segunda-feira, junho 11, 2007

A CONSTRUÇÃO DO OLHAR, II

Muitas são as formas de olhar e de ver. É conveniente estabelecer desde já uma distinção entre olhar (que pode ser uma forma passiva de assistir a algo) e ver (que pressupõe uma vontade). Pode olhar-se uma paisagem, pode ver-se a mesma paisagem. Pode olhar-se distraidamente para uma paisagem, pode ver-se com atenção a mesma paisagem. Olhar implica somente o sentido da visão (o sujeito desse olhar assiste passivamente). Ver corresponde a um outro nível de comprometimento pessoal. A distinção que vai da recepção de uma sensação à da recolha de uma percepção.
Quando se olha para um quadro, percebe-se o que ele representa. Mas o olhar pode ficar simplesmente pela superfície. Ver representa um acto de vontade, que tende a aprofundar o que se olha. Todos se devem recordar de uma foto célebre - considerada recentemente um dos melhores instantâneos do século que passou - e que se refere à Guerra do Vietname (2). Uma jovem vietnamita corre nua por uma estrada, rodeada por outros miúdos e alguns soldados norte americanos. Ao fundo um céu ameaçador, com o fumo das explosões de napalm a envolver tudo. Olha-se essa imagem e retemos estas informações. Mas se virmos com mais atenção todo o dramatismo da situação ressalta. O rosto da rapariga relembra um quadro de Munk, o pintor expressionista que conseguiu aprisionar numa tela um "grito" perfeitamente audível pelo espectador. A figura desamparada - nua - aparece numa total fragilidade perante a brutalidade de tudo o que a rodeia, simbolizado de forma evidente pelo clima de guerra. O sofrimento das crianças, contrasta com a indiferença de um soldado que acende um cigarro e com as nuvens. Trata-se de um instantâneo de reportagem. Não há encenação "artística" prévia. A encenação existe, mas é a que a própria realidade dos factos impôs. Não há também trabalho de enquadramento especial por parte do fotógrafo. Há apenas o resultado da captação de um momento de vida.
Mais adiante atentemos numa fotografia de publicidade. Qualquer fotografia ou filme de publicidade é um exemplo excelente para se perceber o trabalho que pré-existe: toda a obra publicitária pretende deliberadamente manipular o espectador e levá-lo a ter uma reacção determinada - normalmente adquirir o produto a que se faz menção. Por isso nada é deixado ao acaso. Tudo é previamente planificado, pensado, experimentado. Todos os efeitos causados no espectador devem ser previstos - não se pode correr o risco de fabricar um fotografia ou um filme de resultados contraproducentes. Numa imagem publicitária tudo deve ter um sentido, uma orientação precisa.
Começa-se por saber quem é o público alvo. Estuda-se depois a forma de cativar esse público. E estrutura-se a imagem tendo por base essas premissas. O espectador desprevenido olha, e deixa a mensagem funcionar no seu subconsciente. O espectador atento procura ver o que está a sua frente, e reagir de forma consciente.
Para o conseguir terá de adestrar o olhar. Este adestramento do olhar devia começar a ser feito na escola. Tal como se aprende a ler, deveria aprender-se a olhar. Toda a comunicação se faz através de signos, símbolos. A leitura todos aceitam que se ensine nas escolas. Ninguém nasce a saber ler. Ninguém nasce a saber falar. Ninguém nasce a saber ver. Falar pode aprender-se com a experiência. A criança à força de ouvir a mãe e o pai disseram "mãe" e "pai" associa o som à imagem e tenta reproduzir o som. Aprende a falar, como aprende a andar. É uma aprendizagem rudimentar da utilização dos símbolos. Em lugar da mãe, a criança diz "mãe". A palavra substitui o objecto. O mesmo se passa na escrita. A criança aprende a utilizar segundo regras pré estabelecidas as letras, as palavras, as frases. É a aprendizagem da escrita. O mesmo se deveria passar com o olhar. A sua utilização eficaz deveria ser aprendida na escola. O que acontece é que a aprendizagem faz-se no dia a dia, de forma empírica.
A criança começa a consumir imagens logo que abre os olhos. Antes de associar o som da palavra "pai" á presença da personagem do pai, a criança já sabe, porque vê, que aquela figura que está à sua frente todos os dias é o pai (mesmo que não saiba ainda o que significa pai). Depois, sentada em frente ao écran da televisão vai lentamente descodificando códigos. Haverá uma altura em que, sem o saber de forma consciente, sabe o que significa uma fusão. Quando uma cena de um filme fecha a negro, o espectador percebe que a que lhe sucede dista da anterior algum tempo. Sem saber o que é uma fusão, percebe a função da fusão. Empiricamente vai aceitando os códigos. Não os sabe porém por em causa, porque não conscencializa essa função. Não existe possibilidade de crítica.


A publicidade de forma evidente e deliberada joga com esse desconhecimento. Os políticos, os jornalistas, os artistas, os vendilhões do templo jogam com essa falta de preparação. Os artistas utilizam-na para criar um mundo fantástico e maravilhoso, manipulam em nome de uma nova realidade criada por eles. São os que têm alguma justificação ética para o fazerem. À partida não enganam. Ficcionam. Inventam. Re-criam. O público sabe ao que vai, quando vai ver Matrix, Tudo Sobre a Minha Mãe, Magnólia ou O Sabor da Cereja. Toda a obra de arte é uma manipulação que se aceita enquanto tal.
O público vai ao cinema para ser manipulado. O grande filme é uma sábia conjugação das imagens e dos sons que tende para isso mesmo, para criar a emoção, para acordar as consciências, para apontar erros, para mobilizar o público. Há também filmes, a sua grande maioria, que manipulam em função de outros valores- o lucro fácil, a ideologia que se procura vulgarizar, o apelo aos mais baixos instintos do Homem. Educar o olhar, ensinar a ver, é essencial para distinguir a verdadeira obra de arte, ou o simples e honesto divertimento, da obra de fácil, ou subtil, sedução mal intencionada.
Com a televisão passa-se o mesmo, agravado pela desenfreada corrida às audiências. Utilizam-se muitas vezes técnicas só aceitáveis na ficção, na reportagem, no documentário, agora nos "reality shows" ou nos concursos. O espectador necessita de estar atento, de saber ver, para ultrapassar as ciladas. As novas tecnologias agravam as possibilidades de mistificação. As imagens digitais permitem criar universos virtuais com a mesma força persuasiva dos reais. "Gladiador", de Ridley Scott, é fabuloso a reconstituir Roma antiga e nunca viramos o Coliseu com a força majestática com que esta obra nos apresenta. Mas se é possível reconstituir Roma antiga, também se podem forjar documentos ou anular outros. Toda o público sabe, quando vai ver "Gladiador", que se encontra perante um obra de ficção. Mas, quantos saberão, olhando para uma foto dos anos 40, "retocada" anos depois, que ao lado de Lenine e Estaline se encontrava Trotski, entretanto anulado por razões de Estado?
O olhar educa-se, constrói-se. Protesta-se por a juventude consumir apenas produtos de fácil consumo e de apelo aos mais baixos instintos. Mas os jovens a quem não se der a ouvir ópera, jazz, música clássica, blues, fazem o seu ouvido ao que vão escutando. O mesmo se passa no campo das artes visuais, ou audiovisuais, quer se trate do cinema, da televisão, do vídeo, da fotografia...
Numa civilização que se baseia na comunicação, e fundamentalmente na comunicação audiovisual, esquecer isso é esquecer algo de profundamente essencial. "O pior cego é o que não quer ver", diz a sabedoria popular, que inventou o provérbio numa altura em que não havia ainda audiovisuais. Dramático mesmo é querer ver e não poder, porque não se possuem as ferramentas adequadas. Dramático é impedir os outros de ver plenamente, conscientemente, criticamente a imagem que se lhe coloca à frente.
Ver uma imagem, ler uma obra audiovisual é, hoje em dia, um poder tão grande como ler um livro o era no tempo de "O Nome da Rosa" em que a torre da biblioteca era a local mais bem guardado do mosteiro - o "segredo dos deuses".
(1) - Pierre Fougeyrollas, prefácio a "Lire Une Image"
(2) - "Nick Ut", de Kim Plut, Associated Press, Vietname, 1972

nas imagens: três versões de "As Meninas", de Velasques a Picasso, passando por Whitkin

4 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Um tema hoje, mais do que nunca, soberano, imperioso, urgente. Ao qual sou particularmente sensível.
Um excelente texto e uma oportuna chamada de atenção para esta necessidade inadiável de aprender a olhar. Aprender e ensinar. Uma dupla responsabilidade.
Hoje, a voracidade do olhar (que não chega a "digerir") é assustadora!! Assim como a falta de ética que muitas vezes nos proporciona esse "repasto" de imagens...
Obrigada pela reflexão! :)

cineclube de faro disse...

bem, pelos vistos decidiu prestar serviço público, e generoso, com a publicação do seu texto. :-))))

faltou só uma: «se podes olhar, vê; se podes ver, repara.»

bem, no fundo não faltou...

abraço,
anabela moutinho (metemo-nos na aventura da blogosfera, tb!)

isabel mendes ferreira disse...

resta-me esperar que nunca o teu olhar deixe de construir "olhares".



em nome do Tempo.


_______________beijo. por um texto estruturadamente "telescópico".

Lis disse...

Textos desta dimensão, normalmente, assustam os leitores dos blogs mas este prendeu-me. É um tema que me interessa, que me entusiasma sobretudo porque o olhar, melhor «o ver» do outro é sempre mais ao meu.Não é superior, não é inferior, não é igual, é mais.E é o meu tema de investigação em curso. Obrigada por trazer mais ao meu olhar sobre o assunto.