sexta-feira, abril 04, 2008

CINEMA: HAVERÁ SANGUE

HAVERÁ SANGUE
“Haverá Sangue”, de Paul Thomas Anderson, é um filme notável, uma daquelas raras obras que por vezes iluminam uma cinematografia e nos demonstram que as obras-primas continuam a florescer por esse mundo fora, bastando para tanto estar atento para as reconhecer e amar. Baseado no romance “Oil!” (1927) do norte-americano Upton Sinclair, “There Will Be Blood” foi rodado, em 2006, nos cenários impressionantes do Novo México, e de Marfa, no Texas, centrando a sua história numa personagem absolutamente fascinante (e nem sempre por bons motivos), o mineiro Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis) que descobre ocasionalmente uma jazida de petróleo, corria o ano de 1898. Homem pobre, mas sagaz, com reduzidas condições, mas uma obstinação e persistência que irá manter (e robustecer) ao longo da vida, Plainview inicia a extracção, cria novas técnicas e novos apetrechos de exploração e , em 1911, é o mais bem sucedido pesquisador de petróleo da Califórnia.
Um dia um dos seus empregados sofre um acidente fatal, e deixa órfão H.W., um miúdo que, a partir daí, Plainview adopta como filho e torna sócio do seu pequeno império em construção. Império que progride de forma desmedida, quando recebe a visita de um jovem, Paul Sinday (Paul Dano) que lhe vem vender uma secreta informação sobre uma propriedade da sua família, em Little Boston, Califórnia, onde afiança que há infinitas e bem abastecidas jazidas desse tão precioso óleo.
Plainview e H.W. fazem-se passar por caçadores e iniciam as negociações para comprar a propriedade, depois de se certificarem da existência de petróleo em abundância, e sem nada dizerem à família dessa confirmação. Mas Paul Sinday tem um irmão gémeo, Eli Sinday (igualmente Paul Diano), que percebe o que se passa e exige um pagamento extra de 10.000 dólares, que reverteriam para a construção da sua própria igreja, a “Igreja da Terceira Revelação”, onde se auto-proclamaria sacerdote. Plainview paga-lhe 5.000 adiantados e promete-lhe outro tanto para mais tarde, e começa por outro lado a comprar as propriedades vizinhas, ficando apenas uma, isolada, a quinta do velho Bandy (Hans Howes), que não cede à investida.
Enquanto Plainview vai reforçando o seu império e ampliando a sua cobiça, Eli funda sua própria igreja, e inicia a pregação. Certo dia um poço de petróleo explode e H.W. deixa de ouvir. Estão criadas as premissas para “There Will Be Blood” descolar, oferecendo um admirável retrato de cobiça e ambição, de esforço e dedicação a uma obra, que não pára perante nada, que não hesita um instante, que não coloca uma questão, uma dúvida, uma interrogação. Social, moral. Pragmatismo total. Tudo se justifica se a obra avança e o capital se multiplica, não importando se a solidão se instala, se a bebida consome, se o crime se institui. Duas obsessões demenciais que se cruzam, se aliam, se amparam, se confrontam, se destroem: o petróleo e a religião. Em nome de um e de outra, ou em nome dos dois em simultâneo, ou em conluio dos dois, a riqueza de um cresce, a exploração de muitos aumenta, enquanto, na igreja ao lado, o sacerdote bendiz, se a comunhão da receita for a dividir. Isto não lembra nada de muito presente, de muito ouvido e repetido em noticiários e lido em jornais? Pois parece que sim e é preciso não só coragem mas uma lucidez invulgar para criara a metáfora e mantê-la bem inteligível para os espectadores.
Na linha de “O Gigante”, de George Stevens, por um lado, na forma como descreve a traços largos o universo dos campos petrolíferos e das sagas familiares que alimentaram impérios à sua custa; no prolongamento de “Elmer Gantry”, de Richard Brooks, na forma como evoca os malabarismos e puritanismos de certas seitas e de sacerdotes que vivem da manipulação e da demagogia barata, perante assembleias de crentes ingénuos; próximo de “Citizen Kane”, de Orson Welles, na maneira como ergue uma personagem “bigger than life”; cruzando com “O Tesouro da Sierra Madre”, de John Huston, no estudo da ambição que conduz à loucura e à perca; perto por esse motivo também de “Greed”, de Erich Von Stroeim, a vertigem da cobiça em estado puro numa paisagem desolada. Obviamente que também vem à memória “Escrito no Vento”, de Douglas Sirk. O petróleo e a avareza, a construção de impérios sobre a perfídia, ostentam uma ilustre filmografia atrás de si.
Não li o romance de Upton Sinclair, “Oil!”, mas, ao que dizem, Paul Thomas Anderson apenas retém o início desta obra de cerca de 700 páginas, que acompanha a vida de uma família, cuja riqueza cresce com os campos de petróleo. No romance, o protagonista é Bunny Ross, e tem obviamente um modelo na realidade americana que inspirou a sua criação, um magnata, Edward Doheny, no palacete de qual foram filmadas as derradeiras sequências do filme. Ironias do destino! O filme, no entanto, não fala de Bunny Ross, mas apenas do pai deste (no romance), J. Arnold Ross, e do dealbar da construção do império.
Há quem surpreenda uma inspiração evidente na figura do vampiro para a construção visual da personagem de Daniel Plainview (que Daniel Day-Lewis cria de uma forma absolutamente magistral, na linguagem, na pronuncia, na contenção, no nervo, na frieza o olhar de caçador por vezes acossado, mas sempre pronto a transformar o caçador em sua vítima). “Nosferatu”, de Murnau, vem realmente à recordação, quando se recorta a silhueta de Daniel Plainview na crista do horizonte, mas sobretudo o que colhe é essa avidez insaciável de se alimentar do sangue da terra e do sangue dos outros.
A realização de Paul Thomas Anderson é admirável de rigor, mas também de criatividade narrativa, de eficácia na forma como recorre a uma simbologia que relembra os maiores cineastas americanos da era do clássico, na dimensão de um lirismo telúrico como cruza panorâmicas verticais e horizontais, acompanhando as torres que se erguem para o céu, ou os oleodutos que escorrem para o mar as entranhas da terra. Há no ar poeira e óleo, o vermelho denso do desejo e o negro trágico da ameaça, numa fotografia esplendorosa de Robert Elswit, mas há, sobretudo, a fabulosa partitura de Johnny Greenwood, o guitarrista dos “Radiohead”, que compõe lamentos de cortar a respiração. Um grande filme que tem as pragas do Egipto, do “Exodus”, como epigrafe que dá o nome e um sentido mais linear à obra.
HAVERÁ SANGUE
Título original: There Will Be Blood
Realização: Paul Thomas Anderson (EUA, 2007); Argumento: Paul Thomas Anderson, segundo romance “Oil”, de Upton Sinclair; Música: Jonny Greenwood; Fotografia (cor): Robert Elswit; Montagem: Dylan Tichenor; Casting: Cassandra Kulukundis; Design de produção: Jack Fisk; Direcção artística: David Crank; Decoração: Jim Erickson; Guarda-roupa: Mark Bridges; Maquilhagem: Kim Ayers, John Blake, Catherine Conrad, Linda D. Flowers, David Larson, Yesim 'Shimmy' Osman; Durecção de produção: Erica Frauman, Jamey Pryde, Will Weiske; Assistentes de realização: Jeff Habberstad, Eric Richard Lasko, Jenny Nolan, Richard Oswald, Adam Somner, Ian Stone; Departamento de arte: Anthony D. Parrillo; Som: Richard King, Christopher Scarabosio; Efeitos especiais: Steve Cremin, Brandon K. McLaughlin; Efeitos visuais: Mark Casey, Grady Cofer, Paul Graff, Erin D. O'Connor, Robert Stromberg; Produção: Paul Thomas Anderson, Daniel Lupi, Scott Rudin, Eric Schlosser, JoAnne Sellar, David Williams; Companhias de produção: Ghoulardi Film Company, Paramount Vantage, Miramax Films.
Intérpretes: Daniel Day-Lewis (Daniel Plainview), Paul Dano (Paul e Eli Sunday), David Willis (Abel Sunday), Kellie Hill (Ruth Sunday), Dillon Freasier (Jovem H.W. Plainview), Sydney McCallister, Christine Olejniczak, Martin Stringer, Kevin J. O'Connor, Jacob Stringer, Matthew Braden Stringer, Ciarán Hinds, Joseph Mussey, Barry Del Sherman, Russell Harvard, Harrison Taylor, Stockton Taylor, Colleen Foy, Paul F. Tompkins, Kevin Breznahan, Jim Meskimen, Erica Sullivan, Randall Carver, Coco Leigh, James Downey, Dan Swallow, Robert Arber, Bob Bell, David Williams, Joy Rawls, Louise Gregg, Amber Roberts, Robert Caroline, John W. Watts, Barry Bruce, Irene G. Hunter, Hope Elizabeth Reeves, John Chitwood, David Warshofsky, Tom Doyle, Colton Woodward, John Burton, Hans Howes, Robert Barge, Ronald Krut, Huey Rhudy, Steven Barr, Robert Hills, Rev. Bob Bock, Vince Froio, Phil Shelly, etc.
Duração: 158 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos, Distribuição em Portugal: Lusomundo Audiovisuais; Locais de filmagem: El Mirage Dry Lake, Califórnia; Greystone Park & Mansion - 905 Loma Vista Dr., Beverly Hills, Califórnia; Los Angeles, Califórnia; Marfa, Texas; Santa Clarita, California, EUA; Estreia: 14 de Fevereiro de 2008 (Portugal).

12 comentários:

Anónimo disse...

Um filmaço!

Peyroteo disse...

Gostei do filme, se bem que é bem melhor até meio, digamos até o miúdo ficar surdo. Depois acho que perde um pouco.

Isabel Victor disse...

Bom Dia Lauro António

Boa sugestão. Assim, tenho que ver !


Beijos *** ** de estrelas

Ana Paula Sena disse...

Parece soberbo!

Pelo que aqui é assinalado, o humano nunca deixa de nos surpreender, mesmo na revisitação dos temas centrais da sua condição.

Em vias de ver o filme... :)

Maria Eduarda Colares disse...

não é muiro interessante vir aqui dizer "me too", mas não resisto, neste caso especialíssimo: que filme! E que actores!

Maria Eduarda Colares disse...

voltei: mais ainda do que o magistral DDLewis, o genial Paul Dano.
(E bom comentário, também)

intruso disse...

também não resisto ao "me too"

:)

um filme excelente.


abraço

nada desta vida disse...

é mais um "mi too" pra esta mesa. sem dúvida das últimas obras primas do cinema. um daniel day lewis num oscar mais que merecido, de uma contenção de representação notavel, sem entrar no overacting. amei*

nada desta vida disse...

curioso que também me lembrei do nosferatu*
inês subtil (sua ex aluna de TCAV)

Anónimo disse...

Adorei sua crítica, realmente "There Will Be Blood" é uma Obra-prima, pouco divulgada, mas isso não tem importância, quem conhece fará sua propaganda. Sua trilha sonora é fantástica, parece que vai rasgando a gente.

Filipe Amorim disse...

Não conhecia, vi por sorte na fox e pensei para mim mesmo " isto tá brutal" isto sim é a 7 arte no seu melhor.

Campos Dias disse...

Também vi ontem na Fox. Tudo aquilo que Lauro António escreveu na sua crítica tem o meu absoluto acordo. Fabuloso filme. O "povo" deveria ser "obrigado" a ver este filme. É uma lição da vida.