, de todos os liberais europeus. Quem são os bons e os maus da fita? Neste sentido, o Vietname era muito fácil. Sabia-se perfeitamente que os Vietnamitas eram as vítimas e os Norte-Americanos os maus. O mesmo se passava com o apharteid: podia-se discernir com facilidade que o apartheid era um crime e que a luta pelos direitos civis, pela libertação nacional, pela igualdade e pela dignidade humana, era um direito. A luta entre colonialismo e imperialismo, por um lado, e as vítimas do colonialismo e do imperialismo, por outro, parece relativamente simples: é fácil dizer quem são os bons e os maus. Quando se trata dos fundamentos do conflito israelo-palestiniano, as coisas não são tão lineares. E receio muito que não os facilitaria se eu dissesse simplesmente estes são os anjos e aqueles os demónios; bastará apoiar os anjos e o Bem prevalecerá sobre o Mal. O conflito israelo-palestiniano não é um filme do Faroeste selvagem. Não é uma luta entre o Bem e o Mal, mas antes uma tragédia no sentido mais antigo e rigoroso do termo; um choque entre quem tem razão e quem tem razão, um choque entre uma revindicação muito convincente, muito profunda, muito poderosa, e outra reivindicação muito diferente mas não menos convincente, não menos poderosa, não menos humana.”
(…) "Hoje lembro-me de uma velha história em que um dos personagens - de Jerusalém, está claro, de que outro sítio poderia ser? - está sentado num café em frente de um velho com quem entabula conversa. Ora, o velho é Deus em pessoa. Bem, o personagem não acredita logo, mas, após alguns sinais inconfundíveis, convence-se de que quem se senta do outro lado da mesa é Deus. E tem uma pergunta a fazer-Lhe, uma pergunta crucial, sem dúvida. «Querido Deus, por favor, diz-me de uma vez por todas: qual é a fé verdadeira? A católica romana, a protestante, talvez a judaica, acaso a muçulmana? Qual fé é a verdadeira?» E nesta história, Deus responde: “Para te dizer a verdade, meu filho, não sou religioso, nunca o fui, nem sequer estou interessado na religião.”
Amos Oz, Contra o fanatismo, tradução de Henrique Tavares e Castro, Edições Asa/Público, Lisboa, 2007.
2 comentários:
uma coisa são as guerras, e não há nenhuma que não tenha, como pano de fundo, interesses de poder ou económicos - o que é mais ou menos o mesmo.
outra coisa são as lutas, que se baseiam na defesa duma causa.
coisas que se confundem porque há demasiadas vitimas inocentes nos palcos de uma acção ou da outra.
quase todos tomamos partido por um lado ou outro. a imparcialidade só acontece quando existe desinteresse.
hoje é tudo mais complicado, porém. o conflito israelo-árabe tende a confundir-se com outras guerras que têm os árabes como protagonistas, com os seus "fanatismos" e "intolerâncias", mas não é a mesma coisa. não o foi na sua génese. tratava-se duma luta-reacção contra um ocupante invasor, e não há como escamotear isso por muito absurdas que nos pareçam as tácticas de guerra usadas.
há largos anos, no filme A rapariga do tambor, li uma frase que nunca mais esqueci, de palestino para israelita, quando criticado pela intifada: "dêem-nos os vossos helicópteros e bombas e nós dar-lhes-emos, de boa vontade, as nossas pedras".
(era qualquer coisa assim, estou a citar de memória.)
hoje têm os bombistas-suicidas. e é estonteante e dilacerante, do ponto de vista racional, não a sua existência, mas a forma como são criados para aquele fim.
hoje, de concreto mesmo, há uma contabilidade que não mente.
.........etc.........etc..........
....tantos etc's por esse mundo...
como sabes, é impossível discutir estes assuntos assim, sem interacção. só o tema "fanatismo" dava um tratado. é apenas um comentário a uma parte do teu post. que acaba com outro comentário a outra parte:
parece-me que deus não está é interessado no homem.
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a terra é, cada vez mais, um lugar triste.
sem a sabedoria da sua idade.
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(e acabam de passar, neste momento, na televisão, imagens de mais um ataque aéreo a gaza...)
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e eu vou indo. que amanhã, começo a lutar pela minha causa contra o meu invasor. ou, como dizem, amanhã é dia de escola. vou pôr a minha cara nº 78 para ver se imponho respeito :)
(haja espírito)
bjs
Excelente. O livrinho é uma amostra eloquente do autor. Simples, evidente, lógico, claro.
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