quinta-feira, novembro 08, 2007

RELATÓRIO PESSOAL, I


AS MINHAS ESCOLHAS
DO CINE ECO 2007
Ver mais de quatrocentas obras dedicadas a uma temática tão específica como a do ambiente não é tarefa fácil. Foi o que me aconteceu, antes do Cine Eco 2007 começar. Depois revi ainda noventa que sobraram para uma segunda fase de apuramento, das quais saíram as sessenta que foram apresentadas ao público e aos Júris entre 22 e 27 de Outubro último. Algumas, a maior parte das sessenta, voltei a vê-las no CISE, e a confirmar, ou não, a opinião que delas tinha retido nas anteriores visões. Uma boa dúzia ou mesmo uma dezena poderia ter sido ainda limada, não fora alguns aspectos que me pareceram dignos de figurar nos critérios de selecção: obras de jovens, estreia de gente ligada à cidade, ou ao Concelho de Seia, ou ao Distrito, títulos portugueses que mereciam um incentivo, provenientes de universidades, autarquias ou instituições diversas.
Globalmente há curiosas conclusões a extrair. Julgo que o clima do filme ambientalista se está a distender. Continuam a existir (e esperemos que nunca deixem de existir) obras a denunciar abusos, ofensas, massacres, violações, crimes de todo o género contra o planeta e o homem que nele habita, contra a natureza e contra todos os seres que a povoam, que dela fazem parte, quer sejam humanos ou não, mas, ao lado dessas acusações, a maior parte das vezes legitimas, vamos encontrar propostas de um olhar diferente, mais optimista, mais positivo, mais virado para a construção do que para a simples incriminação. Não que esta não seja necessária, para se repor a verdade e a justiça, mas é importante este novo olhar aberto sobre um futuro que pode ser muito menos negro do que aquele que nos oferecem os trágicos paladinos da desgraça.

Vamos então dar uma vista de olhos pelos meus filmes preferidos, sendo que a maior parte deles aparecem consagrados nas listas dos diferentes júris do festival.
Obviamente que o Grande Prémio do Ambiente foi para um dos grandes filmes da edição deste ano do Cine Eco: "Encontro com Milton Santos", da autoria de Silvio Tendler, um dos melhores e mais originais documentaristas brasileiros (outro estava no Júri Internacional, João Batista de Andrade).
O filme tem por base uma entrevista com o geógrafo brasileiro Milton Santos, um dos ideólogos marxistas mais considerados da América Latina, que discute e critica a globalização, expondo “as distorções impostas aos países pobres que pagam injustamente pelo crescimento da economia dos países ricos e as consequências provenientes dessa lógica do capital, que amplia as diferenças ao invés de redistribuir as riquezas.” Por outro lado, tenta mostrar um novo mundo, onde a união entre as “novas técnicas” e “os de baixo” podem fazer um futuro mais distinto para a humanidade. Polémico, irreverente, jogando com uma narrativa colorida, utilizando colagens de frases, textos, fotos, imagens de diversa origem, o filme é um puzzle conduzido pelo pensamento de Milton Santos que não deixa de ser fascinante e sedutor.
Silvio Tendler, licenciado em História pela Universidade de Paris, mestre em Cinema e História pela École des Hautes-Études/Sorbonne, é autor, entre outros, de “Glauber O Filme, Labirinto do Brasil”,“Jango” e “os Anos JK”. Em Portugal, foi alvo de uma retrospectiva no FAMAFEST, Festival de Cinema de Vila Nova de Famalicão.
Outra das confirmações deste Cine Eco (e Grande Prémio da Lusofonia!), foi "Grande Hotel", uma produção da RTP, com realização de Anabela de Saint-Maurice, que se debruça sobre aquele que foi um dos maiores e mais luxuosos hotéis de África, situado na cidade da Beira, Moçambique, inaugurado em 1955, e que hoje em dia é um registo histórico da vida política e social do país, arruinado pelas vicissitudes da descolonização, da guerra, da pobreza. O documentário evoca a história trágica do espantoso edifício, através do olhar de um dos seus arquitectos, que o re-visita 50 anos depois de inaugurado, com um olhar incrédulo, nostálgico e ao mesmo tempo cheio de expectativas quanto ao futuro, quanto ao povo e ao pais.
Anabela de Saint-Maurice, licenciada em Filosofia pela Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dedica-se há vários anos à realização de documentários na Radiotelevisão Portuguesa, e assina aqui um dos seus melhores trabalhos.
Ainda da mesma autora é “A Ponte de Todos”, que acompanha o testemunho de quem trabalhou na ponte sobre o rio Tejo, uma das maiores construções deste tipo do mundo, símbolo de Lisboa e importante obra do regime de Oliveira Salazar. De ponte “Salazar” a “Ponte 25 de Abril”, eis o percurso. Rosa Lopes, reformado, conhecido como o “Dono da Ponte”, lamenta o desleixo a que se vota a “sua” ponte no presente, enquanto o engenheiro Mário Fernandes não esquece a equipa de elite que dirigiu a sua construção. Admirador confesso de Salazar, guarda para si a pompa e a circunstância da inauguração.
“Vilarinho das Furnas”, de Sofia Leite, outra produção da RTP, é outro trabalho de interesse. A aldeia de Vilarinho das Furnas foi submersa no início dos anos setenta, quando começou a construção de uma barragem, à qual foi dado o nome da aldeia. Sobre este caso, António Campos dirigiu nessa altura um filme que funciona como marco do documentarismo social português. A barragem foi construída no rio Homem, num vale da serra Amarela e faz parte do plano de bacia hidrográfica do rio Cávado. Um complexo gigantesco, de sete bacias, que transformou a paisagem geográfica e humana desta região onde o Minho faz fronteira com Trás-os-Montes. Desde os primeiros planos a oposição à sua construção foi total por parte dos habitantes de Vilarinho, uma comunidade comunitária, rara em Portugal. Vilarinho das Furnas tornou-se num mito e numa bandeira. Sofia Leite foi ver o que resta hoje dessa aldeia, transposta para outro local, falou com habitantes, ouviu a repetição de queixumes, mas também vozes diferentes, que aceitaram a mudança e o novo estilo de vida.
“Portugal, Um Retrato Social”, de que se encontravam a concurso os episódios 1 e 3, “Gente Diferente” e “Mudar de Vida”, e extra concurso se puderam ver os restantes outros cinco episódios, é um excelente trabalho de direcção de Joana Pontes, com argumento de António Barreto e da própria Joana Pontes.
O texto de apresentação indica o rumo: “Os portugueses são hoje muito diferentes do que eram há 30 anos. Vivem e trabalham de outro modo. Mas sentem pertencer ao mesmo país dos nossos avós. É o resultado da história e da memória que cria um património comum. Nascem em melhores condições, mas nascem menos. Vivem mais tempo. Têm famílias mais pequenas. Os idosos vivem cada vez mais sós.” Ou: “A sociedade contemporânea, urbana, era ainda há pouco tempo rural. Mudou muito depressa. Muitos portugueses emigraram, a maior parte saiu das aldeias e foi viver para as cidades e para o litoral. O campo está despovoado. As cidades cresceram. As estradas aproximam as regiões. Nas áreas metropolitanas, organizou-se uma nova vida quotidiana. Há mais conforto dentro das casas, mas as condições de vida nas cidades são difíceis.”
A ideia era, portanto, saber qual o “Retrato Social” do nosso país de hoje, por comparação com o Portugal de “antigamente”, o Portugal rural e fechado anterior ao 25 de Abril, produto do Estado Novo. As imagens são magníficas, o vigor da realização é notável, a abordagem e o tom coloquial de António Barreto excelentes, a série foi um êxito aquando da sua exibição e lamento não ter tido melhor sorte em Seia. Ganhou o Prémio “Polis”. Julgo que merecia mais.
Portugueses eram ainda outras obras interessantes, se bem que mais convencionais na sua estrutura e narrativa. “O Fogo Controlado”, de Francisco Manso, procurava ser didáctico na forma como abordava o fogo nas florestas e as técnicas do seu controle; “Corno de Bico”, de Martin Dale, documentava uma região de Portugal, tal como “Discretas Afinidades”, de Ana Neves (Bio Ria, em Estarreja). “Fronteiras do Tempo”, de Cláudia Rodrigues, Pedro Gancho e Francisca Veiga, recuperava o imaginário de Fernando Namora, através de relatos de contrabando, numa zona fronteiriça, com a lembrança da Guerra de Espanha presente. “A Casa”, de Paulo Cartaxana, acompanhava o dia a dia de uma terapêutica para crianças, jovens e adultos necessitados de cuidados especiais, na Casa Santa Isabel (Seia, Serra da Estrela). Fazia-o com um olhar de simpatia sem lamechices. "O Fabrico do Queijo da Serra", de Cátia Brito, assinalava aestreia de outra jovem se Seia na realização (depois de ter passado pelo Júri da Juventude em 2006. “Esta Água que Vos Deixo”, de Clube Audiovisuais da Escola Abranches Ferrão, foi igualmente uma arejada viagem pelo concelho de Seia, expondo problemas e desejos de jovens, guiados pelo professor João Tilly.
Ainda na luofonia, atente-se agora na representação brasileira também numerosa e valiosa. “Xingu, a Terra Ameaçada”, de Washington Novaes, é uma curiosa experiência: há vinte anos, Washington Novaes, brasileiro e um dos mais reputados ambientalistas mundiais, dirigiu uma série sobre “Xingu”, uma das tribos índias perdidas no interior do Brasil. Vinte anos depois volta ao local para descobrir a motorizada, a televisão, o satélite, a verdadeira sociedade de consumo no âmago da selva amazónica. Um documento etnográfico excelente que passou em claro nos palmarés.
Também ““Pirinop, Meu Primeiro Contato”, de Mari Correia, Karané Ikpeng, dentro do mesmo estilo, com o mesmo povo Xingu, é outra viagem antropológica e etnográfica muito curiosa. Em 1964, os Índios Ikpeng têm o seu primeiro contacto com o homem branco numa região próxima do rio Xingu, no Mato Grosso. Ameaçados nos seus territórios pelas invasões de garimpeiros, eles são transferidos para o Parque Indígena Xingu onde ainda vivem. Mas os Ikpeng sofrem com o exílio das suas terras ancestrais e lutam para reconquistá-las. Mari Corrêa, realizadora, produtora e montadora, é uma das instigadoras do grupo “Vídeo das aldeias” e coordenadora do programa de formação de realizadores indígenas. Estudou ciências sociais e cinema na Sorbonne.
Gostei muito da serenidade e do simbolismo da viagem de barco de “Nascente”, de Helvécio Marins Jr, um belo filme que passou discreto, como discreta viajava a barcaça pelo riacho; vibrei com o “agit prop” “Rapsódia do Absurdo”, de Cláudia Nunes; achei instrutivo e bem humorado “Bicho Preto Nasce Branco”, de Ângelo Lima; acompanhei com interesse “Cerrado: Quanto Custa?”, de Rosa Berardo e Murilo Berardo.
“As Pessoas que vivem do Lixo”, de André Cywinski e João Gomez, não trazia nada de novo, para lá de ser um trabalho de jovens, “Profetas da Chuva e da Esperança”, de Márcia Paraíso, era correcto na sua proposta, e “Multiplicadores”, de Renato Martins e Lula Carvalho, observavam os “grafittis” como nova forma de arte urbana que transforma a cidade. Um pouco mais de profundidade seria bem-vinda.
Assim se passou a extensa representação portuguesa e brasileira. Em relação ao extenuante trabalho dos Júris, nada a dizer. Uma ou outra falha, quanto ao meu gosto pessoal, não põe em causa em nada a avaliação global. Bom trabalho.
Falarei dos outros prémios do Cine Eco 2007, não lusófonos, e de algumas outras preferências pessoais não galardoadas, quando tiver tempo, engenho e arte.

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