Patrícia Melo
Patrícia Melo é, nos últimos anos, uma das explosões brasileiras em termos de literatura. Rubem Fonseca é o seu mestre confessado. O que deixa garantia de bom gosto, não de génio. Mas o génio descobre-se por detrás deste seu último romance, “Mundo Perdido” (Ed. Campo das Letras, Porto, 2007).
“O Matador” era um dos seus romances de início de carreira, tinha Máiquel como protagonista, alguém que se transformava em assassino pelas contingências da vida e de uma sociedade marcada pela violência. Máiquel regressa agora neste “Mundo Perdido”, assumidamente assassino profissional, que mata por encomenda, mas que percorre as quase duzentas páginas da obra em busca da filha Samanta, que Erika, sua ex-companheira, e o pastor Marlénio, de uma seita neopentecostal, raptam e levam consigo, ao longo de uma tortuosa fuga que passa por todo o Brasil e ainda entra e sai da Bolívia.
Numa escrita forte, incisiva, nervosa, popular na sua terminologia, utilizando o calão com à vontade e propriedade, Patrícia Melo dá-nos um retrato de um pistoleiro aparentemente sem escrúpulos, que mata com um simples dedilhar de gatilho e vai embora sem problemas de consciência, mas que também se toma de amores por um cão vadio, feio, sujo e doente, que leva consigo até ao inferno sem pestanejar igualmente. Para lá desses retratos individuais, de Máiquel, mas também de algumas mulheres (como Eunice) que com ele se cruzam, e de alguns outros detectives privados que o servem, o que mais impressiona é a descarnada panorâmica de um país onde a violência se entranhou em todo o seu tecido social, onde ela é física, despudorada e animalesca, é certo, mas sobretudo psicológica, em seitas religiosas, em chefões policiais ou políticos, numa onda de capitalismo selvagem que mergulha até ao mais ínfimo, e onde o sucesso económico se basta como projecto de vida, desde o capitalista de São Paulo ao sem-terra da Rondonia.
A loucura homicida de Máiquel é um símbolo da loucura homicida de uma sociedade que se autodestrói sem futuro, sem alma, sem perspectivas. O humor e a ternura de algumas passagens só serve para estabelecer um confronto e agigantar a falta de uma perspectiva moral ou, melhor ainda, apenas humana.
Patrícia Melo tem a paixão do cinema. Já escreveu argumento para Rubem Fonseca e este já adaptara em 2003, o “Matador” de patrícia ao cinema, num filme chamado "O homem do ano", com realização de José Henrique Fonseca, filho de Rubem Fonseca. Tudo leva a crer que “Mundo Perdido” lhe siga o rasto e não nos tomamos por videntes excepcionais se preconizarmos matéria fértil para um bom thriller. Os americanos de 40 (Walsh, Fuller, Hawks, Huston, etc.) chamavam-lhe um figo. Que lhe chamarão os brasileiros de 2000?
“O Matador” era um dos seus romances de início de carreira, tinha Máiquel como protagonista, alguém que se transformava em assassino pelas contingências da vida e de uma sociedade marcada pela violência. Máiquel regressa agora neste “Mundo Perdido”, assumidamente assassino profissional, que mata por encomenda, mas que percorre as quase duzentas páginas da obra em busca da filha Samanta, que Erika, sua ex-companheira, e o pastor Marlénio, de uma seita neopentecostal, raptam e levam consigo, ao longo de uma tortuosa fuga que passa por todo o Brasil e ainda entra e sai da Bolívia.
Numa escrita forte, incisiva, nervosa, popular na sua terminologia, utilizando o calão com à vontade e propriedade, Patrícia Melo dá-nos um retrato de um pistoleiro aparentemente sem escrúpulos, que mata com um simples dedilhar de gatilho e vai embora sem problemas de consciência, mas que também se toma de amores por um cão vadio, feio, sujo e doente, que leva consigo até ao inferno sem pestanejar igualmente. Para lá desses retratos individuais, de Máiquel, mas também de algumas mulheres (como Eunice) que com ele se cruzam, e de alguns outros detectives privados que o servem, o que mais impressiona é a descarnada panorâmica de um país onde a violência se entranhou em todo o seu tecido social, onde ela é física, despudorada e animalesca, é certo, mas sobretudo psicológica, em seitas religiosas, em chefões policiais ou políticos, numa onda de capitalismo selvagem que mergulha até ao mais ínfimo, e onde o sucesso económico se basta como projecto de vida, desde o capitalista de São Paulo ao sem-terra da Rondonia.
A loucura homicida de Máiquel é um símbolo da loucura homicida de uma sociedade que se autodestrói sem futuro, sem alma, sem perspectivas. O humor e a ternura de algumas passagens só serve para estabelecer um confronto e agigantar a falta de uma perspectiva moral ou, melhor ainda, apenas humana.
Patrícia Melo tem a paixão do cinema. Já escreveu argumento para Rubem Fonseca e este já adaptara em 2003, o “Matador” de patrícia ao cinema, num filme chamado "O homem do ano", com realização de José Henrique Fonseca, filho de Rubem Fonseca. Tudo leva a crer que “Mundo Perdido” lhe siga o rasto e não nos tomamos por videntes excepcionais se preconizarmos matéria fértil para um bom thriller. Os americanos de 40 (Walsh, Fuller, Hawks, Huston, etc.) chamavam-lhe um figo. Que lhe chamarão os brasileiros de 2000?
Excertos de “Mundo Perdido”
(…) Estrada é bom pra pensar. Você engata a quinta, os pensamentos nascem do nada, de um buraco negro, você vê uma propaganda de seguro de vida para toda a família, uma família na mesa de jantar, sorrindo, papai, mamãe e filhinhos, e você pensa que a melhor hora de atacar é essa mesmo, quando todos estão se empanturrando, e depois os pensamentos continuam, um atrás do outro, e, quando você vê, você já está lá, pensando coisas, pum, o dia em que eu vou morrer, vermes, podrião, fim, ninguém mais mora aqui, só casca, esse carro vira lixo, sucata, as pessoas vão todas morrendo, as que você conhece, não sobra quase nada, e você continua com seus pensamentos, remexendo lá atrás, com raiva, adorando, odiando, esquecendo, e a coisa vai crescendo, ou nãoi, porque a Eunice atrapalha muito, ela tem mania de ler placas em voz alta e fala sem parar, desde pequena, sabe?, Máiquel, quando aprendi a ler, vi que não tinha volta, eu saía na rua com minha mãe e lia tudo o que aparecia na minha frente, preços, faixas, listas, placas, cartazes, propagandas, tudo, minha mãe, analfabeta, queria que eu lesse para ela alguma informação, nome de linha de ônibus, essas coisas, eu me sentia na obrigação de ler tudo o que aparecia na minha frente, era uma sensação ruim, como se as letras me atacassem, às vezes eu fechava os olhos, só para ter paz. Até hoje eu sou assim. Quer dizer, não fecho os olhos, leio tudo. Mas não sofro. Se está escrito, leio. Mas não dá para ler baixo?, perguntei. Não, não dava, ela precisava ler em voz alta. Porque era costume. Olha essa. Vendo esse terreno e outros melhores que este. Caramba, Máiquel, quem vai comprar este se eles vendem outros melhores? E depois você fala que Nova Iguaçu é feia. Osasco é de matar, hein? Poluída. Entulhada. Porra. Assim, eu não conseguia pensar . (p. 45-46)
(…) Eu ando pensando em virar pastor, também, disse Anderson, isso é que dá dinheiro no Brasil. Além do mais, você não precisa de faculdade, é só blábláblá mesmo, sabendo ler e escrever, o Espírito Santo cuida do resto.
Estávamos no escritório do Anderson, ele fumando, eu ouvindo. Pago tanto imposto, ele dizia, agora esses safados, esses macacos animadores de auditório, porque é isso que eles são, no começo sem as câmeras, sem os estúdios, e depois conseguem tudo, concessões do governo, viram donos de televisão, você já viu a quantidade de programa religioso na TV? Eu quase não ligava mais a televisão desde que a Eunice tinha se mandado. Só para ver futebol. Uísque, cigarro, cartão de crédito, antigamente eu adorava assistir essas propagandas, mulheres lindas, felizes, com jóias, homens com copos de bebida na mão, gargalhando, cheios de dentes, fumando, com cada carrão, andando na praia, de calça branca, em câmera lenta, agora isso quase não existia mais. Você nem via mais mulherão na TV. Só executivas, donas de casa, preocupadas em economizar. O Ministério da Saúde adverte, eles dizem, cigarro provoca câncer. Agora é assim. E oferecem frango a granel, coxão mole, boneca Susi pesquisadora de borboletas, três vezes de dez e noventa, aparelho de jantar dezesseis peças Duralex, quatro pratos rasos, quatro fundos, três vezes de seis e sessenta, e cortina em algodão cru, panela de pressão, tudo baratinho, a prazo, em vinte vezes ou mais, as Casas Nahia não te deixam em paz, propagandas feias, gente feia, tudo para você e seu lar, eles dizem. Quem não tem lar, como eu, não se interessa.
Para abrir uma seita, continuou Anderson, a única coisa que você precisa é cara-de-pau. Você vai no cartório e pronto, vira ministro. E não paga nada. É por isso que hoje tem igreja para cada tipo de fiel, bicha, empresário, surfista, até para os que querem falar com Deus em inglês. Neguinho mata dois coelhos com uma só cajadada, fala com Deus e aprende inglês. Mas e a Érica?, perguntei. Impressionante como o Anderson fugia do assunto. Érica se mandou, e você está perdendo seu tempo aqui em Campo Grande, ele disse. Pode fazer a mala e se picar. Ela deixou a cidade faz quatro dias. O safado do marido foi junto. (pág. 83-84)
(…) Fazia três dias que a gente estava na farra. Ela gostava de cheirar, a Lúcia. E de beber. Trazia pó para a pensão, trazia uísque também, e a gente se divertia.
Lembro ainda da primeira vez que ela subiu para o quarto. Fodemos de roupa e tudo. Agarrei Lúcia na porta. Levantei a saia dela, enfiei meu pau pela lateral da calcinha, segurando-a pela bunda. Ela sussurrou no meu ouvido, vou gozar, e aquilo me deixou com as pernas bambas. Deitei Lúcia na cama e passei o resto do dia fodendo. Lúcia era escandalosa, ria alto, gargalhava, falava palavrão, mas, na hora de gozar, sussurrava.
Outra coisa boa de Lúcia é que ela gostava de pau. Logo notou que eu tinha uma estrela tatuada ali. Nem toda mulher notava. Tem mulher que gosta de foder, gosta de um caralho no meio das pernas, mas não gosta de pau. Digo, não gosta de pegar. Nem de chupar. Não era o caso de Lúcia.
Por que você fez essa tatuagem?
Contei que tinha sido por causa de Érica. Sou mais velha que você, ela disse, vou te ensinar um segredinho: quando você está na cama com uma mulher, uma mulher bonita como eu, não fale de outra mulher. É chato, entendeu? Inventa qualquer merda. Minta. Diga que foi promessa. Para Nossa Senhora Aparecida.
Você perguntou, eu disse.
Isso não significa que eu queria saber a verdade. Não sou cientista. Nem sua mulher. Estamos aqui curtindo, entendeu?
Entendi. Foi promessa. (pág. 141)
5 comentários:
subecrevo....
conheço e gosto.
louvo o bom gosto. o teu. claro. sempre.
_____________________beijos lauríssimo.
Vou tomar nota! Parece ter um estilo muito próprio. Obrigada por esta referência tão actual.
Um bom domingo! :)
És o português que mais entende de Centro-oeste que eu conheço! Antes de andar pelo teu blog, pra mim, era só a região onde ficava o DF, além da Cora Coralina e o "pantanal".
COmo sempre, bom gosto... vai ser bom variar as leituras com o sotaque daqui.
Beijo... de cinema!
vai para a minha lista de espera. mais um.............
que lista tão comprida
li dois livros da patricia melo, inferno e mundo perdido. e não gostei, achei uma leitura muito dedicada ao feminino. mas vou ler outros talvez ache diferente. :S
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