Saiu mais um número da revista "Take" onde se recolhem mais umas páginas das minhas "Memórias à Solta". Desta vez recordo os tempos passados em Portalegre, entre os meus 8 e 15 anos, a propósito do documentário "Humberto Delgado: "Obviamente, Demito-o!". Deixo aqui apenas uma passagem, mas o melhor é mesmo ler o texto todo na revista, que merece inteiramente a visita. Magnificamente paginada, bem ordenada, escrita com entusiasmo e boa informação por um conjunto de, julgo, jovens, eis uma boa aposta. Mais de cem paginas para cinéfilos do todas as cores. O director é José Soares. Vale até a pena imprimir toda a revista para se ler com mais calma e melhor se apreciar.
Pode ser vista aqui: http://www.take.com.pt/
MEMÓRIAS DE PORTALEGRE
"(...) Foi em Portalegre que tive a minha primeira paixão por uma mulher, curiosamente uma Laura que partiu um dia da cidade e me deixou lavado em lágrimas a ver desaparecer o carro onde a família seguia rumo ao norte. O pai era Juiz, fora colocado noutra cidade, e a perca da Laura foi irremediável. Devíamos os dois andar pelos doze ou treze anos, mas foi imagem que não mais perdi (nem achei). A seguir a essa Laura, outras paixões se seguiram e me marcaram profundamente, ainda por essa cidade de ruas estreitas e serpenteantes, apesar da principal se chamar “Direita”. Colegas de liceu, houve algumas. Conservo a recordação de todas que me despertaram, nas emoções do espírito e na tentação da carne, para os prazeres do amor.
Foi também em Portalegre que comecei a escrever. Textos curtos, notícias sobre cinema, entrevistas breves, enfim, o que me ia interessando e os dois jornais da terra onde eu colaborava iam permitindo publicar. O que me apaixonava mais era “A Rabeca”, do senhor Casaca (João Diogo Casaca) velho republicano, que tinha a tipografia na rua 19 de Junho (antiga rua da Carreira). Fora na juventude actor dramático e cantor, e depois instalou-se como tipógrafo, editor e director de jornais. Foi nessa gráfica, de ambiente antigo, soturno, pesado, mesmo com o seu quê de misterioso, pejada de móveis escuros, onde se compunham jornais com letras de chumbo que se iam juntando até formarem palavras, frases, artigos, foi ai que comecei a escrever. Via os empregados a compor, com ágeis movimentos de mãos, trabalhando de pé, encostados a banquetas recheadas de gavetas de alto a baixo, com tipos de letra diferentes, e ficava fascinado com essa actividade mecânica, febril, incansável, que dava lugar a textos que se liam e transmitiam ideias, factos, pesadelos ou esperanças. Foi aí que aprendi, com dificuldade extrema, é certo, a manusear as letras de chumbo, e a compor as minhas próprias notícias sobre filmes e actrizes. Foi nas páginas de “A Rabeca” que vi as primeiras palavras escritas por mim circularem em folha de jornal. Assinava o nome que hoje uso ou as iniciais LA, ou ainda, sobretudo no outro jornal da terra, O…TAL (que era a inversão de Lató, diminutivo que reunia os meus dois nomes iniciais e pelo qual os meus pais por vezes me chamavam).
Um outro jornal da terra era “O Distrito de Portalegre” (o único desses tempos que ainda hoje se publica), ligado à diocese, onde pontificava o Cónego Anacleto, amigo da casa de meus pais. A tipografia era muito mais arejada, luminosa, ficava situada em frente à Sé Catedral. Os textos eram sobretudo de cariz religioso, e a linha do jornal era muito mais conservadora na sua orientação ideológica. Havia ainda um terceiro semanário na terra, “A Voz Portalegrense”, órgão da “União Nacional” no distrito, mas aí nunca escrevi nada, vá-se lá saber porquê. Não me puxava a mão para esses desígnios.
Escrever era já uma paixão, mas ler era compulsivo. Desde as revistas em quadradinhos, “O Papagaio”, “O Mosquito”, quando era mais novo, o “Mundo de Aventuras” e o “Cavaleiro Andante”, em meados dos anos 50, até romances de certo fôlego que ia desencantar na biblioteca dos pais, ou que eles me ofereciam, em doses massivas sobretudo pelos anos ou no Natal. Como o meu pai era pintor e se interessava muito por livros sobre arte, havia vários lá por casa que me fascinavam. Uns, de bolso, monografias sobre pintores. Outros, álbuns de certo peso. Um, sobre o “Aleijadinho”, o escultor desse fabuloso Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, obra inspirada em santuários portugueses, que se encontra em Congonhas do Campo, no Estado de Minas Gerais, impôs mesmo um desvio de rota, aquando da minha primeira viagem de férias no Brasil, tal era a admiração que me provocava desde essa altura.
Mas “Os Miseráveis”, “O Príncipe e o Pobre”, “O Romance de um Rapaz Pobre”, “A Dama das Camélias”, “Oliver Twist”, “As Pupilas do Senhor Reitor”, “Os Maias”, um pouco de tudo ia passando sob os meus olhos maravilhados. E a poesia de José Régio, lida em livros autografados pelo próprio, e que ainda hoje conservo religiosamente. Por essa altura tinha jeitinho para desenhar e pintei, a lápis de cores, uma “Fuga para o Egipto” que ofereci a José Régio, tendo recebido em troca “O Príncipe das Orelhas de Burro”, autografado (“Ao Làtó, em troca duma sua pintura que representa a “Fugida para o Egipto”, sem burro, oferece o seu amigo Zé Régio, Portalegre, 1952), num volume cartonado que abre com um belíssimo desenho a cores que o romancista me ofertou também. Eu tinha dez anos.
E já gostava de futebol, nesses anos iniciais de liceu. Havia dois clubes em Portalegre, um, o “Portalegrense”, outro, o “Estrela de Portalegre”, com rivalidades óbvias. Apesar do verde ser a minha cor a nível nacional (Sporting Clube de Portugal, claro, e desde sempre e para sempre!), em Portalegre as simpatias penderam sempre mais para o azul do “Portalegrense”. Como desde miúdo fui alto, já nessa altura andaria pelo metro e oitenta, empurravam-me invariavelmente para a baliza, ignorando a minha ânsia de “meter golos”. Fui parar a guarda-redes da equipa do liceu, e ainda fiz alguns jogos nos juniores do “Portalegrense”, até que um frango monumental me afastou irremediavelmente de uma carreira gloriosa na selecção nacional, quiçá. Mas confiar no golpe de vista nunca foi apanágio de bom guarda-redes, e a bola entraria por entre as mãos despreocupadas de quem olha o esférico e pensa que ele passa por cima, e não tem em conta o movimento descendente de última hora. Nesse jogo perdeu-se um guarda-redes, marcado pela íntima ignomínia de um frango colossal. Nunca deixei, porém, de assistir aos jogos do Portalegrense, e ainda hoje procuro nas páginas dos desportivos os resultados dos clubes da terra. Infelizmente, não muito brilhantes.
Muito mais interessante foi a minha dedicação às salas de espectáculo da cidade. Quando cheguei a Portalegre, a que existia era o magnífico (enfim, assim o recordo, apesar de algo arruinado) “Teatro Portalegrense”, situado numa pequena praceta no centro da cidade. Era um teatro antigo, construído à italiana, na vertical, com plateia, frisas, camarotes e por aí acima. Havia normalmente quatro sessões semanais, às terças, quintas, sábados e domingos, e ocasionalmente teatro. As companhias de revista, de comédia ou mesmo de drama, faziam digressões pelo País e Portalegre estava inscrito no mapa. Passavam, portanto, inicialmente pelo palco do “Teatro Portalegrense”, depois pelo do “Cine Teatro Crisfal”, localizado ao cimo do Jardim da Corredoura, edifício típico dos anos 50 e da febre dos Cine Teatros que se espalharam pelo País em réplicas mais ou menos inspiradas do Cinema e Teatro Monumental de Lisboa. Assisti à inauguração do Crisfal, com uma actuação da companhia do Teatro Nacional de D. Maria II, de Amélia Rey Colaço que, para assinalar o facto, ali permaneceu uma pequena temporada com duas ou três peças do seu reportório. (...)
Foi também em Portalegre que comecei a escrever. Textos curtos, notícias sobre cinema, entrevistas breves, enfim, o que me ia interessando e os dois jornais da terra onde eu colaborava iam permitindo publicar. O que me apaixonava mais era “A Rabeca”, do senhor Casaca (João Diogo Casaca) velho republicano, que tinha a tipografia na rua 19 de Junho (antiga rua da Carreira). Fora na juventude actor dramático e cantor, e depois instalou-se como tipógrafo, editor e director de jornais. Foi nessa gráfica, de ambiente antigo, soturno, pesado, mesmo com o seu quê de misterioso, pejada de móveis escuros, onde se compunham jornais com letras de chumbo que se iam juntando até formarem palavras, frases, artigos, foi ai que comecei a escrever. Via os empregados a compor, com ágeis movimentos de mãos, trabalhando de pé, encostados a banquetas recheadas de gavetas de alto a baixo, com tipos de letra diferentes, e ficava fascinado com essa actividade mecânica, febril, incansável, que dava lugar a textos que se liam e transmitiam ideias, factos, pesadelos ou esperanças. Foi aí que aprendi, com dificuldade extrema, é certo, a manusear as letras de chumbo, e a compor as minhas próprias notícias sobre filmes e actrizes. Foi nas páginas de “A Rabeca” que vi as primeiras palavras escritas por mim circularem em folha de jornal. Assinava o nome que hoje uso ou as iniciais LA, ou ainda, sobretudo no outro jornal da terra, O…TAL (que era a inversão de Lató, diminutivo que reunia os meus dois nomes iniciais e pelo qual os meus pais por vezes me chamavam).
Um outro jornal da terra era “O Distrito de Portalegre” (o único desses tempos que ainda hoje se publica), ligado à diocese, onde pontificava o Cónego Anacleto, amigo da casa de meus pais. A tipografia era muito mais arejada, luminosa, ficava situada em frente à Sé Catedral. Os textos eram sobretudo de cariz religioso, e a linha do jornal era muito mais conservadora na sua orientação ideológica. Havia ainda um terceiro semanário na terra, “A Voz Portalegrense”, órgão da “União Nacional” no distrito, mas aí nunca escrevi nada, vá-se lá saber porquê. Não me puxava a mão para esses desígnios.
Escrever era já uma paixão, mas ler era compulsivo. Desde as revistas em quadradinhos, “O Papagaio”, “O Mosquito”, quando era mais novo, o “Mundo de Aventuras” e o “Cavaleiro Andante”, em meados dos anos 50, até romances de certo fôlego que ia desencantar na biblioteca dos pais, ou que eles me ofereciam, em doses massivas sobretudo pelos anos ou no Natal. Como o meu pai era pintor e se interessava muito por livros sobre arte, havia vários lá por casa que me fascinavam. Uns, de bolso, monografias sobre pintores. Outros, álbuns de certo peso. Um, sobre o “Aleijadinho”, o escultor desse fabuloso Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, obra inspirada em santuários portugueses, que se encontra em Congonhas do Campo, no Estado de Minas Gerais, impôs mesmo um desvio de rota, aquando da minha primeira viagem de férias no Brasil, tal era a admiração que me provocava desde essa altura.
Mas “Os Miseráveis”, “O Príncipe e o Pobre”, “O Romance de um Rapaz Pobre”, “A Dama das Camélias”, “Oliver Twist”, “As Pupilas do Senhor Reitor”, “Os Maias”, um pouco de tudo ia passando sob os meus olhos maravilhados. E a poesia de José Régio, lida em livros autografados pelo próprio, e que ainda hoje conservo religiosamente. Por essa altura tinha jeitinho para desenhar e pintei, a lápis de cores, uma “Fuga para o Egipto” que ofereci a José Régio, tendo recebido em troca “O Príncipe das Orelhas de Burro”, autografado (“Ao Làtó, em troca duma sua pintura que representa a “Fugida para o Egipto”, sem burro, oferece o seu amigo Zé Régio, Portalegre, 1952), num volume cartonado que abre com um belíssimo desenho a cores que o romancista me ofertou também. Eu tinha dez anos.
E já gostava de futebol, nesses anos iniciais de liceu. Havia dois clubes em Portalegre, um, o “Portalegrense”, outro, o “Estrela de Portalegre”, com rivalidades óbvias. Apesar do verde ser a minha cor a nível nacional (Sporting Clube de Portugal, claro, e desde sempre e para sempre!), em Portalegre as simpatias penderam sempre mais para o azul do “Portalegrense”. Como desde miúdo fui alto, já nessa altura andaria pelo metro e oitenta, empurravam-me invariavelmente para a baliza, ignorando a minha ânsia de “meter golos”. Fui parar a guarda-redes da equipa do liceu, e ainda fiz alguns jogos nos juniores do “Portalegrense”, até que um frango monumental me afastou irremediavelmente de uma carreira gloriosa na selecção nacional, quiçá. Mas confiar no golpe de vista nunca foi apanágio de bom guarda-redes, e a bola entraria por entre as mãos despreocupadas de quem olha o esférico e pensa que ele passa por cima, e não tem em conta o movimento descendente de última hora. Nesse jogo perdeu-se um guarda-redes, marcado pela íntima ignomínia de um frango colossal. Nunca deixei, porém, de assistir aos jogos do Portalegrense, e ainda hoje procuro nas páginas dos desportivos os resultados dos clubes da terra. Infelizmente, não muito brilhantes.
Muito mais interessante foi a minha dedicação às salas de espectáculo da cidade. Quando cheguei a Portalegre, a que existia era o magnífico (enfim, assim o recordo, apesar de algo arruinado) “Teatro Portalegrense”, situado numa pequena praceta no centro da cidade. Era um teatro antigo, construído à italiana, na vertical, com plateia, frisas, camarotes e por aí acima. Havia normalmente quatro sessões semanais, às terças, quintas, sábados e domingos, e ocasionalmente teatro. As companhias de revista, de comédia ou mesmo de drama, faziam digressões pelo País e Portalegre estava inscrito no mapa. Passavam, portanto, inicialmente pelo palco do “Teatro Portalegrense”, depois pelo do “Cine Teatro Crisfal”, localizado ao cimo do Jardim da Corredoura, edifício típico dos anos 50 e da febre dos Cine Teatros que se espalharam pelo País em réplicas mais ou menos inspiradas do Cinema e Teatro Monumental de Lisboa. Assisti à inauguração do Crisfal, com uma actuação da companhia do Teatro Nacional de D. Maria II, de Amélia Rey Colaço que, para assinalar o facto, ali permaneceu uma pequena temporada com duas ou três peças do seu reportório. (...)
1 comentário:
Grande abraço.
Cumprimentos cinéfilosportinguistas!
José Soares
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