sexta-feira, agosto 24, 2007

LIVROS E FILMES: UM GOSTO E SEIS VINTÉNS


UM GOSTO E SEIS VINTÉNS
ou
MESMO ASSIM, ELAS AMAVAM-NO

Nesta onda de súbito interesse por obras de Somerset Maugham e por filmes delas retirados, tenho mandado vir, via Amazon, algumas dessas películas impossíveis de encontrar no mercado português. Uma delas foi “The Moon and Sixpence”, que Albert Lewin adaptara, em 1942, do romance homónimo do escritor, e que conta com dois bons desempenhos de George Sanders e Herbert Marshall.
Lembrava-me muito bem de ter lido esse romance quando era muito jovem, numas férias que já não recordava se foram na Praia das Maçãs ou na Ericeira, praias para onde habitualmente ia com os meus pais na adolescência. Eu era miúdo pouco dado a areia e calor (por aqueles lados também nunca havia muito disso), preferia ficar numa qualquer esplanada a ler jornais e livros, a falar com amigos, a namoriscar ou a ensaiar escritos de tom diverso. Coisas amarguradas de quem já começava a descobrir estes “eternos problemas” que, desde sempre, desesperam a Humanidade e tornam os putos dessa idade portadores de toda a desdita do mundo. E também de toda a esperança em transformar tudo para muito melhor. Enfim, coisas por que passam quase todos e por onde também andei.
Resta dizer que fui procurar a edição, o número 49 da magnífica “Colecção Miniatura” dos “Livros do Brasil” (que devorei quase toda, à medida que ia sendo publicada). Ia agrupando “As grandes obras em pequenos volumes” e “Pequenas jóias literárias dos maiores autores” (era verdade, não era “publicidade enganosa”!), e foi nessa colecção, que tinha primorosas capas desenhadas pelo Bernardo Marques, que li, pela primeira vez, Hemingway, Bernard Shaw, Maugham, André Gide, Virgínia Woolf, Huxley, Roman Roland, Erskine Caldwell, Steinbeck, Pratolini, e tantos outros. Ao abrir o muito manuseado livrinho, descobri uma dedicatória que me lançou numa peregrinação pelo tempo cheia dos bons cheiros da memória. Iz assim a dedicatória: “Do pai muito amigo, Para o Lató, com um grande abraço de parabéns pelo dia de hoje, 18 de Agosto de 1955. ERICEIRA” (Lató, era a forma como os meus pais me chamavam em miúdo, contracção de La(uro)(An)tó(nio)). Descobri pois que lera “Um Gosto e Seis Vinténs” na Ericeira, corria o ano de 1955, acabara de fazer 13 anos. Veio-me à memória a praia, o passeio nocturno pela estrada, as esplanadas, as Arribas, e lembro-me de meu pai a pintar várias telas, uma das quais ainda retenho na minha casa, com a praia dos pescadores, numa perspectiva “picada” (vista cá de cima).
Julgo que nunca tinha visto este filme, apesar de George Sanders ser um actor de minha muito particular estima. Depois de o ver, pego no livrinho e releio-o de um fôlego. Primeira conclusão a retirar: ao ver o filme senti-o muito palavroso, demasiado dependente de uma vez off, a do narrador, isto é a do escritor. Relendo o romance percebe-se o escrúpulo do adaptador, Albert Lewin, que também realizou o filme. Seguiu à letra o romance, em peripécias e em palavras, o que raras vezes resulta bem. Albert Lewin foi um realizador que fez dois ou três filmes muito interessantes, depois de um período como assistente de realização de alguns cineastas de mérito e de filmes que permanecem vivos. Começou a sua carreira de realizador precisamente com este “The Moon and Sixpence” (que em português recebeu o título, imaginem só, “Mesmo Assim, Elas Amavam-no”!), e continuando sempre nos domínios da literatura prossegui-a com “The Picture of Dorian Gray” (1945), “The Private Affairs of Bel Ami” (1947) e, finalmente, com “Pandora and the Flying Dutchman” (1951). Obras muito interessantes, dirigidas por um cineasta de sólida formação cultural e artística, com visíveis influências das vanguardas artísticas dos anos 20 e, sobretudo, dos surrealistas.
“The Moon and Sixpence” não é obra isenta de erros, o maior dos quais terá sido a obediência estrita a uma narrativa literária. Albert Lewin não teve coragem para se libertar das amarras da escrita de W. Somerset Maugham. Diga-se que, como muitos outros do mesmo autor este é um romance magnífico, onde mais uma vez um indivíduo é posto à prova pelas circunstâncias da vida e, implacável quanto ao caminho a percorrer, atinge a sua meta. Mais uma vez é uma aventura interior que está na base desta obra. Desta feita a base da intriga é a vida do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903), que no livro de W. Somerset Maugham se chama Charles Strickland (George Sanders), nasce inglês e o vamos encontrar no início da história bem instalado na vida como corretor de banca, casado e pai de dois filhos. Vida pacata, portanto, e nenhuma inquietação transparece no rosto. Até que um dia, de súbito, deixa tudo para trás das costas, e parte para Paris, onde pinta obsessivamente em busca de uma inspiração. A sua arte não é imediatamente reconhecida, mas nada o impede de continuar, sem olhar ao que quer se seja: os rogos da antiga mulher, a interferência de amigos, amantes que o procuram prender, colegas de profissão que o desprezam, críticos que não o apreciam… Tudo isto nos é relatado no romance por W. Somerset Maugham, no filme por uma personagem que toma o seu lugar, Geoffrey Wolfe (Herbert Marshall, que, anos mais tarde, desempenhará o papel do próprio W. Somerset Maugham em “ O Fio da Navalha”) que vai acompanhando a espaços o percurso de Strickland, mesmo quando este corta com Paris e parte para o Taiti, onde encontra alguma paz de espírito e finalmente aceita de alguma forma integrar-se numa comunidade, partilhar amor com uma nativa, e morrer de peste, imolando numa derradeira fogueira parte da sua obra pictórica que mais tarde será consagrada. É evidente que esta trama não acompanha literalmente a vida de Gauguin, mas é claro igualmente que o escritor se baseou neste pintor para arquitectar a sua intriga. À semelhança de quase todas as obras que conheço de W. Somerset Maugham, aqui também o autor acompanha uma personagem que o fascina pela obstinação numa procura, também existe um protagonista que se tenta encontrar, enquanto ensaia caminhos para alcançar a sua verdade e o seu rumo, também a viagem para paragens distantes – paradisíacas - ajuda a resolver a questão primordial, também a oposição entre individuo e sociedade, entre liberdade individual e preconceito social se agudiza, também a demanda de uma paz espiritual é a preocupação maior, mesmo que para tanto tenha de se assumir como um ser asocial…
Diante da adversidade nada detém Strickland que, perante algumas objecções sobre a sua imperiosa necessidade de pintar, responde: “Já lhe disse que tenho de pintar. É qualquer coisa mais forte do que eu. Quando um homem cai na água tem de nadar, bem ou mal, não importa: precisa é salvar-se.” A questão para Strickland é de simples sobrevivência: tem de pintar, tem de percorrer um calvário que pode parecer totalmente incompreensível para os outros, mas não o é para si, o que lhe basta. Pode parecer desumano aos olhos de todos, não o é aos seus próprios, o que lhe basta. Não sequer o reconhecimento dos seus iguais lhe importava. Quando atingiu a genialidade na pintura, não procurou a posteridade, antes incumbiu a sua mulher nativa de incendiar as telas e de destruir a perfeição que alcançara. Bastava-lhe a sua própria certeza. Pintara para atingir uma meta interior. Não para colher louros vindos de fora.
O filme de Albert Lewin é demasiado palavroso, mas contém argumentos suficientes para se manter visível: excelentes desempenhos, nomeadamente de George Sanders; uma boa partitura musical de Dmitri Tiomki, que esteve nomeada para Oscars; uma boa fotografia a preto e branco, com uma iluminação que por vezes roça o expressionismo e se mostra influenciada igualmente pelo surrealismo. Dentro da carreira de Albert Lewin é ainda um bom início de caminhada, que tornará possíveis outras obras interessantes como já vimos.
Há outros aspectos curiosos nesta obra, um deles que se manifesta em várias obras do escritor e nas suas respectivas adaptações: é possível descobrir uma certa misoginia por detrás de alguns retratos de mulheres. Não por caso, ainda que a citação adquira tons de ironia, o filme apresenta no cartaz original uma frase publicitária estranha: "Women are strange little beasts" que representa um pouco de alguns diálogos existentes: “As mulher não são muito inteligentes”, afirma a certo passo, Strickland. E o comportamento de algumas a isso poderia fazer pensar. A sua mulher inglesa desculpava a fuga do marido se fosse “por causa de outra mulher, mas nunca para prosseguir uma carreira de pintor. Por isso, odeia-o até à morte e deseja-lhe uma morte tormentosa” (o que acaba por acontecer, helás!). A nativa do Taiti não anda muito longe do “quanto mais me bates, mais gosto de ti.” “Olha que ainda te bato”, diz Strickland, ao que lhe responde Ata: "De que outra forma eu saberei que tu gostas de mim?”
Finalmente uma curiosidade: respeitando a vontade de Strickland, o filme nunca apresenta obras deste pintor na versão original que correu nos cinemas, até à derradeira sequência do incêndio. Nessa altura, viam-se, a cores, os quadros que as labaredas consumiam. Infelizmente na versão divulgada no DVD este pormenor não foi acautelado, passando toda a obra a preto e branco.
Esta não foi a única versão de “The Moon and Sixpence” em cinema e televisão. Em 1967, com realização de Donald McWhinnie (Inglaterra, Canadá, e argumento de Clive Exton, surge, na BBC, uma versão integrada na série “Play of the Month”, com Charles Gray (Strickland), e Ronald Hines (Dirk Stroeve). Anteriormente, Laurence Olivier fazia a sua estreia na televisão norte-americana, em 1959, numa excelente direcção de Robert Mulligan, ao lado de Judith Anderson (Tiare) e Hume Cronyn (Dirk Stroeve).
Falando agora de Paul Gauguin, o próprio, não há muito a registar em cinema. Uma obra de Fielder Cook (EUA, 1980), “Gauguin the Savage: Overview”, com David Carradine, Lynn Redgrave e Ian Richardson; um “Paul Gauguin”, de Roger Pigaut (França, 1975), em mini série de sete episódios, de 50 minutos cada, para TV, com Maurice Barrier (Gauguin), Nadine Alari (Aline Gauguin), Georg Marischka (Gustave Arosa), Gabriel Jabbour (Picasso), ente outros; e um documentário, “Paul Gauguin”, do italiano Folco Quilici (1957). Pouco, para tamanho talento e tão grande sede de absoluto.

MESMO ASSIM ELAS AMAVAM-NO
Título original: The Moon and Sixpence
Realizador: Albert Lewin (EUA, 1942); Argumento: Albert Lewin, segundo romance de W. Somerset Maugham; Música: Dimitri Tiomkin; Fotografia (p/b): John F. Seitz; Montagem: Richard L. Van Enger; Design de produção: Gordon Wiles; Direcção artística: Frank Paul Sylos; Maquilhagem: Ern Westmore; Direcção artística: Ray Heinz; Guarda-roupa: Albert Deano; Departamento de arte: Nina Saemundsson, Dolya Goutman; Som: Ferrol Redd; Coreografia: Devi Dja; Produção: Stanley Kramer, David L. Loew; Companhia de produção: David L. Loew-Albert Lewin.
Intérpretes: George Sanders (Charles Strickland), Herbert Marshall (Geoffrey Wolfe), Doris Dudley (Blanche Stroeve), Eric Blore (Capt. Nichols), Albert Bassermann (Dr. Coutras), Florence Bates (Tiare Johnson), Steven Geray (Dirk Stroeve), Elena Verdugo (Ata), Robert Greig, Rondo Hatton, Kenneth Hunter, Molly Lamont, Mike Mazurki, Gerta Rozan, Irene Tedrow, Heather Thatcher, etc.
Duração: 89 minutos; Estreia: 27 de Outubro de 1942 (EUA)

Outros filmes adaptados do mesmo romance ou tendo Gaugin como protagonista:
Título original: Play of the Month - The Moon and Sixpence
Série de TV: "Play of the Month" (1965- ?)
Realizador: Donald McWhinnie (Inglaterra, Canadá, 1967); Argumento: Clive Exton, segundo romance de W. Somerset Maugham; Design de produção: Eileen Diss; Produção: Cedric Messina; Companhia de produção: British Broadcasting Corporation (BBC).
Intérpretes: Charles Gray (Strickland), Ronald Hines (Dirk Stroeve), Barry Justice (Willy), Sylvia Kay (Blanche Stroeve), Elisabeth Welch (Tiare Johnson), Pamela Ruddock (Rose Waterford), Sally Home (Amy Strickland), Frederick Peisley (Colonel MacAndrew), Nicolette Bernard (Mrs. MacAndrew), Job Stewart, Imogen Hassall, Austin Trevor, etc.
Data de emissão: 12 de Novembro de 1967 (3ª Temporada, Episódio 2);

Título original: The Moon and Sixpence
Realizador: Robert Mulligan (EUA, 1959) (TV); Argumento: segundo romance de W. Somerset Maugham;
Intérpretes: Laurence Olivier (Charles Strickland), Judith Anderson (Tiare), Hume Cronyn (Dirk Stroeve), Cyril Cusack (Dr. Coutras), Denholm Elliott, Geraldine Fitzgerald (Amy Strickland), Jean Marsh (Ata), Murray Matheson, Jessica Tandy (Blanche Stroeve), etc.
Companhia de produção: National Broadcasting Company (NBC)
Data de emissão: 30 de Outubro de 1959 (EUA)

Título original: Gauguin the Savage:Overview
Realizador: Fielder Cook (EUA, 1980)
Intérpretes: David Carradine, Lynn Redgrave, Ian Richardson
Duração: 125 minutos: Estreia: 1980 (EUA).

Título original: Paul Gauguin
Realizador: Folco Quilici (Itália,1957)
Documentário

Título original: Paul Gauguin
Realizador: Roger Pigaut (França, 1975) (mini série de TV)
Intérpretes: Maurice Barrier (Gauguin), Nadine Alari (Aline Gauguin), Georg Marischka (Gustave Arosa), Claudia Butenuth (Marguerite Arosa), Catherine Ménétrier (Marie Gauguin, Laurence Mercier (Mme Arosa), Gabriel Jabbour (Picasso), Anne Lonnberg (Mette Sophie Arosa), Ruth-Maria Kubitschek (Ingebord), Pierre Lafont (Emilse Schuffenecker), Karine Lafabrie (Marie Heegard), Jean Reney (Bertin), Bernard Musson, Jean-Marie Lancelot, Gérard Caillaud, etc.
Duração: 50 minutos (7 episódios); data de emissão: 23 de Maio de 1975.

5 comentários:

Anónimo disse...

noanoa!

fcorado disse...

também são uma das coisas que guardo com mais carinho. os livros fazem permanecer a memória não só das suas histórias, das suas personagens e dos seus autores, mas também de cheiros, lugares, pessoas, dias de sol, tardes de chuva ou noites de bom tempo, mas sobretudo a memória de quem os ofereceu. guardo hoje alguns como parte da minha memória, começo por um cubo desdobrável com um abcedário feito por ratinhos ou a uma mais actual história da beleza de Humberto Eco. Estas são algumas das páginas que me deste e quem têm um lugar marcado na minha estante, na minha vida e em mim.

Ana Paula Sena disse...

Verdadeiramente interessante! Passar uma obra literária para cinema parece difícil mas, sem dúvida, genial, quando corre bem. As diversas adaptações encerram sempre aspectos interessantes, como as opções feitas e as perspectivas adoptadas.
Obrigada pelas óptimas referências e informações. :)

P.S. - A lembrança de uma boa leitura é realmente algo de inapagável! Gostei imenso de ver a capa antiga do livro!

Maria Eduarda Colares disse...

grande colecção que era esta! Foi aqui que conheci alguns dos meus autores inesquecíveis.´
Bom post!

Maria Eduarda Colares disse...

Volto para dizer que Mesmo assim elas amavam-no é um título que não passa pela mona de ninguém!!!