NOW, VOYAGER
Na “Manhã Submersa” há um momento em que o jovem protagonista, quando volta do seminário para a sua aldeia natal, lá nos picos da serra da Estrela, pára por momentos na esquina de uma ruela, olhando os cartazes que anunciam dois filmes para proximamente no cinema da terra. Um é bíblico, “O Sinal da Cruz”, de Cecil B. de Mille, o outro é um melodrama admirável de Gorge Cukor, “A Dama das Camélias” (“Camille” no original, o que terá a sua futura importância para este comentário). Enquanto vê as fotografias cartonadas ouve-se o fabuloso tema musical que Max Steiner criou para “Now Voyager”, um outro melodrama da época (este de 1942), realizado por Irvin Rapper, segundo romance de Olive Higgins Prouty (que também escrevera com muito sucesso “Stella Dallas”). Interpretado muito superiormente por Bette Davis, Paul Henreid, Claude Rains e Gladys Cooper, “A Estranha Passageira”, que revi agora, é mesmo uma das mais poderosas e fascinantes histórias de amor que o cinema nos deu e um dos retratos de mulher mais intrigante, complexo, perverso e ao mesmo tempo generoso que me lembro de ver. Que procurava eu ao colocar o miúdo de “Manhã Submersa” a ver a sua atenção ser solicitada por dois melodramas de sentido contrário, o melodrama bíblico e o melodrama de perdição amorosa? Tornar visível, em imagens que funcionassem pela sua própria simbologia, o drama interior de António, dividido entre a vida no seminário e o apelo do exterior.
“Now Voyager” adquiria assim, para mim, mas também para milhões de espectadores no mundo todo, o estatuto de referência mítica de uma obra onde o amor, nas suas mais diversas facetas, era tratado de forma sublime.
A América pode ter muitos defeitos, que têm; podemos estar muito zangados com algumas atitudes de muitos americanos, e invariavelmente estamos; mas, de repente, há um romance, um filme, um tema musical, uma peça de teatro, um quadro, uma declaração política, um gesto que nos mostra a grandeza desse povo. “Now, Voyager”, realizado em 1942, é uma obra admirável, que não deixa de surpreender ainda hoje, que ostenta uma modernidade, uma complexidade de análise, um intrincado jogo de sentimentos, de emoções, de situações que mostra bem a grandeza do romancista, do realizador, dos técnicos (fotografia a preto e branco magnífica, partitura musical inesquecível) e dos actores (todos brilhantes, mas uma Bette Davis de talento arrebatador) e impõe a grandeza do país onde foi criado. Em pleno regime pesado do malfadado Código Hayes, lançar-se no mercado um filme como este é obra que merece ser sublinhada.
Falemos então um pouco deste filme, ainda sob os efeitos do encantamento provocado pela sua visão. Não é uma obra-prima, não é um filme perfeito, tem arestas agrestes e uma ou outra sequência que deixa a desejar (mais uma vez o folclorismo do exótico de papelão, com uma passagem pelo Rio de Janeiro onde se fala um espanhol italianizado que escandaliza pela ligeireza, onde as transparências rodadas em estúdio chocam, onde apenas um ou outro plano tem autenticidade mínima). Mas, não sendo um filme perfeito, é uma daquelas obras que arrebata de principio a fim, que não nos deixa soltar os olhos do ecrã, que de quando em vez nos rasa os olhos de lágrimas de felicidade, que nos faz acreditar na beleza superior da arte, e que nos faz sentirmos felizes por existirmos. Mesmo quando se vêem exemplos do que se podem considerar fraquezas humanas e vícios sociais que, por vezes, destroem vidas impunemente.
Charlotte Vale (Bette Davis) é a filha não querida de Mrs. Henry Windle Vale (Gladys Cooper) que, por isso, a trata de forma despótica e a transforma numa mulher amarrotada pela vida e angustiada, tímida e fugitiva, sempre à beira de uma depressão. Nasceu fora de prazo, e muito embora no seio de uma família rica e das mais reputadas de Boston, Charlotte vive no andar de cima, fechada num quarto que é refugio e prisão, cabelo agarrado, vestido de tia solteirona, óculos de freira laica, olhar mortiço e uma única lembrança a ligá-la ao amor: um cruzeiro, uma fugaz história de amor com o oficial das comunicações, apanhados os dois em flagrante numa noite de luar no interior de um carro no porão das mercadorias. A vergonha, pelos olhos e a voz da mãe e do capitão do navio.
Daí em diante tem sido o exílio imposto e assumido. Até ao dia em que surge na família o Dr. Jaquith (Claude Rains), “o mais famoso psiquiatra do país”, que vem analisar o caso de Charlotte e descobre que a “a tirania é, por vezes, a expressão de instinto maternal.” Ao que Charlotte responde: “Se isso é o amor maternal, não quero colaborar nisso.” Jaquith leva Charlotte para uma casa de repouso e sanatório que dirige em Vermont, onde a rapariga rapidamente recupera a alegria de viver e a espontaneidade dos gestos. Foi necessário apenas desenvolver a auto estima e estimular a vontade própria para florescer uma mulher completamente diferente, confiante e divertida, extrovertida e sequiosa de amor. O que acontece durante a prova final do desafio superado, uma viagem a bordo de um cruzeiro, onde conhece e se apaixona por Jerry Durrance (Paul Henreid), um arquitecto, casado e pai de duas filhas.
As noites de amor existem, apesar de pudicamente elididas no filme (há elipses que tornam ainda mais fortes e intensas as imagens que apenas se pressentem e intuem), e, durante uma paragem no Rio de Janeiro, a voz do coração (e do desejo do contacto físico) fala mais alto. (Ficam por estas zonas as sequências estereotipadas sobre o Brasil, que mancham de alguma forma a coerência do projecto, mas adiante). Findo o cruzeiro, cada um parte para seu lado, mas Charlotte passa a ser para sempre a Camille de Jerry Durrance, recebendo camélias brancas directamente de Nova Iorque. Camille é a heroína de “Dama das Camélias”, vale a pena recordar, a mulher do prazer que se imola por amor, e Charlotte aceitar este labelo tem muito que se lhe diga.
Se durante a primeira parte do filme se vive na perversidade de um jogo de poder, com a mãe a dominar a filha de forma repulsivamente tirânica, a partir daqui a perversidade é outra. Não que a filha se volte contra a mãe, apesar de ignorar as suas pressões e chantagens, mas sobretudo nas relações que se prolongam entre Charlotte-Camille e Jerry Durrance. Ele habita longe, raramente se encontram, mas vivem um para o outro, num amor secreto que é um pacto de silêncio pejado de desejos. Charlotte chega mesmo a ficar noiva de uma pretendente de Boston. Uma noite, o casal de noivos vai a um concerto, na companhia de Jerry Durrance. Charlotte-Camille oferece a sua mão ao noivo e ostensivamente olha para Jerry Durrance. O plano é de uma obsessiva violência de significado. Charlotte não só sabe muito bem o que quer como quer libertar-se das peias que a amarram. Num outro plano fabuloso, pela sua encenação, vê-se a mãe de Charlotte de costas, com um braço a atravessar o enquadramento, enquanto a filha, oculta atrás de uma parede, vai discorrendo sobre o que quer para si e, sobretudo, sobre o que não quer que se mantenha, essa opressão sinistra exercida em nome de um amor maternal que não pode existir.
A história repete-se depois. A filha mais nova de Jerry Durrance, Tina, passa pelo mesmo calvário que Charlotte havia conhecido, vai parar à mesma casa de repouso, Charlotte serve-lhe de enfermeira e adopta-a como filha. Finalmente ela e Jerry Durrance têm algo em comum, uma filha, o resultado de um amor que não morre, que se estende para lá do impossível. “Para que queremos a Lua, se temos as estrelas?” é a frase final desta obra que materializa de forma brilhante o poder hipnótico do melodrama levado à sua essência, sem que, no entanto, por esse facto se deixem de abordar e tratar temas de uma gravidade e complexidade notáveis. “Now, Voyager” é o cinema no seu mais extremado limite de repensar o humano na sua vastidão e multiplicidade.
Na década de 40 a psicanálise ganha adeptos e impõe-se na América, nomeadamente. O filme é o reflexo dessa crença nas novas possibilidades desta terapia, mas fá-lo sempre com uma nobreza e seriedade invulgares. A figura do Dr. Jaquith é perfeita no registo, de uma compreensão e “sagesse” raras. O desdobramento de personalidades e de comportamento de Charlotte (de Charlotte para Camille) é particularmente brilhante. Bette Davis é uma actriz espantosa, que o público nem sempre compreendeu. Não era especialmente bonita ou escultural (como Garbo ou Marlene), mas esses handicaps tornam mais relevante a sua carreira, ainda por cima carregada de personagens sinistras e viciosas que afastam as actrizes da fácil simpatia das plateias. O retrato de Charlotte é uma das mais soberbas representações femininas da história do cinema.
Mesmo nos momentos mais depressivos, uma ponta de humor atravessa a obra. Quando perguntam a Charlotte se é menina ou senhora, ela responde com raiva, mas também algum orgulho, “Sou tia. Em todas as famílias há uma “tia”. Eu sou a tia dos Vale.”
De resto, psicanaliticamente, o filme desdobra-se em significações múltiplas. Será o Dr. Jaquith, a responder à mãe de Charlotte com uma frase que terá conotações pessoais, mas que poderá igualmente ter um leitura política e social (veja-se o caso português, o salazarismo, por exemplo): “Minha querida Mrs. Vale, se planeou deliberada e maliciosamente destruir a sua filha, não o poderia ter feito mais completamente.” Mrs. Vale, indignada, reage: “Como? Exercendo os direitos de mãe?” Jaquith volta ao ataque: “Os direitos da mãe? Uma criança tem os seus direitos, uma pessoa tem os seus direitos, tem de ser ela a descobrir os seus erros, a construir o seu caminho, a crescer e florir no seu próprio terreno.” Mrs. Vale, ironicamente, responde: “Agora fala-me de botânica, doutor? Nós somos flores?”
Outro dos aspectos muito curiosos desta obra parte de algo que hoje em dia se tornou um fantasma e uma obsessão: o cigarro. A lenda não sabe a quem atribuir um dos gestos que tornariam célebre este filme e que contribuiu igualmente para a criação do mito em redor desta obra e da sua simbologia erótica. A bordo do cruzeiro, a determinada altura do convívio de Charlottte com Jerry, este acende dois cigarros de uma só vez e estende um deles à companheira de conversa, que o aceita e leva aos lábios. A partir desta primeira cena, outras haverá ao, longo do filme, que assinalam momentos de maior proximidade afectiva ou intimidade. Essa troca de cigarros que passam de uma boca para a outra, esses beijos consentidos através de um prazer proibido (os cigarros estavam proibidos em casa dos Vale; Charlote fumava, fechada no seu quarto, às escondidas da mãe) são fogo que se alumia na noite do desejo, de um desejo que se compartilha, de uma solidão que se rejeita, de uma cumplicidade que se instala.
Ninguém sabe quem imaginou esta cena, o realizador chama-a a si, o autor do romance assinala que algo de semelhante era descrito do romance (cada um acende um cigarro e trocam-nos depois), mas é Paul Henreid quem vai mais longe, referindo que foi ele que teve a ideia de trazer para o filme algo que era costume ser feito em sua casa, entre ele e a mulher. Sem se saber quem foi realmente o autor da inspiração, fica o momento único desse cigarro que passa de boca em boca. Num filme onde o indizível tem tamanha forma e presença, esse gesto carregado de sentido é penas um entre muitos outros momentos de magia que fazem de “Now, Voyager” um clássico que permanece imaculável 55 anos depois. Tal como “Casablanca”, filme do mesmo ano e da mesma produtora, onde se descobrem igualmente dois dos mesmos actores, Claude Rains e Paul Henreid.
O título deste épico dos sentimentos, foi retirado de uma poema de um dos maiores escritores norte-americanos de sempre, o poeta Walt Whitman, que, em 1892, lançou “Leaves of Grass”, onde se encontra o citado “The Untold Want”: “The Untold Want / By Life and Land Ne'er Granted / Now, Voyager / Sail Thou Forth to Seek and Find.”
A ESTRANHA PASSAGEIRA
Título original: Now, Voyager
Realização: Irving Rapper (EUA, 1942); Argumento: Casey Robinson, segundo romance de Olive Higgins Prouty ("Lisa Vale"); Música: Max Steiner; Fotografia (p/b): Sol Polito ; Montagem: Warren Low; Montagens de sequência: Don Siegel; Direcção artística: Robert M. Haas; Decoração: Fred M. MacLean; Guarda-roupa: Orry-Kelly; Maquilhagem: Perc Westmore; Som: Robert B. Lee; Efeitos especiais: Willard Van Enger; Produção: Hal B. Wallis; Companhia de produção: Warner Bros. Pictures
Intérpretes: Bette Davis (Charlotte Vale), Paul Henreid (Jerry Durrance), Claude Rains (Dr. Jaquith), Gladys Cooper (Mrs. Henry Windle Vale), Bonita Granville (June Vale), Ilka Chase (Lisa Vale), John Loder (Elliot Livingston), Lee Patrick (Deb McIntyre), Franklin Pangborn (Mr. Thompson), Katherine Alexander (Miss Trask), James Rennie (Frank McIntyre), Mary Wickes (Dora Pickford), Janis Wilson (Tina Durrance), Michael Ames (Dr. Dan Regan), Charles Drake (Leslie Trotter), Frank Puglia (Manoel), David Clyde (William), Tod Andrews, Brooks Benedict, Frank Dae, Yola d'Avril, Donald Douglas, Claire Du Brey, Elspeth Dudgeon, Bill Edwards, Mary Field, Bess Flowers, Reed Hadley, Sheila Hayward, Bill Kennedy, George Lessey, Lester Matthews, Corbet Morris, Tempe Pigott, Hilda Plowright, Constance Purdy, Georges Renavent, Dorothy Vaughan, Isabel Withers, Ian Wolfe, Charlotte Wynters, etc.
Duração: 17 minutos; Estreia: 22 de Outubro de 1942 (EUA); Distribuição em Portugal (DVD): Warner
2 comentários:
muito bom este post... adorei a explicação sobre a Manhã Submersa: já não me lembrava dessa cena :(
Bette Davis, a minha diva daquela geração. Lembro-me de ser miúda e achar que lhe faziam aqueles olhos lá nas fitas...
:)
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