Aqui há anos ainda fumava e escrevi um conto. Há quatro anos deixei de fumar, cigarrilhas e charutos (já não fumava há muito cigarros). Não fiz nem promessa nem sacrifício. Simplesmente dexou de me apetecer fumar. Deixou de me dar prazer. Parei, obviamente, e ainda bem.
Mas a cruzada anti-tabagista, continua, a um ritmo cada vez mais demêncial, entrando nos terrenos da verdadeira loucura. Agora, os filmes americanos onde apareçam fumadores são classificados para "adultos", segundo a nova legislação do "novo Código Hayes". Matar, assassinar, violar, morrer de overdose, traficar, manipular, ir para o Iraque ou o Afeganistão metralhar, prostituir e etc, passa para maiores de 12 anos. Fumar é para adultos. Em Portugal ia-se fazendo algo parecido: fumar incorria em penas mais graves do que injectar-se. Preferivel mesmo vender droga, está visto.
Haja tento na cabeça.
Em homenagem aos tempos em que se fumava no cinema, aqui fica um conto inédito, escrito há mais de oito anos.
O SENHOR Y
O telemóvel tocou e ele estremeceu. Apressou-se a carregar na tecla Yes para que a leve campainha – que ele tivera o cuidado de previamente colocar no mínimo de volume – não fosse ouvida ao longo da casa.- Esta?
- Sim, senhor...Y?
- Sou. Y ao telefone..
- Consegui o que queria. Posso passar agora por sua casa?
O aludido senhor Y olhou à sua volta e apurou o ouvido. Na cozinha ouvia-se a mulher a acabar os preparativos para o jantar. No quarto, o filho jogava vídeo games no computador. A velha mãe dormitava no sofá da sala.
- Acho que sim. Quanto tempo demora a chegar?
- Daqui a dez minutos estou aí.
- Espero por si à porta de casa. Eu desço...
- Ok, senhor Y...
E a chamada caiu.
O escritório estava em completo desalinho, contrastando com a rigorosa arrumação de todo o resto da casa. O senhor Y tinha à sua frente o computador onde passava o dia escrevendo, e que reunia o scanner, o fax, o vídeo telefone, o net meeting versão 2.003, a mais moderna versão aparecida no mercado. A anterior, do ano passado, era já completissima, mas a nova tornara obsoleta a placa de teclado. Todas as ordens podiam agora ser transmitidas oralmente. A última descoberta de Bill Gtes que assim mantinha e consolidava o seu império informático.
O senhor Y vestiu o casaco. Apesar de estarmos ainda em Setembro, àquela hora do dia, com o sol a descer já no horizonte, devia fazer algum fresco, pensou. O casaco era leve, beje. Y fechou atras de sai porta do escritório e dirigiu-se ao quarto do velho. Espreitou à porta.
- Pai, já consegui chegar ao nível 5...
- Vais ver que consegues. Tu és barra nisso...
Passou pela porta da sala: a mãe ressonava brandamente. Na cozinha, a mulher lutava com tachos e panelas, e cheirava a cozido à portuguesa.
- Vais sair?
- Vou lá baixo comprar... hesitou...Vou lá baixo apanhar um pouco de ar...
- O jantar está quase pronto... Vê lá não te demores...
- Cinco minutos... (olhou o relógio). Cinco minutos e estou de regresso....
Ela olhou para ele desconfiada:
- Que vais fazer?
- Apanhar um pouco de ar, já disse...
- Mesmo?... Vê lá o que fazes... Sentes-te bem?
- Sim, nada de especial... Apenas vontade de dar um passeio e apanhar ar puro na cara...
Y olhou e relógio e partiu. Apressado. Chamou o elevador, aguardou impaciente a descida dos doze andares, pautados pelos sons metalizados das passagens por cada patamar, passou os dedos pelos lábios. Estavam secos. Nervosismo certamente. Há dois dias que Y esperava este momento. Os contactos com o fornecedor estavam a ser cada vez mais difíceis. E mais raros. Tempos houve em que era fácil armazenar o suficiente para todo um mês. Mas agora tudo piorara de forma drástica. As campanhas na televisão tinham sido agressivas. O apelo aos familiares para denunciarem quem prevaricasse, em nome da defesa do ambiente, da saúde pública e mesmo da longevidade dos entes queridos, deu os seus resultados. Y sentia-se cada vez mais culpado, mas aos cinquenta e sete anos era difícil mudar. E não compreendia mesmo a histeria. De inicio brincara com a perseguição. Aceitara de bom grado algumas restrições: afinal a sua liberdade acabava quando começava a liberdade dos outros. Mas depois, lentamente, o clima de perseguição sistemática adensou-se. Começou a dizer que era o fascismo quotidiano, mas ninguém aparentemente o levava a sério. Os amigos iam cada vez mais furtando-se às conversas sobre o tema. Todos pareciam aceitar a proibição em nome do bem público. Mas Y sabia que alguns deles continuavam a ser abastecido pelo mesmo fornecedor.
Y estava já na rua há algum tempo, sem que ninguém aparecesse. Por debaixo do seu prédio havia uma floresta de colunas que lhe permitia esperar sem ser visto. Encostado a uma das colunatas, procurou sobretudo não dar nas vistas. Olhou para as varandas dos prédios que rodeavam a praceta. No nono andar do prédio em frente, vislumbrou uma fugaz chama. Um fósforo aceso? Um isqueiro? Tudo o que conseguia distinguir depois era um vulto de homem (ou seria mulher?) de costas para a rua. As luzes dessa varanda estavam apagadas, apenas penumbra e um vulto imóvel. Era o nono direito, pensou. Quem o habitaria? Pensava nisso quando sentiu um toque nas costas. Alguém lhe passou para as mãos um pequeno embrulho envolto num jornal dobrado em dois. Y levou a mão ao bolso, tirou um envelope e passou-o ao estranho que prosseguiu o seu caminho. Y encaminhou-se rapidamente para a porta do prédio. O elevador ainda se encontrava no rés-do-chão. Entrou, subiu, abriu a porta de casa, atravessou o corredor, ouviu a mulher gritar:
- O jantar está a arrefecer...
Dirigiu-se ao escritório, fechou a porta atrás de si, abriu uma gaveta da secretária, desdobrou o jornal, retirou o pequeno pacote. A curiosidade foi mais forte: que marca seria? Rasgou o papel que envolvia o volume. O filho abriu a porta do escritório e disse:
- Pai, a mãe chamou para jantar... Não vens?
Os olhos do filho centraram-se no pequeno volume que o pai tinha nas mãos. Y olhou o filho, segui-lhe o olhar, voltar a olhar os olhos do filho. Por instantes, ambos aguentaram esse olhar fixo. Depois o filho fechou a porta, Y fechou a gaveta da secretária, e foi jantar. À mesa ninguém abordou o assunto. Era cozido à portuguesa, e estava como sempre: delicioso. Mal acabou o jantar, Y foi ao escritório, regressou, passou pela sala onde todos viam televisão, e disse:
- Vou ao café...
A mulher e o filho entreolharam-se e não disseram nada, a mãe já voltara a cair no sono. Ressonava mesmo. Y saiu apressado. Mal a porta da rua se fechou, o filho levantou-se do sofá onde se encontrava sentado com a mãe e dirigiu-se ao hall. Ouviu o elevador descer. Pelo pequeno controlador de entrada, viu o pai sair do elevador no rés-do-chão e sair do prédio. Já de volta à sala, olhou a mãe, pegou no telefone e marcou o número das urgências do serviço de saúde e de apoio ao cidadão.
- Sim. Era para participar uma grave ocorrência. Um cidadão põe em causa o ambiente e arrisca mesmo a sua saúde... Sim, neste momento... Nas traseiras do edifício “Jardins do Éden”... Sim!...
E desligou.
Y passeava nas traseiras de sua casa, olhando em redor. Ninguém. A onda de violência que assolara a cidade impedia os habitantes de sair à noite. Poucos se afoitavam. Depois, os mais de duzentos canais de televisão disponíveis por cabo, tinham sempre algo de muito sedutor a oferecer ao público. O último grande sucesso de audiências era um concurso, com o sugestivo título de ”Apaga o Cigarro!” Os concorrentes perseguiam fumadores inveterados e “apagar o cigarro” era a finalidade. Cada fumador abatido valia mil pontos e a possibilidade de passar uma semana de verão na “Ilha Virtual” com todos os prazeres do mundo à descrição. O segredo era conseguir o “Capacete de Ouro”. Quem o lograva através do programa dispunha dele durante uma “semana de sonho”, “onde tudo lhe é permitido”. O concurso não tinha horário fixo, podia surgir a qualquer momento, em directo, e com o apoio dos Ministérios do Ambiente e da Tecnologia.
Y sabia o risco que corria, mas acendeu o cigarro.
Um holofote cruzou a noite e incidiu sobre Y. Dois policias vestidos de azul marinho, e de viseiras negras, abriram fogo. Y sentiu que as costas ficavam subitamente geladas, atravessadas por uma dor extrema, e caiu de bruços no chão. O cigarro saltou-lhe da boca. Y teve ainda forças para agarrar nele, levá-lo à boca e dar uma última fumaça. Olhou para as traseiras do décimo segundo andar do edifício “Jardins do Éden” mas não estava ninguém à janela. “Será que estão a ver o “Apaga o Cigarro!”, pensou ainda, numa altura em que sentiu a pesada bota de um dos agentes da ordem pisar o cigarro que tinha entre os dedos. O esmigalhar dos ossos já não o incomodou excessivamente, mas imaginou que a cena seria dada em “pormenor” pelo realizador destacado no canal de televisão de serviço público. O seu derradeiro pensamento, expressou-se em forma de dúvida: “Quem teria nessa noite direito ao “Capacete de Ouro”?
8 comentários:
Gostei imenso! :)
Envolvente enquanto ficção e reflexivo enquanto crítica mordaz.
Um beijinho amigo.
Gostei bastante.
Muito ao estilo do Bradbury e da queima dos livros. :-)
Votei e vou regressar
Não vou ser nada original ...
Gostei muito ! Muito !
b* isabel
gostei mesmo!
dá-me lume.
beijo de uma Lisboa chuvosa.
B.
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Gostei imenso!:)) Consegui transpor-me para a historia e vivê-la no sonho...faço muitas vezes isso. E um exercicio que aprendi:))
Muito bom. Atmosfera bem negra e sufocante. A ideia do concurso é fabulosa!
Gostei muitissimo =))
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